N'aquelle tempo, (1845) no Porto, rua de S. Sebastião n.° 1, morava o padre Luiz de Sousa Couto, paleographo da Misericordia. Representava sessenta e tantos annos, uma nutrição doentia, pesado, com os pés turgidos da gota, cheios de nodosidades. Era jovial. Tinha um sorriso lhano, conversava morosamente pausado com admiravel correcção; deixava-se interromper sem impaciencias e não interrompia nunca os desatinos, maçadas, e até as tolices de quem quer que fosse. E ouvia muitas. Este padre obscurecido na sua paleographia que lhe dava oito tostões por dia, n'aquella asquerosa alfurja chamada rua de S. Sebastião, com o aljube á esquerda e as immundicies da Pena Ventosa á direita, era o impulsor, a alma, o cerebro do gigante miguelista nas provincias do norte. A Junta de Lisboa consultava-o. Ribeiro Saraiva enviava-lhe de Londres os elementos para os seus calculos, pedia-lhe conselhos; e D. Miguel escrevia-lhe frequentemente. Dizia-se que o principe proscripto o elegera bispo ou patriarcha de Lisboa—não me recordo qual era a mitra.
A sua presença veneravel impunha sem artificio; uma grande bondade obsequiadora[4]; não proferia palavra offensiva dos seus adversarios politicos; não acceitava donativos dos seus correligionarios; vivia com severa parcimonia dos seus 800 réis havidos da Santa Casa, e morreria de penuria antes de pedir ao governo liberal a paga dos seus lavores illustrados, correctissimos de interprete de velhos e quasi indecifraveis codices.
Ao entardecer do dia 15 de maio de 1845 o padre Luiz de Sousa escrevia a sua correspondencia para Londres. Annunciou-se o padre Bernardo Rocha, perguntando a hora menos occupada para poder dar duas palavras ao reverendo dono da casa. Foi logo recebido.
—Que todas as horas eram livres para receber os amigos.
Padre Rocha principiou allegando que os seus sentimentos politicos eram bem conhecidos; que cumpria sempre as ordens que recebia do centro realista, e que facilmente daria o socego da sua vida em sacrificio das suas convicções. Que se julgava com direito a fazer uma pergunta e a exigir que lhe respondessem a verdade.
—Se a pergunta fôr feita a mim, não poderei responder d'outra maneira. Que quer saber, padre Rocha?
—Se o snr. D. Miguel está em Portugal.
—Não, snr. Ha 15 dias estava em Italia.—E abrindo uma gaveta, extrahiu de uma pasta muito ordinaria de carneira surrada com atilhos um papel que mostrou.—Aqui está uma carta assignada pelo snr. D. Miguel de Bragança, datada no l.° de maio. Quanto a isto, está satisfeito. Que mais quer saber?
—Mais nada. Agora corre-me o dever de justificar a pergunta.
—Bem sei—preveniu o padre Luiz.—Essa mesma pergunta me fez ha dias o Bezerra de Barrimáo, seu visinho, e mais de um cavalheiro de Braga, o Barata, o Manoel de Magalhães, etc. Diz-se por lá que o snr. D. Miguel está no Alto Minho, no concelho da Povoa de Lanhoso. Propalam-o certos padres, não sei com que alcance. A estupidez tem intuitos impenetraveis. Não percebo para que fim espalham tão absurdo boato, se não é para alarmar o governo ou lograr incautos...
—É isso mesmo: lograr incautos—interrompeu o Rocha e contou o que se estava passando com o tenente-coronel de Quadros, a carta do supposto D. Miguel e o emprestimo dos tres contos, que o fidalgo tencionava levar no proximo sabbado ao impostor.
—Seria bom evitar a perda ao tenente-coronel e o opprobrio ao partido legitimista—alvitrou o paleographo.
—Eu não o podia fazer sem a certeza de não praticar alguma imprudencia. Para isso vim consultar o reverendo Luiz de Sousa, e d'aqui irei para Braga entender-me com o governador civil.
—Faz bem. Não lh'o aconselharia, se pudessemos dar remedio mais suave á doença d'esse miseravel impostor, de quem eu sei mais algumas traficancias. Constou-me ha poucas horas, que umas beatas de Braga, abastadas, e de appellido Botelhas, tinham enviado uma importante quantia, por intermedio de um certo abbade, a um D. Miguel que está escondido em Portugal. Eu podia dar aviso d'esta ladroeira; mas tenho compaixão do abbade: não sei se elle é ladrão ou tolo. A segunda hypothese é que o salva de ser processado. Portanto, amigo padre Rocha, faz um bom serviço á humanidade e ao partido, solicitando o castigo d'esse homem que conspurca o nome d'el-rei e a honra do partido. Agora, visto que veio, vou dizer-lhe o que ha. Saraiva trata de contrahir um emprestimo e de negociar generaes que infelizmente precisamos. O Povoas está decrepito e quasi morto para a nossa fé desde Souto Redondo. As patentes superiores, pela maior parte, estão em pessoas que regulam pela intelligencia do seu amigo tenente-coronel de Quadros. Ha por ahi outros que aprenderam a tatica da covardia desde o cêrco do Porto. Mal podemos contar com elles, quando os vêmos intervir nas facções dos liberaes a fim de abrirem brecha na mesa do orçamento com as espadas postas em almoeda. No anno proximo futuro, o partido legitimista deve dar signaes de vida; se esses signaes hão-de ser como os do cadaver galvanisado que se convulsiona e recahe na sua podridão, isso não sei. O snr. D. Miguel tem de vir a Londres; e quando lhe constar, padre Rocha, que el-rei está em Inglaterra, prepare-se com a sua energia para nos dar o muito que esperamos da sua influencia e do seu affecto á legitimidade. E adeus que sahe depois d'ámanhã de Lisboa o paquete: estou escrevendo ao nosso Ribeiro Saraiva.
O secretario geral governador civil interino de Braga na ausencia do conselheiro João Elias,—uma victima burlesca de troça dos setembristas—era o Marques Murta, uma gigantesca actividade phrenetica n'um corpo mediano, fino, acepilhado aristocraticamente, com a bossa da perspicacia politica muito saliente. De resto, serviçal, agradavel, com uns requintes de delicadeza de bom tom.
O padre Rocha procurou-o no seu gabinete e contou-lhe os casos succedidos e a necessidade de não deferir a prisão do impostor até além do dia seguinte, porque no sabbado sahia de Quadros o Cerveira Lobo com os tres contos.
—Talvez fosse mais curial e exemplar prendêl-o depois, e entrar com os tres contos no cofre do districto, visto que o Cerveira os quer applicar ás necessidades da monarchia;—opinou o secretario sorridente.
O padre não percebeu a ironia, e entendeu que de qualquer dos modos já não podia obviar que o seu amigo fosse roubado, ou em nome de D. Miguel l.° ou de D, Maria 2.ª.
—Vá descansado — emendou a auctoridade com o seu sorriso intelligente, habitual.—Se o homem estiver em Calvos, ámanhã a esta hora ha-de estar na cadeia de Braga.
Pela meia noute d'este dia sahiu do quartel do Populo, uma escolta de infanteria 8 que chegou a S. Gens ao apontar da manhã. Era guiada por um pratico sabedor das avenidas da residencia abbacial, um socio convertido e aproveitado da quadrilha de ladrões que devastára o concelho da Povoa em 34, e saboreava agora na policia secreta uma qualquer prebenda honestamente ganha. Elle dispôz a soldadesca á volta da casa, debaixo das janellas, rente ao muro do passal, e mostrou ao sargento a porta de carro. Rompia a aurora quando a passarada do arvoredo se esvoaçou piando, alvorotada pelo estrondo das cronhadas á porta principal, e uns berros formidaveis:
—Abra! abra! se não vai dentro a porta!
O abbade saltou da cama, espreitou por uma fresta das portadas, e viu um cordão de soldados, a olharem para as janellas, e com as bayonetas nas espingardas. Correu descalço para a saia contigua á alcôva do hospede, e encontrou-o no meio da quadra, em fralda, a enfiar as calças, quasi ás escuras, com a respiração anciada.
—Que é?—regougou o homem n'uma estrangulação de susto, muito offegante.
—Tropa, senhor, tropa! Fuja depressa, que eu vou esconder vossa magestade na adega antes que arrombem a porta.
As cronhadas e as intimações ameaçadoras repetiam-se. Uma algazarra de inferno. Vozes roucas pediam machados e ferros do monte. A Senhorinha, muito esganiçada, espectorava agudos ais na cozinha; não acertava a enfiar o saioto pelo direito. Os cães de Castro-Laboreiro, muito ferozes, arremettiam ás portas com a dentuça refilada. Porcos grunhiam dando bufidos espavoridos. A moça dos recados chamava a sua Mãe Santissima e a alma da tia Jacintra do Reimundles que estava inteira na egreja. Dous criados da lavoura, estranhos ao segredo do real hospede, como estavam recrutados, cuidaram que a tropa os vinha prender; enterraram-se nos fenos do palheiro, promettendo esmolas de quartinho ao Bom Jesus do Monte e ao martyle São Trocatles, se os livrassem d'aquella. Entretanto, o outro, de chinellos de tapête, guiado pela mão do abbade até á cozinha, passou d'aqui para a adega que a creada abriu com muita subtileza. Havia lá dentro um recanto encoberto por duas pipas vasias, postas ao alto; pela convexidade das aduellas e entre as pipas e a parede, abria-se um vacuo onde cabia á vontade um homem. O abbade muito afflicto:
—Suba depressa vossa magestade que eu ajudo por cima das pipas e deixe-se escorregar p'r'ó lado de lá. Coza-se bem com a parede; se vierem revistar, não se bula, não se bula, senhor!
O homem ficou em cega escuridade. Quando resvalava com as costas pela parede, as teias d'aranha despegavam-se dos vigamentos de que pendiam, enrodilhavam-se-lhe viscosas ao nariz e aos beiços. Elle sacudia-as, cuspinhava com nojo, queria acocorar-se, mas não cabia. Ouvia rôjos de ratazanas por debaixo das pipas, e lá fóra o rodar das portas que se escancaravam com estridor.
Em cima, o sargento e tres soldados entraram e examinaram vagarosamente os quartos e recantos.
—Snr. abbade, ponha p'r'áqui o rei, disse o sargento, um farçola, o Pilula do 8,—queremos o rei e algumas botijas de genebra. A garrafeira da casa real deve ser coisa muito rica! Venha primeiro o snr. D. Miguel que lhe queremos fazer uma saude.
—O snr. está a mangar!—disse o abbade afinando pelo tom da chalaça.—Genebra, se a querem, dou-lh'a; mas a respeito de rei, só lhe posso dar o de copas, que tenho ali um.
—Pois sim, traga o rei de copas, e não será máo que ponha em guarda tambem o az do mesmo naipe.
—Dá-se-lhe já duas biqueiras n'este padreca, ó meu sargento!—propoz o 24.
—Deixa vêr se a coisa se arranja sem biqueiras. Ande lá, snr. abbade, vamos á genebra, á adega. Mêxa-se.
—A genebra está cá em cima—observou o abbade um pouco enfiado.
—Mande-a ir p'r'a baixo, que é mais fresco. Mêxa-se, mêxa-se que temos pressa. Abra a porta da adega.
—Sim, snr., abro tudo o que vocemecê quizer—resoluto, com um ar ironico de condescendencia, sem receio.—Os senhores tem coisas! Onde diabo procuram o snr. D. Miguel!—E descia, pedindo a chave á Senhorinha.
A creada demorava-se a procural-a, a fingir; e o sargento:
—Se se demora, ó santinha, vai dentro a porta! Ó 24, vai buscar um machado que eu ali vi na cozinha. Salta um machado!
—Não é preciso, camarada—acudiu o abbade.—Aqui está a chave. Eu abro. Entrem, procurem á vontade.
O sargento parou á porta a familiarisar-se com a escassa luz da adega:—Ó padre! isto aqui é que é a sala do throno? ou é o subterraneo da inquisição? Mande lá accender uma candeia, se não tem um archote.
—Ó mulher, traz d'ahi uma placa accêsa—disse o abbade Marcos, contrafazendo o seu terror.
E o homem, lá dentro atraz das pipas, tiritava como Heliogabalo na latrina, seu derradeiro refugio.
A Senhorinha entrou adiante com a placa, um luzeiro mortiço de cêbo com morrão que parecia condensar mais as trevas da lôbrega caverna.
—Arranja ahi um fachoqueiro de palha, ó 14! Que raio de placa você cá traz, mulher!
—É emquanto não péga bem a torcida—explicou a creada caminhando atraz do padre para o lado opposto ao esconderijo. Com effeito, a claridade difundia-se, mas tão de vagar que ninguem diria a velocidade que os naturalistas marcam a um raio de luz. Os soldados batiam com os nós dos dedos nos tampos das pipas que toavam o som abafado de cheias.
E o 14:—Ó meu sargento, o tanso do abbade casca lhe rijo no verdasco! Estão cheiinhas! E apontando para as duas pipas vasias do canto, o sargento perguntava se o vinho d'aquellas já lhe tinha cabido na sachristia—e dava piparotes na barriga do padre.
O abbade tinha uns sorrisos pallidos, compromettedores como uma denuncia. O 24 escutava e dizia que a modos que ouvira mexer coisa atraz das pipas!
—Ha-de ser ratos—conjecturou o abbade, tremulo, engasgado.
—Palpa com a bayoneta por traz das pipas, ó 241—disse o sargento.
Assim que o aço da bayoneta raspou na parede a Senhorinha começou a dar gritos, sentou-se a espernear, e perdeu os sentidos.
—Que diabo tem a velha?!—perguntou o Pilula.—Dão-lhe estupores, hein?
—É flato, costuma-lhe a dar—elucidou o abbade.—O 24 voltára-se a vêr a velha escabujar, e retirara a bayoneta de traz das pipas. O abbade teve um momento de esperança, cuidando que o exame estava feito:
—Tem visto, snr. sargento? Aqui não ha nada. Os senhores vieram enganados a minha casa.—E caminhou ara a porta com a luz.
—Espere ahi, seu padre! Anda-me com a bayoneta, 24. Escarafuncha-me esses ratos.
O outro soldado entrou no mesmo exame; e, apenas as bayonetas resvalaram por corpo que lhes abafava os tinidos metalicos das pontuadas, ouviu-se um grande estrupido de coisa que trepava pelas pipas. E n'isto appareceu uma cabeça com enormes barbas sobre um dos tampos.
—Oh!—bradou o Pilula!—muito bem apparecido n'esta funcção, snr. D. Miguel I! Suba p'ra cima d'esse throno e dê lá de cima um bocado de cavaco ás tropas! Mas o melhor é descer cá p'ra baixo, real senhor!
O 24, muito espantado, a olhar para a cabeça do homem:
—Parece o padre eterno, ó meu sargento!
—Com quem elle se parece é com o Remexido do Algarve,—affirmava o 14.
—Desça d'ahi que ninguem lhe faz mal, homem. Está preso á ordem do governador civil—concluiu o sargento com seriedade imponente.
—Este senhor?... não...—disse o abbade com as mãos postas.[5]
—Não seja asno!—volveu o sargento. Este homem não é D. Miguel. É um falante que o está aqui a comer a você e mais aos patólas da sua laia. Vá-lhe buscar a roupa, senão elle entra na escolta em mangas de camisa.
—Dê licença que este senhor se vá vestir ao seu quarto—supplicou o abbade.
—Sim, que se arranje com guardas á vista.—E acompanhou-os á saleta.
Quando envergava o casaco de panno piloto, o abbade disse-lhe, com um gesto, que o dinheiro das Botelhas de Braga ia nas algibeiras do paletó.
O sargento perguntou que papelada era aquella que estava sobre a mesa. Leu a primeira folha e desatou a rir e a dizer ao barbaças:
—Olha que grande pandego você é! Você como se chama, ó seu coisa? E leu alto:
Rol das mercês que sua magestade o snr. D. Miguel I fez em Portugal e que se descrevem n'este livro de apontamentos provisoriamente.
E na primeira pagina.
Marcos Antonio de Faria Rebello, abbade de S. Gens de Calvos, capellão-mór de el-rei e D. Prior de Guimarães. E perguntava ao abbade:—Este ratão d'este dom prior é você, hein? Parabens!
Em seguida:
Torquato Nunes Elias, visconde de S. Gens, secretario privado d'el-rei.
—Torquato Nunes! recordava o Pilula.—Eu parece-me que conheço este diabo de o vêr em Braga no Café da Açucena na Cruz de Pedra. Nunes! um pelintra. Onde está o visconde que lhe queria dar um cigarro? Emfim cá levo a papelada para Braga—e enrolava os papeis. A gente precisa conhecer os titulares novos para os respeitar e acatar, amigo D. Prior de Guimarães.
Quando a escolta se formou fóra do portão e o preso entrou ao centro, com a fronte magestosa abatida e os braços cruzados, levantou-se na residencia um choro como á sahida de um defunto muito querido. Eram a cozinheira e a outra creada, n'um arrancar de soluços, emquanto o abbade afogava os gemidos com o rosto apanhado nas mãos. O povo da aldeia, com um grande terror da tropa, espreitava de longe por entre as arvores e de traz das paredes. O Torquato Nunes Elias, acordado pela mulher que recebera a nova da prisão, saltára da cama, e correra á residencia, perguntando ao abbade se el-rei tinha levado as peças das Botelhas de Braga.
—Que sim, que levára; pudéra não levar!
—Pois então, abbade, empreste-me ahi meia moeda, que eu vou disfarçado a Braga vêr o que se passa. Estou sem vintem.
—Veja lá se o prendem, visconde—acautelou o abbade.
—O meu dever é seguir a sorte de el-rei! Onde elle morrer, morro eu!
[4]O auctor teve relações muito saudosas com este venerando sacerdote, que em 1851 residia n'um antigo casarão da rua de St. Antonio, que depois se transformou em casa de banhos. Por esse tempo, se congregavam ali os homens eminentes, por intelligencia e haveres, do partido realista. N'este anno, padre Luiz de Sousa passava os seus dias rodeado de pergaminhos, immobilisado em uma poltrona, gemendo as dôres da gota. Morreu muito pobre e muito desamparado.
[5]São as textuaes palavras e a attitude do padre, significativas da crença entranhada na realeza do preso e da sua paixão n'aquelle lance. Parece que intentava mover á piedade a escolta, increpando-a pela profanação de pôr mãos no rei legitimo. (Informação de Ferreira de Andrade).