Depois, bem sabem, senhores, como aquelle padre Rocha despenhou abruptamente o desfecho da farça, cuidando que vingava a moral e punia com degredo o scelerado que infamava o sacratissimo nome de el-rei D. Miguel. No transito para a Relação, a meia legua, na estrada do Porto, o Verissimo com delicadas maneiras e o seu aspecto veneravel, obteve que o sargento da escolta lhe permittisse alugar a mula de um almocreve que seguia a mesma direcção. Cavalgou na albarda da mula arreatada com chocalho, sem estribos; empunhou a corda do cabresto, e ladeado de doze praças do 8, entrou ao cahir da tarde em Famalicão.
O Torres de Castellões, o administrador, legitimista no fundo, bom lavrador, mandou-lhe cama para a cadeia e permittiu-lhe que ceasse com um amigo que o seguira de longe. Era o Nunes, o Pylades das horas certas e incertas. Orestes estava desanimado; queixava-se das phantasias do outro, considerava-se perdido.—Pobre Libania!—deplorava, quando ella souber que eu estou na Relação!
Como tinha alguma pratica do fôro criminal, o Nunes consolava-o: que não havia materia para pronuncia; e, quando fôsse pronunciado, a Relação o despronunciaria. Eu é que vou ser o teu procurador, se me não prenderem—accrescentava muito confiado na lei e na sua actividade.—Quanto á phantasia do conto de réis, já não falta tudo, porque tens as cem peças das Botelhas. Se te deixam ser rei mais um dia ou dois, tinhas n'esta santa hora 3:750$000 réis.
—Tu gracejas e eu vou esperar na cadeia uma sentença de degredo—atalhou o Verissimo, n'aquella estranha situação, nunca experimentada, de ouvir os passos da sentinella rentes com a grade do seu quarto.
Ás oito da noite, fechára-se a porta da cadeia, e Nunes sahira triste, com um pungitivo arrependimento de metter o amigo n'aquella rascada.
Ao escurecer do dia seguinte, o preso foi conduzido do governo civil do Porto para a Relação com um mandado do carcereiro na bayoneta do sargento. Quando sahia do governo civil, já Libania e o Nunes, que se antecipára a procural-a em Ramalde, o esperavam. A Libania era uma forte mulher para os trabalhos da vida. Fitou-o com um semblante acceso de coragem, um sorriso affoito, e disse-lhe muito animosa: Alma até Almeida e d'Almeida p'ra diente alma sempre!
Verissimo occupou o quarto de malta n.° 2, com uma rasgada janella sobre o Douro, um quarto cheio de luz e de sol, d'onde tinha sahido o Gravito para a forca—elucidou o carcereiro, e mostrou-lhe no grosso alisar da porta as iniciaes de alguns padecentes com a data de 1829.
A Libania e mais o Torquato pernoitaram na estalagem do Cantinho na rua do Loureiro e passavam o mais do tempo na Relação. Ao fim de seis dias já o Nunes requeria a soltura do preso, por falta de nota da culpa; mas a pronuncia chegou ao oitavo dia da comarca da Povoa. O preso aggravou para a Relação. Era juiz relator do aggravo o conselheiro Fortunato Leite, natural do Douro, que, quinze annos antes, no reinado de D. Miguel, tinha sido amigo de Norberto Borges, e lhe devêra a fineza rara de o avisar na vespera do dia em que lhe havia de cercar a casa por ordem do facinoroso corregedor de Villa Real, o Albano que os liberaes mataram, no meio de uma escolta, em 1836. Quando o relator folheava o processo, os appellidos do preso, a naturalidade, os pormenores, suggeriram-lhe memorias da sua perseguição em 1831, e o salvar-se tão extraordinariamente pela amizade do meirinho geral. Informou-se e evidenciou que o Norberto Borges, de Alvações de Corgo, era o pai do preso. Estava pois salvo o filho do seu bemfeitor, sem grande violencia á justiça, porque a pronuncia fôra precipitada, irregular, as testemunhas citadas—os padres suspeitos de frequentarem a residencia de Calvos—nada depozeram que provasse projectos revolucionarios do aggravante.
E lavrou o accordão muito rocheado de grypho:—Que aggravado era o aggravante pelo juiz da comarca de Lanhoso, porquanto na pronuncia de primeira instancia haviam sido desprezadas as formalidades mais curiaes, pois que nenhuma testemunha depozéra que o aggravante se inculcasse D. Miguel para perturbar a ordem constituida, chamando o povo á revolta; e das respostas do aggravante no interrogatorio a que procedeu a auctoridade administrativa constava que o preso quasi que fôra obrigado por um clerigo estupido e esturrado miguelista a deixar-se chamar D. Miguel l.°; mas não constava nem se provava que o aggravante se aproveitasse de tal fraude e impostura para extorquir valores aos seus estupidos cortezãos; o que decerto praticaria um gamenho decidido a fingir-se D. Miguel para os espoliar. Que a pronuncia fôra iniqua, atabafada apaixonadamente, e sem base, visto que nada se colhia dos depoimentos das testemunhas, e apenas se fez obra por hypotheses e indicios, fundada em um rei de individuos alarves a quem o supposto monarcha fazia mercês de commendas, de titulos, de patentes e até de mitras, sem que d'ahi resultasse alvoroto nem leve perturbação na ordem publica, nem mesmamente damno para os mencionados burros que pediam as mercês, e que deviam ser pronunciados em primeira instancia, se a côrte de S. Gens de Calvos, não fosse uma farça de entrudo.
E, dilatando-se philosophicamente e chistoso, o juiz relator, addicionava, aconselhando, que seria bom e proveitoso que nas terras selvaticas do Minho se espalhassem muitos Migueis d'aquella casta e feitio até que os novos Sebastianistas se convencessem de que somente assim poderiam arranjar um Miguel que lhes désse commendas, titulos, postos militares e prelazias.
Os desembargadores, com o seu rapé engatilhado aos narizes, riram muito do final do accordão, e, sorvidas as pitadas sibillantes, assignaram por unanimidade.
Reformada a sentença e pagas as custas pelo juiz da primeira instancia, Verissimo foi posto em liberdade; e, quando chegou ao escriptorio do carcereiro Mello para se despedir, encontrou a Libania de Covas desmaiada de jubilo, nos braços da mulher do chaveiro. Como era feliz, deixou-se ser mulher—chorou; e quando lhe cumpria dar animo ao preso, no pateo do governo civil, riu-se com a valentia dos homens extraordinarios.
O conselheiro Leite recommendou ao Nunes procurador que lhe mandasse a casa o Verissimo. O filho de Norberto apresentou-se timorato, receoso, com maneiras submissas, mas dignas d'um Borges Camêlo infeliz.
O desembargador explicou-lhe que o chamára para lhe fazer conhecer a divida que lhe pagou, posto que as situações fossem muito diversas. Improperou-lhe serenamente o seu delicto; estygmatisou a acção de permittir que o julgassem D. Miguel; fallou acerbamente contra este tyranno parricida, incestuoso, canalha, e terminou por lhe aconselhar o trilho da honra, o trabalho, e a expiação das suas irregularidades, mostrando-se digno da compaixão que lhe inspirára, despronunciando-o. O Verissimo beijou-lhe a mão, e recusou dez pintos que o conselheiro lhe dava—que, se um dia necessitasse, lh'os pediria. E o Fortunato Leite, a rir:
—Então as bêstas dos abbades sempre cahiram? Fez você muito bem. Devia esfolar essas cavalgaduras!
O Verissimo recuava muito agradecido.
O conselheiro Fortunato exerceu uma energica influencia vitalisadora na nova encerebração de Verissimo Borges e bastante na do Torquato Nunes Elias.
Por medeação do bondoso desembargador, obteve o Nunes alvará de solicitador de causas nos auditorios do Porto. Ganhou boas relações. Era esperto, zeloso e pagava-se regularmente. Chamou para a cidade a mulher e os dois filhos. Alugaram casa na rua de Traz as duas familias. Davam-se muito bem, e gastavam economicamente os 750$000 réis das Botelhas, de meias com os salarios de procurador. O Verissimo frequentava á noite o café das Hortas, jogava o quino e, de vez em quando, ia ao café da rua de Santo Antonio ouvir os demagogos dos manos Passos, que o festejava e catequisavam. Dava-se com os Navarros, com o Almeida Penha, com os Peixotos vidraceiros. Elle, sobpondo ao reconhecimento os escrupulos de espião, contava ao conselheiro Leite, cabralista intransigente, os planos dos setembristas, os clubs, as lojas de carbonarios, as tramoias arranjadas em Braga pelo barão do Casal, muito setembrista, padre Alves Vicente, de combinação com o Passos José, com o Faria Guimarães, com o medico Resende, com o Damasio, com o Alves Martins. O governador civil, visconde de Beire, estava em dia com as conspirações da viella da Neta—aquelle baluarte da Liberdade que demorava paredes-meias com os escombros do Deboche, não griphado, muito á franceza;—tudo acabado hoje em dia, e soterrado debaixo d'uma loja de modas, d'um café e d'uma taberna,—o vitalismo soez e chato da decadencia.
Verissimo arrecadava uma gratificação, umas seis libras mensaes, mesquinha paga dos serviços que fazia á ordem, á tranquillidade civica da rua das Flores e das Congostas.
Na contra-revolução de 9 de outubro de 46, quando foi preso o duque, José Passos encontrou o Verissimo na Praça Nova, chamou-lhe patriota, pôz-lhe a mão no hombro, sacudiu-o pelas lapellas, e disse-lhe que movesse, que agitasse as massas, por que o duque estava a desembarcar. Os sinos tangiam a rebate, a plebe ondeava para Villar, n'um restrugir de tempestade, quando o Verissimo e o Nunes procuraram o conselheiro Fortunato que tiritava de mêdo com as suas enxundias espapadas entre as filhas, n'uma consternação. Disseram-lhe que se iam armar para se constituirem sentinellas da segurança do seu bemfeitor. O conselheiro abraçou-os muito commovido, n'uma excitação apopletica.
Depois formaram-se os batalhões nacionaes. Verissimo e Torquato foram promovidos a tenentes do batalhão da Vista Alegre. Quando foi da refrega de Valpassos tinham comprehendido intelligentemente que a retirada de Sá da Bandeira, da veiga de Chaves, era a fraqueza precursora de uma derrota. Conheciam o perfido espirito do 15 e do 3 de infanteria,—previram a traição. Tinham pensado maduramente os dois tenentes, sem enthusiasmo, com a prudencia dos quarenta annos apalpados pelos revezes de vinte batalhas. Resolveram desertar quando os batalhões de linha se passassem para as forças reaes. Travou-se o encontro de Valpassos. Com os dois regimentos que n'um turbilhão e a gritos de Viva a Rainha se abraçaram ás vanguardas do Casal, tambem elles, por debaixo do fogo do seu batalhão, se passaram, dando vivas á Carta Constitucional. Eram a obra da prudencia e do conselheiro Fortunato Leite.
Quando o barão de Casal foi espostejar os miguelistas a Braga, os dois tenentes apresentados pediram venia ao general para servirem na columna do visconde de Vinhaes;—que tinham repugnancia de pelejar cara a cara com os seus parentes bandeados nas guerrilhas do padre Casimiro José Vieira e do padre José da Lage. A vergonha impunha-lhes o dever de dourar a mentira. Não lhes pareceu decente irem acutilar nas ruas de Braga o Christovão Bezerra, de Bouro e o abbade de Calvos e o padre Manoel das Agras. Não poderiam vêr sem magua a soldadesca a dar saque aos dinheiros das snr.ªs Botelhas.
Ainda assim não puderam esquivar-se a perseguir os realistas da comitiva de Mac-Donald, desde Villa Real até Sabroso; mas não desembainharam as espadas, porque o visconde de Vinhaes os admittiu ao seu quartel-general, e os cadaveres que encontraram pela serra do Mezio até Sabroso, onde pereceu acutilado o caudilho escossez, eram façanhas das guardas avançadas. Os dois tenentes não deram nem tiraram gota de sangue n'esta lucta fratricida. Um triumpho a sêcco.
Concluida a guerra civil pelo convenio de Gramido, depositaram as armas e pediram empregos. O conselheiro Leite, o Casal, o Vinhaes, o Alpendurada, o Carneiro Geraldes, o Joaquim Torquato, o centro cabralista recommendou-os á consideração magnanima de sua magestade. O Nunes, como sabia do fôro, foi despachado escrivão de direito para a Estremadura. Verissimo Borges obteve uma fiscalisação rendosa dos tabacos e sabão em Traz-os-Montes: depois foi transferido, com vantagem, para a alfandega de Vianna do Minho; e por ultimo para uma direcção aduaneira do Ultramar. Ainda vivia ha poucos annos, porque um jornal da localidade, debaixo de um symbolo funebre—um anjo curvado e deplorativo sobre a sua urna, enlutada pelas madeixas de um chorão—publicava:
Verissimo Borges Camêlo da Mesquita dá parte aos seus numerosos e respeitaveis amigos que foi Deus servido chamar á sua divina presença, hoje pelas 5 horas da manhã, sua chorada esposa D. Libania de Covas Borges da Mesquita, a cujo cadaver, etc. Pelo seu profundo estado de consternação pede desculpa de cumprimentos.
O jornal, depois de uns adjectivos lugubres e velhos como a morte, accrescentava: A exc. ma snrª D. Libania, que todos choramos com seu exc. mo viuvo, era uma senhora de esmeradissima educação, pertencia á illustre familia dos Covas;—modêlo no tracto insinuante com que captivava o respeito e a amizade de todas as pessoas d'esta Ilha, que tiveram a fortuna de a conhecer. Receba s. exc.ª o snr. conselheiro-director os nossos mais sentidos pesames pela desgraça que acaba de o ferir implacavelmente.
Verissimo e Nunes podem ainda viver, porque eram robustos de corpo e d'alma.