O Torquato, antes de entrar em casa, foi á residencia. Ia mysterioso, circumvagava uns olhares cautelosos:—se ninguem o ouviria?—perguntava ao abbade Marcos.
E o abbade, entrepondo as cangalhas nas paginas do breviario,—pôde fallar, que estou sósinho. Que é?
—D. Miguel I está em Portugal—disse, curvando-se-lhe ao ouvido, com uma voz guttural.
—Você que me diz?! Como sabe isso? Pataratas!
—Chego agora do Porto; estive com o escrivão fidalgo, o Ferreira Rangel e com o abbade Gonçalo Christovão. El-rei está n'esta provincia. Desconfia-se que é em Braga, e o José Alvo Balsemão disse-me que talvez eu o visse brevemente no nosso concelho, porque o levantamento ha-de começar por aqui.
—Que me diz você, amigo Torquato?—sacudia os braços, fazia estalar os dedos como castanholas, tinha gestos mudos de exultação extatica—que ia escrever ao abbade de Priscos, que indagasse, que apparecesse...—É preciso trabalhar, preparar os animos...
—Chiton!—acudiu o Nunes com o dedo a prumo sobre o nariz. Nada de espalhafato! Não ferva em pouca agua, abbade. Se dér á lingua, esbarronda-se o negocio. O rei só ha-de apparecer aos seus amigos quando os generaes entrarem pela Gallisa. Não falla a ninguem; não se dá a conhecer. Diz que só fallára em Lisboa com o conde de Pombeiro e com o Bobadella, e no Porto com o José Antonio, o morgado do Bom Jardim, e mais com o padre Luiz do Torrão... O abbade conhece.
—Pois não conheço? como as minhas mãos; é o vice-rei nas provincias do norte ... o nosso bom padre Luiz de Souza que pelos modos está nomeado patriarcha de Lisboa... Que pechincha, hein?
—É esse mesmo... Bem! até logo; vou vêr a mulher e os filhos a casa, que ainda lá não fui. Um abraço, amigo abbade! Parabens! A choldra vai cahir! Vida nova! D'aqui a um mez está todo esse Minho em armas, e el-rei á frente dos seus vassallos. Outro abraço, e viva el-rei!
Lagrimas jubilosas, como contas de vidro sujas, tremeluziam nas palpebras inflammadas do abbade.
—Jante comigo, Nunes, jante comigo! Vai-se abrir uma de 1815, á saude d'el-rei!
—Parece que me estoira a pelle! Não estou em mim!—Que ia vêr a mulher e que voltava já.
Na noite de sabbado para domingo de carnaval, o Verissimo pernoitou na Povoa de Lanhoso, na estalagem do Rêlhas.
Disse ao estalajadeiro que era de longe e andava a viajar pela provincia. Perguntou se por ali não se festejava o entrudo. O bodegueiro informou que na Povoa havia guerra de laranjadas e ás vezes pancadaria de senhor Deus misericordia; mas que na freguezia de Calvos havia comedias nos tres dias de entrudo, por signal que o seu filho, um barbado que ali estava, com uma cara angulosa muito alvar, fazia de namorado no Medico fingido, um entremez coisa rica, que era de um homem malhar de costas n'aquelle chão a rir—que se elle quizesse vêr as comedias, podia ir com o seu rapaz, que lhe arranjava lá uma cadeira de casa do abbade.
O scenario para a representação do Medico fingido arranjou-se na eira do Gonçalves, muito espaçosa e ageitada, porque as figuras entravam e sabiam, conforme a rubrica, do palheiro que tinha tres portas. O palco, barrado de ferro, ainda humido, estava ao abrigo de cobertas de chita alinhavadas umas nas outras, retezadas nas pontas por postes de pinho que rematavam em forquilhas para receberem uns varaes lançados transversalmente. Havia dous mastros de castanheiro descascados, afestoados de buxos, alecrim e camelias, coroados por bandeiras vermelhas esburacadas. Parte dos mastros tinha uma listra em zig-zag pintada a zargão que se ia espiralando pelo pau acima, com cercadura de cruzinhas:—era obra de Chêta, um trôlha inspirado que já tinha pintado um painel das Alminhas, onde havia almas do sexo fraco com grandes têtas lambidas por lavaredas, e um rei coroado com a bôca aberta no acto de berrar queimado, e tamanha bôca que só cedia á de um bispo mitrado, muito impertigado, com o seu baculo. O trôlha ensaiára o entremez, e não entrava, porque lhe tinha morrido o pai, havia quinze dias, contava elle a um senhor de fóra, desconhecido, que tinha vindo com o galan, o filho do estalajadeiro da Povoa.
O Verissimo foi admittido aos camarins onde estavam sentados em caixas de milho e na salgadeira, os figurantes á espera da sua vez, já vestidos. Viam-se os personagens do entremez. Mathilde, amante de Almenio, uma ingenua, a protogonista da peça, a doente namorada, que levou o pai a trazer-lhe a casa o amante, o medico fingido. Este papel fôra confiado a um latagão official de carpinteiro, com os pulsos cabelludos e os nós dos dedos com umas protuberancias callosas que pareciam castanhas piladas antigas. Nas maçãs do rosto mascarrára duas zonas de carmim, que pareciam a distancia umas chagas de mendigo de romaria aperfeiçoadas. Trajava um vestido de setim branco da fidalga velha de Rio Caldo, feito em 1824 para um baile que houve em Braga aos annos de D. João VI. O peito chato do carpinteiro ficava á altura dos quadris da fidalga, e as claviculas espipavam as hombreiras do corpête, prendendo os movimentos ao desgraçado Mathilde. Posto que a scena fosse a Casa de Astolfo, pai da doente fingida, a velhaca estava de chapéu de palhinha com enorme telha enconchada e plumas brancas muito amarellecidas do môfo. O vestido era-lhe curto, mas lucravam com isso as pernas que se deixavam vêr até cima do jarrete, cingidas de fitas cruzadas que subiam d'uns sapatos de duraque sem tacões, feitos de proposito e em concordancia com os angulos reintrantes e salientes dos pés. Era o grotesco do horror. A creada de Mathilde, a Laberca, tambem vestia de setim azul-ferrete, um pouco menos antigo, emprestimo das senhoras de S. Crau, que o assoalhavam de vez em quando para os entremezes. Não tinha chapéu nem sapatos de duraque: obedecia mais á caracterisação natural. Na cabeça usava touca de folhos com laços de fita escarlate e nos pés os butes do amo com ponteira de verniz; elle era o creado do juiz de direito substituto; gosava creditos de representar papeis de lacaia fazendo rebentar a gente.
O Verissimo fez os seus cumprimentos ás duas damas, e manteve uma seriedade verdadeiramente real. O Almenio era o filho do estalajadeiro da Povoa de Lanhoso, o Rêlhas. Calças brancas, quinzena de velludilho, bengala de castão de prata, chapéu branco de castor e oculos. Disse ao Verissimo que punha os oculos para fingir de medico. Estava a um canto o gallego, o Gonçalo, aguadeiro da casa. Como não havia em Calvos o costume rigoroso dos aguadeiros, o trôlha ensaiador vestiu-o de almocreve, com as botas refegadas, faixa branca e em mangas de camisa, com uma monteira comprada em Tuy. A cara era ao proprio, d'uma verdade typica. O Pantufo, um saloio rico que queria casar com Mathilde, e foi bigodeado pelo fingido medico, vestia a melhor andaina de fato do presidente da camara, um apaixonado pelos entremezes, que a gravidade das suas funcções impedia de representar; mas emprestava a roupa e a intelligencia dramatologica. Havia mais duas figuras, o Falsete, e o Astolfo, que se estavam vestindo lá dentro, por detraz d'um ripado, que os deixava vêr em camisa enfiando as pernas sujas nas pantalonas, emquanto o trôlha lhes rebocava de vermelhão as caras.
O Nunes atravessára a eira, e endireitára para o palheiro, quando lhe disse o Gonçalves que estava lá dentro um fidalgo de longe. Encostou-se ao batente da porta, trocou um lance de olhos com o Verissimo, e sahiu apressadamente, arranjando pelo caminho uma physionomia cheia de alvoroço, de surpreza.
Entrou pela residencia, muito esbofado:
—Ó abbade, já esteve na eira do Gonçalves?
—Não; estou a acabar de jantar, e lá vou vêr essa borracheira da comedia. Você vem aganado!
—Vinha perguntar-lhe se conhece um sujeito de fóra que lá está na eira.
—Aqui veio um rapazola da Povoa pedir-me uma cadeira ha coisa de meia hora para um fidalgo que tinha vindo com elle. Perguntei-lhe quem era o fidalgo. Diga que não sabe. Esta canalha em vendo um bigorrilhas de casaco chama-lhe fidalgo.
—Venha já d'ahi comigo... Por quem é, não se demore... Ó abbade, lembra-se de vêr el-rei em Braga ha treze annos!
—Ora se lembro!... Beijei-lhe a mão tres vezes.
—E, se o vir agora, conhece-o?...
—Parece-me que sim—o padre limpava á pressa os beiços amarellos dos ovos do arroz dôce.—Mas isso que quer dizer? Você está doido, ou temos carraspana, amigo Nunes?
—Homem! venha comigo, e depois chame-me doido ou borrachão, lá como quizer; mas não se demore que eu estou em brazas vivas.
—Ahi vou, ahi vou, não se atrigue. Vai uma pinga do chôco?
—Venha de lá isso.—Bebeu d'um trago, e pediu outro:—Agora, á saude de el-rei! á saude d'aquelle que talvez esteja bem perto de nós! a cem passos!
—Toque!—exclamou o abbade.
Pelo caminho, disse-lhe o Nunes que era preciso o maior disfarce, não olhar muito de frente para elle, e só deviam fallar-lhe, se a occasião viesse muito a geito.
—Você está a sonhar, homem!
Quando entraram á eira, já tinha começado a festa. Verissimo estava em pé, com a mão direita apoiada nas costas da cadeira. D'um e d'outro lado remexia-se a turba, muitas raparigas a rirem dos actores vestidos de mulheres, e uns rapazes com chalaças de uma graça aparvalhada, muito local, a que os do palco respondiam á lettra com manguitos, e os que faziam de mulheres batiam palmadas no trazeiro, voltando-o para o publico. Cães ladravam ás figuras; os rapazes davam-lhes pauladas e elles ganiam. As velhas mandavam calar o gentio para poderem perceber as fallas:—Canalha brava, calaide-vos ahi!—Uma balburdia que parecia um theatro de cidade de primeira ordem. O tio Gonçalves, o dono da eira, dizia que estavam todos bebedos, e voltava-se para o desconhecido, como a pedir desculpa.
—É entrudo, dizia, é entrudo, senhor!
Quando appareceu o padre na cancella da eira, houve silencio com algumas fungadellas de riso das cachopas, e recomeçou a comedia em obsequio ao abbade e á Arte ultrajada pela hilaridade bruta da plateia. Notaram alguns velhos sisudos que o forasteiro das grandes barbas se mantivera muito sério durante a troça da canalha. Assim o dizia o Gonçalves ao abbade, perguntando-lhe se conhecia aquelle senhor.
—Não conheço,—e acotovelava o Nunes, segredando-lhe com o disfarce:—Você adivinhou. É elle...
—Que me diz, abbade?
—É elle.
O Verissimo déra tres passos para accender um cigarro no de um musico que estava sentado n'um bombo.
—É elle!—repetiu o abbade.—Você não o viu coxear?
—Falle baixo, falle baixo, e não olhe muito para elle, que eu já o vi deitar-nos os olhos,—acautelou o Nunes.
—Também eu ...
Estalou n'este momento uma gargalhada geral. Verissimo tambem se riu, e deu palmas.
—Olha! olha! a dar palmas!—notou o abbade com transporte. Aquillo sensibilisou-o até ás lagrimas! O snr. D. Miguel I a dar palmas ás figuras do Medico fingido na eira do Gonçalves em S Gens de Calvos! Tocante!
A risada geral e as palmas e os apupos não eram rigorosamente uma ovação ao auctor do entremez nem aos curiosos. Eis o caso. Na scena l.ª o Astolfo pede carinhosamente á filha que côma alguma coisa. Mathilde diz que não póde, que não está em si; que lhe acuda, que lhe acuda, porque um suor frio lhe faz perder os sentidos.
O gargajola esperava ser amparado pelo outro, em harmonia com a rubrica que diz: Finge desmaio, e Astolfo a sustem nos braços. Mas ou porque se antecipasse a desmaiar, ou porque Astolfo se demorasse a amparal-a, Mathilde escorregou de costas sobre o barro ainda fresco do palco; e, no acto de se erguer debaixo dos apupos da multidão, arregaçaram-se-lhe as saias e saiotes até á cintura. Ora a Mathilde não usava calcinhas. Um escandalo.
Verissimo Borges não pôde sustentar a gravidade competente á sua pessoa. A natureza rebentou por elle fóra n'umas casquinadas convulsas que poderiam custar-lhe uma môcada, se a deflagração do riso não fosse geral.
Mathilde fugiu do palco, enfiou pelo palheiro e não voltou á scena. O ensaiador, o trôlha, sahiu ao terreiro a explicar ao publico a suspensão do entremez n'estas palavras:—Aquelle alma do diabo despiu a farpella, e diz que raios o parta, se cá tornar. Vocês póde ir á sua vida que não ha hoje treato.
Começou a debandar o auditorio em grande algazarra. Verissimo parecia esperar que o galã, o Rêlhas Junior, se despisse para se retirar. O Gonçalves perguntava-lhe:—e que tal esteve a chalaça, senhor! Má mez pr'ó homem, que se mais tivesse mais punha ó léo!—e voltando-se para o abbade que, a pedido do Nunes, guardava respeitosa distancia:—ó snr. abbade! coisa assim não consta! Eu, se me succedesse uma d'aquellas, mettia a cabeça n'um folle.
—São acasos, disse Verissimo com indulgencia.—Não se lembrou que estava vestido de senhora.
O abbade ganhou animo, abeirou-se do Gonçalves, cumprimentando o outro cerimoniosamente, e disse:
—O entremez não presta para nada. Se o homem não cahisse, ninguem se ria.—Provavelmente...—assentiu o Verissimo, correspondendo á cortezia do Torquato Nunes que parecia aproximar-se mais acanhado.—Estes casos de escorregar, accrescentou o desconhecido, acontecem nos primeiros theatros do mundo e até nas salas onde se dança; e de ordinario as senhoras que desastradamente cahem são verdadeiras senhoras. É muito peor e mais melindroso.
O abbade e o Nunes com muitos gestos affirmativos—que sim, que era muito peor, e mais melindroso, muito mais.
Derivou a conversação para as bellezas naturaes do Minho. O desconhecido sentia ter vindo no inverno, quando apenas se adivinhavam as pompas da primavera.
Principiava a choviscar. O abbade offereceu a sua casa ao forasteiro, emquanto não estiava a chuva. Verissimo acceitou por momentos, visto que não se prevenira com guarda-chuva—um traste que detestava. Os aguaceiros repetiram-se com pequenas intercadencias, varejados pelo sul; por fim, as christãs da serrania empardeceram, as nuvens rolavam pelos declives como escarceus a despenharem-se, fechou-se o horisonte sem uma nesga, e a chuva não parava. O abbade não permittiu que o hospede sahisse com tal tempo e já perto da noite.
Durante a ceia, appareceram algumas raparigas mascaradas com lençoes, abraçando a Senhorinha que servia á mesa, e dizendo em falsete pilherias ao Nunes a quem chamavam Trocatles e précurador de causas perdidas. Verissimo mostrava-se contente e dizia:
—Bom povo! excellente povo! Este Minho é o bom coração de Portugal, e os seus habitantes, segundo me consta, possuem os melhores corações do reino. Eram dignos de ser mais felizes do que são, carregados por tributos, esmagados pelo peso dos empregados publicos que são o flagello de Portugal...
O padre escutava-o com religiosa attenção; o Nunes beliscava a côxa do abbade que tomára a presidencia da mesa e puzera o hospede á sua direita.
No fim da ceia, o padre Marcos com o copo na mão, e de pé, disse que fazia uma saude ao seu hospede, porque lhe parecia que tinha a honra de beber á saude de um realista, d'um partidario de sua magestade o snr. D. Miguel 1.° que Deus guardasse! O hospede agradeceu, declarando que mesmo n'uma roda de liberaes não negaria os seus sentimentos politicos: que era realista, e como tal brindava á saude de todos os amigos do principe proscripto.
O Nunes dava canelões intelligentes e ás vezes dolorosos no abbade, que o encarava de esconso como quem diz:—percebo; não faça de mim asno; sei que estou fallando com el-rei.
A creada deu parte que estava prompta a cama;—quando Vossoria quizer—disse ella ao hospede. Verissimo sorriu-se agradavelmente:
—Que incommodo estou dando a esta excellente familia... Irei descançar, snr. abbade, e snr. Torquato ... parece-me que lhe ouvi chamar Torquato...
—Nunes Elias, um creado de vossa...—e susteve-se.
Dizia-lhe depois o abbade no quinteiro:—Você ia-se estendendo, Nunes! Esteve por um triz a dizer, um criado de vossa magestade, não esteve?
—Por um triz, abbade, que me estendia! Tal é a certeza de que está el-rei n'esta casa!—E com transporte olhando para as janellas:—Onde está pernoitando o snr. D. Miguel l.°! o rei amado dos portuguezes, na pobre residencia de S. Gens de Calvos! Isto parece um sonho!
A segunda-feira de entrudo foi um chover desabalado. Não houve entremez nem se via viva alma no cruzeiro. O abbade não consentiu que o hospede se retirasse; e, aconselhado por Nunes, mandou á Povoa buscar a bagagem. Era um bahú de lata amolgado na tampa com um cadeado roído de ferrugem. O legitimista ainda não tinha dado nome algum, nem os outros ousavam abrir ensejo a que elle tivesse de o inventar. Seria indelicadeza obrigal-o a mentir. Além de que, o padre Marcos, tratando-o sempre por senhor,—o senhor isto, o senhor aquillo—entendia que se aproximava do tratamento que se deve aos reis, e ao mesmo tempo ia insinuando ao real hospede que já o conhecia.—Bom é que elle se vá persuadindo que não somos patêgos—dizia o abbade ao Nunes.—Sim, bom é que se persuada ... você percebe... E piscava com esperteza.
—Ora, se percebo! O abbade tem andado com uma cabula muito fina. Eu é que me custa a ter mão em mim. A minha vontade era deitar-me de joelhos aos pés d'elle, e dizer-lhe: «Real senhor, nada de disfarces! Aqui estão dois vassallos de vossa magestade que lhe offerecem o seu sangue!»
—Deixe estar, acommodava o padre, deixe estar, Nunes... As coisas não vão assim... Quando fôr tempo, eu lh'o direi... Nada de espantar a caça.
O Verissimo pediu ao abbade algum livro para se entreter, e não o obrigar a atural-o. O padre levou-o ao seu quarto onde havia uma estante de pinho com tres lotes de livros. Mostrou-lhe o Punhal dos Corcundas, a Defesa de Portugal do padre Alvito Buela, a Besta esfolada, os Burros, e o Novo Principe. O Verissimo levou-os para o seu quarto, excepto os Burros; disse que não gostava de poesia. Fallou com louvor do padre José Agostinho e de Fr. Fortunato de S. Boaventura—columnas do altar e do throno, que tinham deixado dois vacuos impreenchiveis na phalange realista. Perguntou-lhe o abbade se os tinha conhecido pessoalmente.—Que sim, como as suas mãos... E sorria, como o principe proscripto, se lhe fizessem semelhante pergunta.
—Que prazer teria o padre José Agostinho, se hoje vivesse e pudesse vêr el-rei!...—meditou o abbade com a sua grande perspicacia observadora.
—Decerto...—concordava o Verissimo indolentemente.—Mas quem tem agora esperanças de vêr D. Miguel em Portugal?
—Eu, senhor, eu!—respondeu o padre batendo na arca do peito com as mãos ambas—Eu!
O Verissimo folheava o Punhal dos Corcundas, e parecia não perceber a vehemencia do padre.
—Bons desejos, bons desejos do caro abbade...
—E de quasi toda a nação portugueza, senhor! D. Miguel l.° nunca deixou de reinar nos corações do seu povo. Eu tenho na minha alma o retrato d'elle desde que o vi ha treze annos em Braga e lhe beijei as suas reaes mãos!—Escandecia-se o enthusiasmo, punha as mãos, chammejavam-lhe nos olhos reflexos do fogo interno; e o Verissimo continuava a folhear o Punhal dos Corcundas.
—Então viu-o, abbade?
—Sim, meu senhor, vi-o com estes olhos, toquei-lhe com estas mãos.
—Ainda se recorda das suas feições?
—Perfeitamente.
—Ah! se o visse hoje, decerto o não conhecia... Está muito acabado...
—Conhecia, conhecia...
O abbade sentiu um raio de dramatisação que o vibrou todo. Eriçaram-se-lhe os cabellos, e coou-lhe pela espinha uma faisca electrica. Fez um passo atraz, e quando o Verissimo repetiu: «Era impossivel conhecêl-o» o padre pôz um joelho em terra, estendeu o braço direito, e com o dedo indicador em riste, exclamou:
—Eil-o! eil-o!
—Ó abbade! o snr. está allucinado! Por quem é, levante-se! Eu não sou quem pensa!
—Estou como devo estar deante do meu rei!—teimou o abbade, com os dous joelhos no sobrado.
—Levante-se que vem gente!—dizia o outro, ouvindo passos na escada.
Era o Nunes.
—Entre, amigo!—disse o abbade, respondendo ao visinho que pedia licença.
Torquato encontrou o abbade de Joelhos e o Verissimo esforçando-se por levantal-o.
—Ajoelhe a meu lado, Nunes! que eu estou aos pés d'el-rei!—exclamou o padre.
E o outro, ajoelhando:
—Eu já o sabia, real senhor!
Foi assim que se inaugurou a côrte de D. Miguel I em S. Gens de Calvos, segunda-feira de entrudo de 1845, ás 3 horas da tarde.