As sete da noite a soirée do monarcha de Calvos compunha-se do visconde Nunes, seu secretario privado e brigadeiro de infanteria, do abbade capellão-mór de el-rei, de dois reitores, conegos despachados, e o ex-sargento-mór de Rio Caldo nomeado capitão-mór de Lanhoso. Estavam todos em pé resistindo á licença de se sentarem. A cadeira de sola estava com o principe encostada ao relogio; e, na mesa central, papeis, o tinteiro de chumbo, o Novo Principe, de Gama e Castro, a Besta esfolada e o Punhal dos corcundas, do bispo fr. Fortunato. Em cima das caixas do milho estavam em meio alqueire com feijões brancos destinados ás tripas, e dois folles vasios que a Senhorinha tencionava encher de grão para a fornada quando el-rei se recolhesse. Sobre um dos folles resbunava um gato enroscado.
Esperava-se o apresentante da carta de Vasco da Cerveira.
Ás oito horas annunciaram-se os adventicios. O barão de Bouro entrou primeiro a passo mesurado, com o peito alto, e o pescoço hirto n'uma gravata enchumaçada, preta, de cordãosinho de arame, sem laço, atacando os lobulos das orelhas, um pouco reintrante na altura dos gorgomilos. Usava oculos de oiro quadrados, e uma pêra grisalha; de resto, rapado. Envergava casaca nova de lemiste, muito refestelada, de abas compridas com ancas proeminentes, segundo a moda; de cós das calças, côr de gemma de ovo, pendiam berloques com armas, uma medalha com o retrato de D. Miguel aos vinte e dous annos, a uma peça de oiro com a mesma real effigie. No peito da camisa, entre as lapellas do collete de velludo côr de laranja, trazia pregado um punhal esmaltado, em miniatura, enygma convencional dos cavalleiros de S. Miguel da Ala, obra patriota do ourives Novaes, pai do poeta Faustino.
De pés elle, entrou o Zeferino das Lamellas, muito enfiado, n'um spasmo, sentindo-se aluir pelos joelhos. Ia de niza de panno azul com botões amarellos, calça branca espipada com joelheiras pelos atritos do alhardão. As pernas das calças chegavam apenas a meio cano das botas, que pelo tamanho dos pés dir-se-iam roubadas a um gigante.
O Bezerra dobrou o joelho, inclinando o tronco á mão esquiva de sua magestade. Por de traz d'elle, o Zeferino ajoelhára batendo com ambas as rotulas no taboado. O barão ia fallar, quando o rei, reparando no outro, disse:
—Levante-se, homem! Isto aqui não é capella.
O pedreiro teimava, achava-se bem n'aquella postura que o dispensava de procurar outra.
—Sua magestade manda-o levantar—disse o visconde Nunes.
Ergueu-se, e n'um impeto silencioso ia entregar a carta ao da cadeira, quando o capellão-mór lhe observou que as cartas se entregavam ao secretario.
O barão expoz que não pudéra resistir aos pedidos que aquelle honrado legitimista lhe fizera para o acompanhar, porque não se atrevia a entrar sósinho á presença d'el-rei, seu amo. Que era filho de um bravo alferes, o Gaspar das Lamellas, que em 1838, á frente de 300 homens, atacára a villa de Santo Thyrso, dando vivas a el-rei. Contou a façanha de atravessar o Ave a nado em janeiro, com a espada nos dentes, e que por causa d'isso entrévecera e nunca mais se levantou.
—Oh!—interjecionou compungidamente o monarcha.—Eu ignorava esse notavel ataque ... estava em Roma, sem noticias... Digno homem o meu honrado e bravo ... como se chama seu pai?
—Saberá vossa magestade que se chama Gaspar Ferreira.
E o rei:
—Visconde, escreva na lista.
O Nunes sentou-se á mesa, pedindo venia a sua magestade que ditou:
—Gaspar Ferreira, reformado em coronel de infanteria, com vencimento desde 1838. Escreva á margem: Batalha de Santo Thyrso. E voltando-se para Zeferino que ladeava para a parede:
—Diga a seu bravo pai que lhe dei a reforma em coronel, e vencerá soldo dos sete annos passados.
O Zeferino abriu a bôca para dizer o que quer que fosse.
—A carta do meu velho amigo Teixeira?—perguntou o rei ao visconde Nunes.
—Cerveira, perdôe vossa magestade, Cerveira Lobo.
—Ah! sim ... Cerveira Lobo.
Abriu, leu para si, passou a carta ao secretario, e commentando exultante:
—Um grande amigo! dos raros! um dos nossos melhores esteios! Com homens assim dedicados, o triumpho é certo. Posso dizer com o grande vate Camões:
E dir-me-heis qual é mais excellente
Se ser do mundo rei, se de tal gente.
Um dos reitores que estavam na penumbra, lá em baixo ao pé das caixas, olhou com espanto para o outro, que lhe disse á puridade, discretamente:
—Diz que elle tem estudado o diabo ... até o latim!
El-rei proseguiu:
—Vou responder por meu proprio punho ao meu nobre amigo. É digno d'esta e de maiores considerações. Visconde, escreva na lista: Vasco da Cerveira Lobo, general de cavallaria, e conde de Quadros. Depois, tirou de uma velha pasta de papellão uma folha de almasso, sentou-se a escrever—e que conversassem.
O abbade, capellão-mór, aproveitou o ensejo para servir vinho do Douro e pasteis de Guimarães, cavacas do convento dos Remedios e forminhas.
Havia mastigação de mandibulas pesadas; as forminhas eram frescas, muito torriscadas, davam rangidos n'uma trincadeira voluptuosa. Conversava-se em dous grupos. O sargento-mór de Rio Caldo contava passagens de caça no Gerez, com emphaticos arremedos, movimentados, da altaneria. Que o porco bravo viera direito a elle, e cortava matto, troncos de giestas como a sua coxa—e mostrava—; tinha apanhado de raspão a cadella, a Ligeira, raça de todos os diabos que o atacava pela orelha, e ficou aleijada para nunca mais; e elle então cahira sobre a esquerda, e trepara á fraga da Portella, e esperára o porco na clareira; e mal elle apontou, pumba! metteu-lhe tres zagalotes no quadril.
—A gente a fallar incommóda talvez el-rei...—observou o barão de Bouro.
—Podem conversar á vontade, que não me incommodam.
—Aquillo é que é cabeça!—disse baixinho, tocado, um dos conegos a outro conego.
Generalisou-se a cavaqueira. Faziam-se brindes laconicos, circumspectos, com um grande respeito, indicando-se el-rei por um simples gesto de olhos.—A virar! a virar!—Carminavam-se os conegos. O dom Prior de Guimarães suggeriu uma lembrança graciosa ao barão. Que havia dois padres Marcos, ambos priores de Guimarães. Mas o legitimo, o de S. Gens de Calvos, dizia do outro:
—Forte bebedo!
O visconde Nunes ria-se sarcasticamente; e emquanto os padres n'um crescendo palavroso, expluiam sarcasmos ao outro padre Marcos, o secretario privado curvou-se sobre o hombro de el-rei e segredou-lhe:
—Carrega-lhe!
—Ora!...
—Quanto?
—2.
—3. Anda-me. 3.
—Será muito!...
—Bolas. 3, por minha conta. Coisa limpa.
E, em voz alta e voltado para o grupo:
—El-rei pergunta se o snr. Conde de Quadros tem familia, se tem senhora e filhos.
O Bezerra perguntou ao Zeferino.
—Que soubesse sua Magestade, disse o pedreiro, mais animado, que o fidalgo de Quadros tinha dois rapazes e tres raparigas, uma já casada; mas que a fidalga, a mulher d'elle, aqui ha annos atraz, tinha fugido com o doutor dos Pombaes, e nunca mais voltára.
—Desgraças!—disse o capelão-mór—desgraças! A corrupção dos tempos... Se se não acudir quanto antes a isto, não sei que volta se lhe ha-de dar.
Fez-se um silencio condolente. Todos sentiam o caso infausto.
O rei continuava a escrever, de vagar, pulindo a frase, boleando os periodos; achava difficuldades em se medir com as locuções redondas e muito adjectivadas da rethorica do padre Rocha. Animava-o, porém, a idéa de que D. Miguel não tinha fama de sabio, e que a sua carta seria mais verosimil com alguns aleijões grammaticaes.
Releu a carta, e accrescentou ás virgulas. Pediu obreia ao Munes. Acudiu o padre com uma quadrada, de certa grandeza, vermelha, cuidadosamente recortada.
O envelope ainda não tinha subido até Lanhoso. Sua magestade dobrou em quatro a folha do almaço e sobrescriptou—Ao conde de Quadros, general do Exercito real.
N'esta occasião, o Christovão Bezerra chamou de parte o Nunes, fallou-lhe em segredo, e terminou em voz alta: «se for do agrado de sua magestade.»
—Eu vou fallar a el-rei—disse Nunes com satisfatoria condescendencia.
Acercou-se do outro, com os braços pendentes, os pés juntos, um pouco inclinado, e fallou-lhe baixo.
—Sim—respondeu o monarcha.
—Está servido, snr. barão—communicou o secretario, e foi registar no livro das mercês, proferindo em voz alta: Sua magestade há por bem nomear sargento-mór das Lamellas Zeferino Ferreira, em attenção aos serviços de seu pai, o coronel Gaspar Ferreira.
—Vá agradecer a el-rei, snr. sargento-mór—disse o barão de Bouro ao pedreiro. Zeferino foi ajoelhar, querendo beijar as botas ao homem.
—Levante-se, amigo—disse o principe.—Aqui tem a resposta da carta do meu amigo Cerveira Lobo. É necessario que ninguem veja este sobrescripto. Tome sentido, que ninguem saiba a quem esta carta é dirigida. Vá com Deus, e estimarei vêl-o aqui, snr. sargento-mór, com outra carta do meu honrado amigo, emquanto não posso abraçá-lo pessoalmente. Adeus.
A côrte sahiu em recuansos, dando-se mutuos encontrões para não voltarem as costas á magestade.
A creada appareceu então esfandegada para pôr a mesa, que estava a cela prompta, e que o frango com arroz não esperava—que era preciso comêl-o logo que estava feito. Ficou para cear o Nunes. Geava sempre com el-rei e com o abbade.
O Zeferino, que tinha ali a egua e conhecia o caminho, não quiz ir pernoitar a Santa Martha de Bouro. Havia luar e sahia um rancho de romeiros para o Bom Jesus do Monte. Partiu em direcção a Braga, e ao outro dia de tarde apeava no sonoro pateo da casa de Quadros por onde entrára com a egua em grande estropeada, com a cara escandecida n'uma congestão de jubilo.
O Cerveira estava a dormir a sesta.
—Apanhou-a hoje d'aquella casta! Como um cacho!—informou um caseiro.—Mandou apparelhar a poldra castanha do snr. Egas, com os coldres das pistolas, escanchou-se na sella, com a espada desembainhada e desatou a galope por debaixo das ramadas a dar gritos: «Avança, dragões! carrega, esquadrão!» Eu estava a vêr quando o levava a breca de encontro a um esteio de pedra, que malhava abaixo da burra como um dez!... Depois o snr. Egas e mais o snr. Heitor lá o apearam como puderam, e foram-n'o pôr a dormir. Arre diabo! lá que um homem uma vez por outra apanhe um pifão, vá; mas embebedar-se todos os dias, é muito feio! E depois ninguem se entende com elle. Medra com o suor dos pobres. Um fona. Que vá para o diabo, que o carregue. Tanto se me dá como se me deu. Se me mandar embora, boas noutes. Não é capaz de perdoar um alqueire de milho a um caseiro! Tem vinte mil cruzados de renda, não gasta nem cinco, andam os filhos a vender o matto e os pinheiros, uma vergonha, porque elle, a dois homens gastadores, que tem amigas, uma a cada canto, dá cada mez vinte pintos para os dois! O homem deve ter muita somma de peças enterradas! Qualquer dia cae-lhe ahi em casa o José Pequeno da Lixa que lhe põe a faca ao peito até elle pôr ali o dinheiro á vista. Diz que quer comprar mais terras, e aqui ha dias offereceu seis contos pela quinta do Lopes de Requião. Veja você. Tem seis contos ao canto da gaveta, e ainda não deu cinco réis que são cinco réis á filha, á D. Therezinha que casou com o estudante das Quintans. Anda por lá de socas, sem meias, a fazer o serviço da cozinha. E estão ahi as outras duas, que parecem umas fadistas, nas romarias, e, quando Deus quer, topa a gente de noute por esses quinchosos esses marotos dos engenheiros e empreiteiros a saltarem paredes para se irem metter com ellas na casa do palheiro. Uma vergonha, mestre Zeferino, a vergonha das vergonhas! Eu sou um pobre; mas raios me parta, que se eu tivesse assim umas filhas... Olhe... (batia com o pé em cheio na relva) esmagava-as como quem esborracha, uma toupeira. Deus nos livre de bebedos! Deus nos livre de bebedos! Você bem sabe o que isso é, mestre Zeferino, que pelos modos lá por casa não tem pouco que aturar a seu pai que tambem as agarra muito profeitas! Olhe você como elle se tolheu quando foi, dia de natal, dar fogo aos de S. Thyrso! Aquillo só com meio almude no bucho!
—Não é tanto assim—atalhou o sargento-mór de Lamellas.—Não lhe digo que meu pai não tivesse algum graieiro na aza; mas o que elle fez não era você capaz de o fazer, tio Manoel.
—Ah! isso não, bem o póde dizer, mestre Zeferino. Nunca me emborrachei, aqui onde me vê com cincoenta annos já feitos; mas, se algum dia me emborrachar, que ninguem está livre d'isso, prego-me a dormir e não vou atirar-me ao Ave em dezembro! ágora vou, se Deus quizer. Vai-se pôr o alma do diabo a dar vivas ao D. Miguel! Qual Miguel nem qual carapuça! Se D. Miguel cá vier ha-de fazer tanto caso de seu pai como eu d'aquella bosta que ali está. O que elle devia era tratar de conservar os terrões, e fazer como você que se pôz a trabalhar e se fez pedreiro quando viu que os malhados lhe tomaram conta das terras. E d'ahi? Você hoje tem o seu par de mel cruzados, ganhados com o suor do seu rosto, e até já me disseram que você dava quinze centos ao de Prazins para lhe casar com a rapariga. É assim ou não é?
—Isso acabou—respondeu com desdem, irritado.—Agora não a queria nem que elle a dotasse com tres contos; entenda você o que lh'eu digo, tio Manoel, nem com seis contos! Você não sabe quem eu sou, mas brevemente o saberá. Pouco ha-de viver quem o não vir.
—Não sei quem você é? Ora essa... Já lhe disse que você é homem capazorio, honrado...
—Quero cá dizer outra, coisa... Você não entende... E Ouvindo abrir uma janella—lá está o fidalgo... Deixe-me lá ir.
E afastando-se do caseiro, ia dizendo comsigo:
—Que tal está o labroste! Um homem vem de fallar com el-rei, e topa com uma cavalgadura d'estas! Canalha ordinaria!...