Martha era filha de um lavrador mediano que tinha em Pernambuco um irmão rico de quem dizia o diabo. Chamava-lhe ladrão porque, no espaço de vinte annos, lhe mandara tres moedas, com os seguintes encargos: á mãe 6$000 réis fortes, ás almas do Purgatorio, de Negrellos, 3$000 réis tambem fortes, que lh'os promettera quando embarcou, e o resto para elle—«5$400 réis, dizia, é que o maroto, podre de rico, me mandou em vinte annos!»
A rapariga conversou diversos mancebos, uns da lavoura, outros da arte, e, afinal, quando o pai lhe negociava o casamento com um pedreiro, mestre de obras, muito endinheirado e já maduro, appareceu o José Dias, filho d'um lavrador rico de Villalva, a namoriscal-a. Este rapaz estudava latim para clerigo; mas, como era fraco, de poucas carnes e amarello, o cirurgião disse ao pai que o moço não lhe fazia bem puxar pelas memorias. Os padres do Minho, n'aquelle tempo, não puxavam quasi nada pelas memorias; ordenavam-se tão alheios ás faculdades da alma que, sem memoria nem entendimento, e ás vezes sem vontade, eram soffriveis sacerdotes, davam poucas syllabadas no Missal e liam os psalmos do Breviario com uma grande incerteza do que queria dizer o penitente David. Pois, assim mesmo, sendo tão facil a ordenação—uma coisa que se fazia com uma perna ás costas, diziam certos vigarios—sem precisão absoluta de puxar pelas memorias, o Joaquim Dias quiz tirar o filho do latim que lhe ensinava um egresso da Ordem Terceira, o Fr. Roque. Este padre-mestre tinha uma irmã paralytica; sabia lêr, e prendas de costura, marcava, fizera um pavão de missanga, não desconhecia o crochet e ensinava raparigas para se distrahir.
No quinteiro do padre-mestre Roque foi que o José de Villalva se affez a reparar na Martha de Prazins, uma rapariga muito alva, magrinha, de cabello atado, muito limpa, com a sua saia de chita amarella com dois folhos, jaqueta de fazenda azul com o forro dos punhos escarlates, muito séria com proposito de mulher e ares muito sonsos—diziam as outras, que lhe chamavam a songuinha. Os outros estudantes, rapazolas vermelhaços, refeitos, grandes parvajolas, com grandes nacos de borôa nas algibeiras das vesteas de saragoça de varas, e os velhos Virgilios ensebados em saquitos de estopa suja, diziam graçolas a Martha—chamavam-lhe boa pequena, franga e peixão. O José Dias, arredado do grupo dos trocistas alvares, via-a passar silenciosa, indifferente aos gracejos, olhos no chão, e um grande resguardo na barra da saia quando subia a escada. Os rapazes, aquelles embriões de abbades, como a escada de pedra era ingreme e aberta do lado do quinteiro, punham-se a espreitar as pernas das alumnas da paralytica, pela maior parte raparigas entre doze e dezeseis annos, muito musculosas, com pés grandes e os tecidos repuxados e cheios pelo exercicio dos carrêtos nas safras da lavoira.
Martha ia nos quatorze quando o pai a quiz tirar da mestra. Chegára-lhe aos ouvidos que os estudantes, má canalha, lhe impeticavam com a filha. Queixou-se a Fr. Roque.
O egresso, resfolegando honradas coleras e pulverisações de esturrinho, mandou enfileirar os gargajolas na quadra da aula, e chamou a Martha.
—Qual foi d'estes tratantes o que implicou comtigo, cachopa?—perguntou o padre-mestre olhando-a por cima dos oculos, orbiculares, com as hastes oxidadas d'um cobre antigo. E, apontando para o primeiro da fileira que era o José de Villalva:
—Foi este?
—Esse nunca me disse nada—respondeu com a voz tremula, toda vermelha, a rapariga.
—Foi este?
Martha não ergueu os olhos nem respondeu.
—Então, môça? qual foi dos nove? Dize lá. Tu que te queixaste é que algum embarrou por ti.
—Eu não me queixei...—murmurou a interrogada.
Verdadeiramente ella não se queixára. Foi o Zeferino, o filho do alferes da Lamella, o mestre pedreiro que andando a construir um canastro na eira do padre-mestre, observára que os estudantes rentavam á cachopa, e ageitavam-se em attitudes abrejeiradas, como de quem espreita, quando ella subia a escada.
O denunciante ao pai de Martha foi elle, o pedreiro abastado, não porque o espicaçassem n'essa denuncia o zelo dos bons costumes, e um justo odio ás concupiscentes espionagens dos rapazes, mas por que gostava, devéras, da môça. Elle passava já dos trinta e dois e era a primeira vez que sentia no coração as alvoradas do amor, Fr. Roque, averiguado o caso, advertiu o pedreiro que não fosse má lingua, que não andasse a difamar os seus discipulos, que se preparavam para o sacerdocio—uma coisa séria. O episodio acabaria assim menos mal, se dois dos estudantes, que se preparavam para o sacerdocio, mais fortes no fueiro que nas conjugações, desistissem de o moer a pauladas, uma noute, n'um pinhal. O mestre d'obras iniciou-se pelo martyrio obscuro n'um amor que principiava bastante mal. Elle nunca soube ao certo quem lhe batêra, e attribuiu a sova a émulos na arte, covardes e mysteriosos, por causa da construcção de uma egreja que elle desdenhára, citando as regras do Vignola. Vinha a ser o desastre uma tenda por motivos de architectura—um martyrio de artista. Invejas. Por causa da Arte padecêra o seu collega Affonso Domingues, o architecto da Batalha, e João de Castilho, o do convento de Thomar, e já tinha padecido seu mestre, o Manoel Chasco, a quem inimigos quebraram a cabeça na feira dos 21, por que elle, desfazendo na obra d'um collega, dissera que o botaréo d'um cunhal estava torto.
Passado tempo, Martha sahiu prompta da mestra. Lia a cartilha do Salamondi e o Grito das almas, decifrava menos mal umas sentenças velhas que havia na casa de Prazins, monumentos das ruinas de antigas demandas, e escrevia regularmente. A primeira carta que escreveu por pauta foi para o tio de Pernambuco, o tio Feliciano. Pedia-lhe a sua benção e duas moedas de ouro para umas arrecadas. Era o pai que lhe ditava a carta, cheia de lastimas mendigas, mentirosas, historietas velhacas de penhoras, as grandes decimas, a ferrugem das oliveiras, o bicho da batata, o gorgulho que pegára no milho, muitas alicantinas.
—Que era a vêr se o ladrão mandava alguma coisa, dizia elle, pondo cuspo na obreia vermelha para fechar a carta.
A segunda carta, que ella escreveu já sem pauta, foi a José Dias, ao estudante, que já não estudava por causa das memorias nocivas á sua saude fraca, um pelém.
N'este tempo já o Zeferino da Lamella se tinha declarado com o Simeão de Prazins, de um modo quasi original.
—Você quanto deve, ó tio Simeão?—perguntou.
—Quanto devo? Você quer pagar-me as dividas?
—Pôde ser. Você deve á Irmandade de N. Senhora de Negrellos um conto e cem mil réis; você deve de tornas a seu irmão quatrocentos. Ha-de andar lá para um conto e quinhentos, p'ra riba que não p'ra baixo.
—É isso; você sabe a minha vida melhor que eu a sua—um conto e quinhentos e pico.
—Quanto é o pico?
—Obra de dez moedas, mais pinto menos pinto. Miudezas na loja ao mercador e um réstito da vacca amarella que comprei ao Tarracha na feira dos 13.
—Você quer fazer um cambalacho?—tornou o pedreiro recuando o chapéu para a nuca e pondo-lhe as mãos espalmadas com força nos hombros.
—Se pintar... Já sei o que você quer... Não me serve. Você quer comprar-me o lameiro da azenha—não vendo.
—Eu ainda lhe não disse o que queria, tio Simeão. Olhe bem para mim. Você está a fallar c'um home. Pago-lhe as dividas, você não fica a dever nada, e eu caso com a sua Martha. Póde dar os bens ao outro filho que eu não lhe quero uma de X.
—Você falla serio, ó sôr Zeferino?
—Se fallo serio?! Então você não sabe com quem é trata.
—Ora bem—entendamo'-nos—é a rapariga que você quer, a rapariga estreme, sem dote nem escriptura?
—Eu não tenho senão uma palavra. Já lhe disse que sim.
—A rapariga é sua.
Negociára a filha com o Zeferino como tinha negociado com o Tarracha a vacca amarella na feira dos 13. Eis um caso exquisito de aldeia que pela torpeza parece acontecido n'uma cidade culta. Conversou-se este dialogo debaixo de um castanheiro frondoso, com um pavilhão de folhagem gorgeado de passaros, com uns tons de luz esverdeada, na dôce placidez crepuscular de uma tarde de agosto, entre dous homens de tamancos, arremangados, com os peitos cabelludos a negrejar d'entre os peitilhos da camisa surrada de suor e poeira, brutos no gesto e na phrase. Analogas passagens, com estylo pouco melhor, tem sido dramatisadas nas salas, entre homens da melhor polpa e casca social—uns que mandaram ensinar ás filhas os verbos francezes e são assignantes do Journal des Dames que marca ás meninas a balisa até onde póde chegar o arrojo da lingua franceza e os seus mais avançados destinos. Da outra parte, homens ricos, de figado engorgitado, fatigados, sedentos de senhoras finas que ponham no luxo das suas salas os tons vivos da carne constellada de diamantes. É o epilogo de vinte annos de lavra dura, o substratum da compra de negras a milhares:—comprar uma branca, das que o amor pobre e o talento esteril não podem negociar. O contracto feito em Prazins—eis a differença—por parte do pedreiro era um heroismo: dava o seu dinheiro por aquella mulher; daria mais depressa o seu sangue. Era uma paixão das que não pegam com os dentes anavalhados em corações civilisados, quasi desfeitos. Ora, os pedreiros que vem d'além-mar, e se vestiram no Pool ou no Keil, não amam nem compram assim. Fazem o dote economico, comezinho á esposa. Compram uma machina de propagação, condicionalmente. Se, extincto o comprador, a machina, não deteriorada, tiver pretendente, o substituto que a compre. O defunto prefere que a sua viuva, adelgaçada e espiritualisada por jejuns, lhe converse com a alma.