VI

Na residencia do abbade Marcos Rebello, em S. Gens de Calvos, havia uma sala com alcova e janellas sobre uma horta arborisada. As pereiras, macieiras e abrunheiros principiavam a florir. Era no começo de abril. Alli, n'aquellas frigidas alturas, sopram as ventanias mordentes de Barroso, do Gerez, e gelam a seiva nos troncos filtrados da neve e das crystallisações glaciaes. Fazia frio. Na saleta caiada, muito excrementicia de moscaria, com tecto de castanho esfumaçado e o pavimento lurado do caruncho, havia a um lado duas caixas de cereaes, no outro algumas cadeiras velhas de nogueira de diversos feitios, esfarpeladas no assento; nas paredes duas lytographias—o retrato de D. João VI com o olho velhaco e o beiço belfo, e o marquez de Pombal sentado com o decreto da expulsão dos jesuitas, apontando parlapatonamente para a barra onde alvejam pannos de navios que levam os expulsos. Na velha cal esburacada e emporcalhada de escarros seccos de antigas catarrhaes, destacavam molduras de carvalho com dois paineis a oleo cheios de grêtas, S. Jeronymo no deserto, com uma cara afflicta, de tic doloroso, e Santo Antonio de Padua, n'um sadio en bon point, um bom sorriso ingenuo, com o Menino Jesus sentado, muito nutrido, em uma bola que os agiologos diziam ser o globo terraqueo. No centro da quadra estava uma banca de pinho pintada a ocre, com uma coberta de cama, de chita vermelha, com araras, franjada de requifes de lã variegada. Ao lado da banca, uma cadeira de sola, com espaldar em relevo e pregaria amarella com verdete; do outro lado havia um fogareiro de ferro com brazas e uma cesta de vêrga cheia de carvão. Entre as duas pequenas janellas de rotulas interiores e cachorros de pedra, trabalhava estrondosamente um relogio de parede com os frisos do mostrador sem vidro, cheios de moscas mortas, penduradas por uma perna, de ventres brancos muito inchados e as azas abertas.

Dez horas. Abriu-se então a porta da alcova que ringiu ligeiramente na couceira desengonçada, e sahiu um sujeito de mediana estatura, hombros largos, barba toda com raras cans, olhos brilhantes, pallido-trigueiro, um nariz adunco. Representava entre trinta e seis e quarenta annos. Sentou-se á brazeira e preparou um cigarro, vagarosamente, que accendeu na aresta chammejante de uma braza. Com o cigarro ao canto dos labios e um olho fechado pelo contacto agro do fumo, foi abrir uma das vidraças, e poz fóra a mão a sondar a temperatura. Coxeava um pouco. Recolheu a mão com desagrado e fechou a janella. Vinha subindo a escada de communicação com a cozinha uma mulher idosa, em mangas de camisa, meias azues de lã e ourelos achinelados. Pediu licença para entrar, fez uma mesura de joelhos sem curvar o tronco, e perguntou:

—Vossa magestade passou bem?

—Optimamente, Senhorinha, passei muito bem.

—Estimo muito, real senhor. O snr. abbade foi chamado ás oito horas para confessar uma fregueza que está a morrer d'uma queda, e deixou dito que puzesse o almoço a vossa magestade, se elle não chegasse ás nove e meia.

—Quando quizer, Senhorinha, quando quizer, visto que o abbade deu essas ordens e quem manda aqui é elle.

Da cozinha vaporava um perfume de salpicão frito com ovos. Sua magestade farejava com as narinas anhelantes, n'um forte appetite. A creada voltou com toalha, guardanapo, loiça da India, talheres de prata, e uma travessa coberta. Sua magestade, muito familiar, tirou de sobre a mesa uns cadernos escriptos, cosidos com sêda escarlate, e um grande tinteiro de chumbo com pennas de pato.

—Ora vossa magestade a incommodar-se! Valha-me Deus! eu tiro isso, real senhor! Não que uma coisa assim! Um rei a...

E o real senhor:

—Ande lá, Senhorinha, que eu ajudo. Um rei é um homem como qualquer homem.

—Credo! faz muita differença ... mesmo muita...

Ella descobriu a travessa a rir-se:

—Vossa magestade diz que gosta...

—Sardinhas de escabeche? Se gosto!... Vamos a ellas que estão a dizer—comei-me.

E atirou-se ás sardinhas com uma sofreguidão pelintra.

Depois, serviu-lhe rodelas de salpicão com ovos. Sua magestade gostava muito d'estas comezanas nacionaes. Já tinha comido tripas, e dizia que no exilio se lembrára muitas vezes d'esta saborosa iguaria com feijão branco e chispe, que tinha comido em Braga. O abbade de Calvos sensibilisava-se até ás lagrimas quando via el-rei a esbrugar uma unha de porco e a limpar as regias barbas oleosas das gorduras suinas. O terceiro prato era vitella assada. A Senhorinha trazia-lh'a no espêto, porque sua magestade gostava de ir trinchando finas talhadas, emquanto a cozinheira, de cocoras ao pé do fogareiro, conservava o espêto sobre o brazido, a rechinar, a lourejar. Bebeu harmonicamente o real hospede um vinho branco antigo, da lavra de um fidalgo de Braga, proprietario do Douro, que estava no segredo do ditoso abbade de Calvos—capellão-mór d'el-rei e dom prior eleito de Guimarães.

A creada assistia muito jovial áquella deglutição formidavel, e dizia particularmente ao abbade:—Este senhor, pelo que come, parece que tem passado muitas fominhas! Ninguem hade crêr o que sua magestade atafulha n'aquelle bandulho!—e dizia que lhe dava vontade de chorar, lembrando-se das lazeiras que elle tinha apanhado; porque o abbade contava que lêra no Deus o quer, do visconde de Arlincourt, que o snr. D. Miguel, em Roma, não tinha ás vezes 10 réis de seu para almoçar uma chicara de leite. E, perguntando a el-rei se era verdade aquillo—que sim, que chegara a essa extremidade; mas que preferia a fome a ceder os seus direitos e a felicidade dos seus vassallos pelos sessenta contos anuaes que lhe offereceram da Casa do Infantado, e que elle rejeitara.

Por fim, vinha o café. As fatias eram torradas ali, no fogareiro. S. magestade barrava-as de manteiga nacional,—preferia a manteiga do seu paiz, como a vitela, e o lombo do porco no salpicão portuguez, e o pé do porco nas tripas tambem portuguezas—tudo do seu paiz. Que rei, que patriota!—meditava o abbade de Priscos, bispo eleito de Coimbra, esmoncando-se e aparando as lagrimas ternas no alcobaça.

No fim do copioso almoço, el-rei fumava charutos hespanhoes, de contrabando; desabotoava o colete, dava arrôtos, repoltreava-se na cadeira de sola um pouco desconfortavel, e vaporava grandes columnas de fumo que se espiralavam até ao tecto.

A Senhorinha veio á beira d'el-rei, e disse baixinho:

—Saberá vossa magestade que está ali o snr. Trocatles.

—O...?

—Ai! Já me esquecia ... o snr. visconde....

—Que suba.

O sujeito que entrou era o Torquato Nunes, um sargento do exercito realista, de S. Gens. O rei ergueu-se e fecharam-se na alcôva.

A cozinheira dizia em baixo á outra creada de fóra:—Ó coisa! Mal diria eu que ainda havia de chamar visconde ao safardana do Trocatles!

E a outra, benzendo-se:—Não que elle, o mundo sempre dá voltas! Veja você! aquelle moinante que me pediu uma vez dois patacos p'ra cigarros, e por signal que nunca m'os pagou!

—Pois vês-ahi! Foi elle o primeiro que conheceu o snr. D. Miguel, é o que foi, a sua magestade gosta muito d'elle. Foi feliz o diabo do homem! Aquillo vai a governo, tu verás; e já ouvi dizer que o sobrinho d'elle, o padre Zé da Eira, o de Rio Caldo, que é zanagra, está conego. Limparam-se da carepa, é o que é. A mulher d'elle já botou no domingo passado a sua saia e jaqué de panno azul.

—E que rico panno!

—Pois vês-ahi...

Entrava n'esta conjunctura o abbade, esfadigado, suarento—que levasse o diabo a freguezia, que pouco tempo havia de aturar maçadas d'aquellas, para confessar uma bebeda de uma velha que tinha bebido de mais na feira da Povoa e cahira d'um valado abaixo. E elle?—perguntava—almoçou bem?

—Ora! não ha que perguntar, senhor! Aquillo, salvo seja, é como a cal d'uma azenha. É quanto lhe deitarem p'rá tripa. Coisa assim! Subiu agora p'ra lá o Nunes. Ai! já me esquecia, ó snr. abbade! Olhe que na villa já perguntaram se cá na casa estavam hospedes, porque vinham p'ra cá muitas comida. Que não vão elles pegar a desconfiar... Esta pergunta á moça traz agua no bico.

—E tu que respondeste, moça?

—Que vinham por cá jantar uns senhores padres, que agora era tempo de confesso...

—Andaste bem.

Quando o padre Marcos Rebello subia á sala, pedindo licença a meio da escada, já o rei e o visconde vinham sahindo da alcôva—um, aprumado na attitude da magestade, o outro, na do respeito, muito composto.

—Pede licença na sua casa, dom Prior?—disse el-rei.

O dom prior de Guimarães genuflectiu a perna direita; o soberano apressou-se a erguel-o.

Nada de etiquetas, já lh'o disse duzias de vezes.

—Não posso nem devo proceder d'outra maneira, senhor!

—Póde e deve que o mando eu.

E o abbade, inclinando-se com os brados em cruz sobre a batina:

—Saberá vossa magestade que o snr. capitão-mór de Santa Martha, a quem vossa real magestade fez barão de Bouro...

—Bem sei ... aquelle amavel cavalheiro...

—Perfeito cavalheiro—attestou o Nunes.

—Escreveu-me a carta que tenho a honra de depositar nas mãos de vossa magestade.

El-rei leu alto:

Amigo Dom Prior de Guimarães.—Um realista do concelho de Famalicão chegou ha pouco a esta casa, afim de que eu escrevesse ao meu nobre e velho amigo para obter de S. M. licença para lhe apresentar como portador de uma carta do snr. Vasco Cerveira Lobo, morgado de Quadros, e tenente-coronel que foi do regimento de dragões de Chaves. Diz elle que o snr. D. Miguel fôra amigo pessoal do dito tenente-coronel, e por isso entende, e eu tambem que será muito ao real agrado do nosso rei e senhor receber a carta d'este legitimista que nos pôde ser muito util, já pelo seu nome, como tambem pela sua riqueza. Ouvidas as ordens de S. M. F., queira transmittir-m'as...

—Estou-me recordando—dizia o principe pausando as suas reminiscencias—Cerveira Lobo ... tenente-coronel de dragões... O Cerveira, o meu amigo Cerveira...

—Que foi prisioneiro na Chamusca, quando o Urbano se passou para os liberaes com a cavallaria e mais o coronel de dragões, o Albuquerque—lembrou o Nunes, o visconde Nunes—V. magestade lembra-se?

—Perfeitamente. Dom prior, queira escrever ao barão e dizer-lhe que espero anciosamente a carta do meu amigo Cerveira.

Emquanto o abbade ia ao seu quarto escrever, o hospede disse ao ouvido do outro:

—Isto corre mal...

—Porque?!

—Se o homem cá vem, o meu grande amigo...

—Recebel-o como o teu grande amigo...

—Se me falla em particularidades ...

—Elle não sabe fallar em particularidades. É uma besta, muito rico, e disse-me o morgado do Tanque, de Braga, seu primo, que está sempre bebedo. Nem elle cá vem, tu verás ... Eu até acho que as coisas correm perfeitamente.—Ouviam-se os passos do abbade.—Tem dinheiro, elle tem muito dinheiro, ouviste?

Entrou o abbade.

—Só duas palavras. E leu: S. Magestade recebe com muito prazer a carta do snr. tenente-coronel Cerveira Lobo.

—Muito bem,—approvou el-rei.—Hoje á noite, com todos os resguardos que urgem as cautelas.

—Um homem, o Caneta de Braga, o chapelleiro com uma carta—annunciou Senhorinha—só a entrega em mão propria ao snr. abbade.

—Que entrasse.

O rei e o visconde metteram-se á alcova, simulando receios.

Era uma carta do abbade de Priscos, bispo eleito de Coimbra. Tinha a honra de enviar a el-rei cem peças, donativo que as senhoras Botelhas, de Braga, offereciam de joelhos a S. M. F. e diziam que todos os seus haveres estavam as ordens d'el-rei seu senhor.

E entregou dois grossos cartuchos, cintados por fitas cruzadas de sêda escarlate. E o Caneta muito pontual.

—Queria um recibinho, se lhe não custa, reverendo snr. abbade.

—Venha d'ahi que eu passo-lhe o recibo.

Os dois sahiram da alcova. Os rolos estavam sobre a mesa. Elles tinham ouvido fallar em recibo. O visconde Nunes, esgaziando os olhos, foi apalpar o embrulho, e muito baixinho:

—Arame! peza que tem diabo! é oiro! Começa a pingadeira! Vês?

O outro arregalou os olhos e deitou a lingua de fóra quanto lhe foi possivel. Nem parecia um rei!

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