INTRODUCÇÃO

Entre as diversas molestias significativas da minha velhice, o amor aos livros antigos—a mais dispendiosa—leva-me o dinheiro que me sobra da botica, onde os outros achaques me obrigam a fazer grandes orgias de pilulas e tizanas. E, quando cuido que me curo com as drogas e me illustro com os archaismos, arruino o estomago e enferrujo o cerebro em uma caturrice academica.

Constou-me aqui ha dias que a snr.ª Joaquina de Villalva tinha um gigo de livros velhos entre duas pipas na adéga, e que as pipas, em vez de malhaes de pão, assentavam sobre missaes. O meu informador denomina missaes todos os livros grandes; aos pequenos chama cartilhas. Mandei perguntar á snr.ª Joaquina se dava licença que eu visse os livros. Não só m'os deixou vêr, mas até m'os deu todos—que escolhesse, que levasse. Examinei-os com alvoroço de bibliomano. Elles, gordurosos, humidos, empoeirados, pareciam-me seductores como ao leitor delicadamente sensual se lhe figura a face da mulher querida, oleosa de cold-cream, pulverisada de bismutho.

Havia sermonarios latinos, um Marco Marullo, tres rhetoricas, muitas theologias moraes, um Euclides, commentarios de versões litteraes de Tito Livio e Virgilio. Deixei tudo na benemerita podridão, tirante uma versão castelhana do mantuano por Diego Lopez e um muito raro Entendimento literal e constrviçam portugueza de todas as obras de Horacio, por industria de Francisco da Costa, impresso em 1639.

Disse-me a dadivosa viuva de Villalva que os livros estavam na adéga, havia mais de trinta annos, desde que seu cunhado, que estudava para padre, morrêra ethico; que o seu homem—Deus lhe falle n'alma—mandára calear o quarto onde o estudante acabára, e atirou para as lojas tudo o que era do defunto—trastes, roupa e livralhada. Contou-me isto seccamente do extincto cunhado, ao mesmo tempo que roçava com a mão fagueira o ventre gravido de uma gata malteza que lhe resbunava no regaço, passando-lhe pela cara a cauda em attritos d'uma flacidez de arminho. E eu que dedico aos bichos um affecto nostalgico, uma sensibilidade retroactiva, um atavismo que me retrocede aos meus saudosos tempos de gorilha, olhava para a gata que me piscava um olho com uma meiguice antiga—a das meninas da minha mocidade que piscavam. Onde isto vai!

A snr.ª Joaquina, para me obrigar a um eterno reconhecimento, offereceu-me uma das crias da sua gata que andava para cada hora e se chamava Velhaca—ajuntou com a satisfação de quem completa um esclarecimento interessante. Agradeci o por vindouro filho da Velhaca, fiz uma caricia no dorso crespo da mãe, que m'a recebeu familiarmente, e sahi com os livros velhos empacotados em duas bulas de 1816 e 1817 que a snr.ª Joaquina, com um riso sceptico, indisciplinado, me disse serem do tempo dos Affonsinhos.—Porque o seu sogro, accrescentou, era um asno ás direitas que comprava a bula para poder comer carne em dia de jejum; e, sem que eu a provocasse a vomitar heresias, disse que os padres vendiam a bula e compravam a carne; e, ajuntando á heresia um anexim de limpeza muito duvidosa, disse o que quer que fosse a respeito dos peccados que entram pela bocca.

Depois informaram-me que esta viuva, bastante estragada no moral e ainda mais no physico, andára de amores illicitos com um escrivão do juiz de paz, o Barroso, um dos 7:500 do Mindello, que lêra o Bom senso do cura João Meslier, e a saturára de má philosophia, e tambem a esbulhára de parte dos seus bens de raiz e do melhor da sua riqueza—a Fé, o bordão com que as velhas e os velhos caminham resignados e contentes para os mysterios da eternidade.

Logo que cheguei a casa, entrei a folhear as paginas dos dous livros, preparado para o dissabor de encontral-os mutilados, defeituosos, com folhas de menos, comidas pelas ratazanas collaboradoras roazes do gallicismo na ruina da boa linguagem quinhentista. Folheei o Entendimento literal e constrviçam até paginas 154, e aqui achei um quarto de papel almaço amarellecido, com umas linhas de lettra esbranquiçada, mas legivel e regularmente escripta. O contheudo do papel, onde se conheciam vincos de dobras, era o seguinte:

José, teu irmão, quando eu hoje sahia da Igreja, onde fui pedir a Nossa Senhora a tua vida ou minha morte, disse-me que eu não tardaria a pedir a Deus pela tua alma. Eu já não posso chorar mais nem rezar. Agora o que peço a Deus é que me leve tambem. Se não morrer, endoudeço. Perdoa-me, José, e pede a Deus que me leve depressa para ao pé de ti.

Martha.

Não é preciso ser a gente extraordinariamente romantica para interessar-se, averiguar, querer noticias das duas pessoas que tem n'estas linhas uma historia qualquer, mais ou menos vulgar. Occorreu-me logo que o estudante, a quem o livro pertencera, tinha morrido na flôr dos annos. Além d'isso, na margem superior do frontespicio do volume, está escripto o nome do possuidor—José Dias de Villalva, e a carta é dirigida a um José. Conclui ser o cunhado da viuva quem recebêra a carta.

Voltei a casa da snr.ª Joaquina, muito açodado, como um anthropologista que procura um dente pre-historico, e perguntei-lhe se o seu cunhado se chamava José Dias; e se tinha alguma conversada, quando morreu.—Que sim, que o cunhado era José Dias e que morrêra pela Maria da Fonte.

—Pois elle amou a Maria da Fonte?—perguntei com ardente curiosidade historica, para esclarecer a minha patria com um episodio romanesco das suas guerras civis. Ella sorriu e respondeu:

—Agora! Quer dizer que o meu cunhado morreu quando por ahi andavam os da Maria da Fonte a tocar os sinos e a queimar a papellada dos escrivães, sabe vm.?—Acho que foi então ou por perto. E ajuntou:—Elle gostava ahi muito d'uma moça, isso é verdade. Era a Martha...

—Martha?—disse eu com a satisfação de vêr confirmada a assignatura do bilhete.

Vm. conhece-a?

—Não conheço.

—É a brazileira de Prazins, a mulher do Feliciano da Retorta, que tem quinze quintas entre grandes e pequenas.

—Bem sei; mas nunca vi essa mulher.

—Não que ella nunca sae do quarto; está assim a modos de atolambada ha muito tempo. Credo! ha muitos annos que a não vejo. Dá-lhe a gota, salvo seja, e estrebucha como se tivesse coisa má no interior. É uma pena. Não sabe o que tem de seu. O Feliciano é o homem meus rico d'estes arredores, e vivem como os cabaneiros, de caldo e pão de milho. Elle quando vai ao Porto receber um alqueire de soberanos que lhe vem do Brazil todos os annos, vai a pé, e mette ao bolso umas côdeas de borôa e quatro maçãs para não ir á estalagem.

Interrompi com interesse de artista:

—Disse-me que ella endoudecera. Foi logo depois da morte do seu cunhado?

—Isso já me não escordo. Quando eu vim casar para aqui já meu cunhado tinha morrido. O que me lembra é dizer-me o meu defunto, que Deus tem, que o rapaz ganhou doença do peito p'rámôr d'ella. Esses casos ha muita gente que lh'os conte. Ha por ahi muito homem do seu tempo. Pergunte isso ao snr. reitor de Caldellas que andou com elle nos estudos e sabe todas essas trapalhadas.—E n'um tom de noticia festival:—Olhe que o gatinho nasceu esta noite; lá lh'o mando assim que estiver creado. Quer que lhe corte as orelhas e o rabito?

—Faça-me o favor de lhe não cortar nada.

Eu tinha lido, dias antes, a judiciosa critica de uma dama ingleza á nossa costumeira de desorelhar e derrabar gatos. Ella, lady Jackson, escreve que lhe fazem compaixão os pobres bichanos que, sem cauda nem orelhas, estão como que envergonhados de si mesmos. Excellente senhora!

Pedi que me apresentassem ao reitor de Caldellas na feira de Santo Thyrso. Achei-lhe um semblante convidativo, animador a entabolar-se com elle uma indagação de curiosidades sentimentaes.

Fazia respeitavel a sua batina sem nodoas o padre Osorio. Parece que tambem as não tem na vida. Passa por ser um velho triste, que não teve mocidade, nem as ambições que supprem os dôces affectos do coração mutilados pelo calculo ou congelados pelo temperamento. Ha trinta e dous annos que pastoreia uma das mais pobres freguezias do arcebispado. Prégou alguns annos com applauso dos entendidos e inutilidade dos peccadores. A rhetorica é a arte de fallar bem; mas os vicios são a arte de viver bem e alegremente. Assim se pensa, embora não se diga.

Como prégava gratuitamente, o vigario de Caldellas era chamado por todos os mordomos e confrarias festeiras. Quando se esgotavam os panegyricos dos santos mais ou menos hypotheticos, pediam-lhe que prégasse da cura milagrosa d'umas maleitas ou d'um leicenço—casos que a pobre Natureza e o periodico chamado Esculapio só de per si não poderiam explicar.

O vigario subia ao pulpito e improvisava coisas de grande engenho em linguagem muito singela. Affirmava que Deus era tão bom, tão previdente, que dera á condição enfermiça do homem forças vitaes, sobrecellentes que resistiam á destruição; e que a Natureza, grande milagre do seu Creador, só de per si era bastante para a si mesma se restaurar. Ora, um abbade rico, bacharel em theologia, que lhe ouvira estas idéas assaz naturalistas, perguntou-lhe, á puridade, se elle negava os milagres. O reitor respondeu que a respeito das sezões e dos leicenços acreditava mais na lanceta e no sulfato de quinino. Depois, accrescentou:—Deus fez o supremo milagre da sciencia para centuplicar as forças á natureza enfraquecida.—O theologo enrugou scientificamente a fronte cheia de suspeitas e replicou:—O snr. reitor foi ferido da peste do seculo. Está iscado de Voltaire e de Alexandre Herculano. Deixou-se contaminar. Mundifique-se. Estude mais e melhor.—O reitor de Caldellas afastou-se triste, e nunca mais frequentou o pulpito.

Estas informações e o aspecto lhano, harmonico do padre, animaram-me a dizer-lhe que solicitara o seu conhecimento para lhe pedir alguns esclarecimentos a respeito de uma carta encontrada em um livro que pertencera ao seu condiscipulo José Dias de Villalva. Recorda-se? perguntei.

—Se me recordo do meu pobre José Dias! Pois não recordo? Parece-me que ainda sinto n'este braço o peso enorme da sua face morta, e já lá vão trinta e cinco annos. É preciso ter na alma dolorosas reminiscencias para se recordar um amigo morto ha tantissimo tempo, não lhe parece? Como sabe v. que existiu esse obscuro filho de um lavrador?

Mostrei-lhe a carta. O padre olhou para a assignatura, gesticulou affirmativamente, e, após uma breve pausa de recolhimento com as suas recordações, disse:

—Fui eu que puz esta carta entre as paginas de um livro do Dias. O meu pobre condiscipulo, quando este papel lhe foi mandado á cama, já não o podia lêr. Tinha cahido no torpor, na indifferença que, a meu vêr, é a compaixão da Providencia pelos que morrem amando e não querendo morrer. Já não via a vida nem a morte. Li esta carta; e, como elle nada me perguntou, eu nada lhe disse... Agora me recordo perfeitamente. Era um commento de Horacio que eu lia nos seus intervallos de modorra, afim de dar ao meu animo uma folga que me fortalecesse para resistir ao golpe final. Já sei pois o que você deseja. Quer saber se esta Martha está no caso de merecer a consagração romantica que Bernardin de Saint-Pierre usurpou ás dôres verdadeiras, para coroar d'uma eterna aureola a sua phantastica Virginia.

—Não vou tão longe, respondi com a modestia genial dos escriptores que immortalisam. A brazileira de Prazins não póde contar com o seu immortalisador em mim, nem me parece bastante fecundo o assumpto. Sei que temos um namoro de uma menina com um estudante, o estudante morre e a menina casa com um sujeito que tem quinze quintas. Se não ha mais do que isto...

O cura interrompeu:—Vejo que sabe quem é Martha; mas não a conhece bem. Virginia e Francesca e Julieta não são mais dignas de piedade nem de romance. Parece-me que o amor que enlouquece e permitte que se abram intercadencias de luz no espirito para que a saudade rebrilhe na escuridão da demencia, é incomparavelmente mais funesto que o amor fulminante. O que é vulgar é morrer logo ou esquecer quinze dias depois. Quando eu tinha uma irmã que lia novellas, á custa de lh'as ouvir analysar com um enthusiasmo digno de melhor emprego, achei-me envolvido na litteratura de Sue, de Soulié e de Balzac, a ponto de fazer presente do meu santo Affonso Maria de Ligorio e da minha Theologia moral de Pizelli a um padre bom e atinado que me prophetisou que minha irmã havia de morrer doudas a scismar nas patacuadas das novellas. Ella não morreu douda; mas pensava em romancear a historia de Martha, porque dizia ella que, tendo lido trezentos volumes de novellas, não encontrára caso imitante.—E, dando-me o bilhete de Martha: Este quarto de papel é o exordio de uma agonia original.

Como a exposição do reitor sahiu muito enfeitada de joias sentimentaes—detestavel especie archeologica que ninguem tolera,—farei quanto em mim couber por, uma a uma, ir mondando e refugando as flores de modo que as scenas dramaticas se exponham aridas, bravias como sêrro de montanha por onde lavrou incendio, sem deixar bonina, sequer folhinha de giesta em que a aurora imperle uma lagrima. A Aurora a chorar! de que tempo isto é! Como a gente, sem querer, mostra n'uma idéa a sua certidão de idade e uma reliquia testemunhal da idade de pedra! Oh! os bigodes tingem-se; mas as phrases—madeixas do espirito—são refractarias ao rejuvenescimento dos vernizes.

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