Em março d'aquelle anno, 1846, os setembristas de Braga fomentaram os motins populares do concelho de Lanhoso. Na Inglaterra, na camara dos communs, lord Bentinck explicou tragicamente, em phrases pomposas, a origem d'essa revolução, que um desdem indigena chamou «rebellião da canalha». Elle disse que os Cabraes mandaram construir cemiterios; mas não os muraram; de modo que entravam n'elles cães, gatos e porcos bravos em tamanha quantidade que chegaram a desenterrar os cadaveres.[8] As nações e os naturalistas deviam formar uma idéa assaz agigantada do tamanho dos gatos portuguezes que desenterravam cadaveres, e das boas avenças dos nossos cães com os referidos gatos na obra da exhumação dos mortos, e não menos se espantariam da familiaridade dos javalis que vinham do Gerez collaborar com os cães e gatos n'aquella mineração das carnes podres das terras de Lanhoso. A origem pois da insurreição nacional de 1846 está definida nos fastos da Europa revolucionaria. Foi uma reacção, uma batalha social á canzoada e gataria confederadas com o focinho profanador de porco montez. E d'ahi procedeu escreverem os jornalistas da Allemanha, um paiz sério, que a revolução do Minho era o «typo da legalidade». Os cadaveres servidos nos banquetes illegaes e nocturnos dos javalis, com a convivencia de gatarrões a rosnarem com o lombo erriçado, e molossos de colmilhos ensanguentados foi caso que impressionou grandemente as raças tudescas, por ser um acto prohibido pela Carta Constitucional. Quer fossem os setembristas de Braga, quer a alcateia das feras colligadas, o certo é que a insurreição do Alto Minho talou esta provincia e a transmontana, devastando as papeletas impressas e os vinhos das tascas sertanejas. A guerra motivada pelos gatos e seus cumplices fez soffrer ao capital do paiz uma diminuição de 77 milhões e meio de cruzados, segundo o calculo do ministro da fazenda Franzini, muito retrógrado, mas um genio no algarismo.
O Zeferino das Lamellas, ás primeiras commoções do vulcão popular, nos arredores de Guimarães, preparou-se; e assim que ouviu repicar a rebate em Ronfe, cheio de ciumes como o sineiro de Notre-Dame, agarrou-se á corda do sino, reuniu no adro os jornaleiros e vadios de tres freguezias, e pegou a dar morras aos Cabraes com applauso universal. Depois, explicou o que era o cadastro, confundindo este expediente estatistico com canastro:—que os Cabraes e os seus empregados andavam a tomar as terras a rol para empenharem Portugal á Inglaterra; que esses roes estavam nos cartorios das administrações e em casa dos regedores; que era preciso queimar-as papelêtas e matar os cabralistas.
Em seguida, invadiram a administração de Santo Thyrso, quebraram as vidraças dos cartistas fugitivos e queimaram os impressos e quantos papeis acharam, no Campo da Feira. Depois, abalaram para Famalicão. Zeferino nomeára-se chefre da gentalha embriagada nas adegas arrombadas dos cabralistas, e alvitrou que se prendessem os regedores que topassem. Dizia que o Joaquim de Villalva, nas eleições do anno anterior, muito socadas, cascára no povo e mais os cabos, na assembleia de Landim, cacetada brava. A bebedeira dos ouvintes dera á perfida aleivosia do pedreiro vingativo o valor de facto historico. O plano de Zeferino era abrir opportunidade a que José Dias fosse assassinado ou, pelo menos, preso e degredado como cabralista.
Villalva ficava-lhes a geito, no caminho de Famalicão. O amante de Martha ouvira grande alarido e vira ao longe a multidão que galgava um outeiro turbulentamente. Via-se desfraldado no ar, em oscillações largas, o panno escarlate de uma bandeira: era um pedaço do Velho estandarte que servia nas procissões de Santa Maria d'Abbade. José pediu ao pai que fugisse. O regedor disse que não—que nunca tinha feito mal a ninguem, nem sequer prendêra um refractario: que o mais que podiam fazer era tirar-lhe o governo.
José Dias tinha mêdo ás covardes ameaças do Zeferino; diziam-lhe que o pedreiro jurára matal-o, e já constava que era elle o chefe da guerrilha, em que se alistaram todos os ladrões e assassinos conhecidos na comarca. A mãe empurrava-o pela porta fóra—que fugisse para Caldellas; que não fosse o diabo armar-lhe alguma trempe por causa da Martha, da tal bebedinha que não dera cavaco ao pedreiro. Elle deitou o sellote á egua e fugiu a galope; mas o regedor, com a sua consciencia illibada, esperou os revoltosos com o Zeferino á frente, brandindo a espada do pai, que não se desembainhára desde o ataque a Santo Thyrso.
—Está você preso por cabralista!—intimou o pedreiro, deitando-lhe a mão á lapella da véstia; e voltado para a turba:—Rapazes, cercaide a casa; tudo que estiver, preso!
—Os meus filhos sahiram; mas entrem, busquem á vontade disse o regedor; e, olhando para o pedreiro, ironicamente:—Ah seu Zeferino, seu Zeferino, você não veio aqui p'ra me prender a mim... É outra historia que você lá sabe. Isto de mulheres são os nossos peccados, mestre Zeferino...
—Não me cante!—bradou o das Lamellas com furiosos arremêssos.—Está preso, e mexa-se já para a cadeia.
—Você não pôde prender-me, mestre Zeferino—contrariou a auctoridade dentro da lei—Vá buscar primeiro uma ordem do meu administrador ou do governador civil.
—Já não ha governador civil!—explicou o caudilho—Agora são outros governos, seu asno! Quem reina é o snr. D. Miguel l.° E você não me esteja ahi a fanfar, que eu já o não enxergo. Ande lá p'ra cadeia com dez milhões de diabos!
O regedor entrou em Villa Nova de Famalicão na onda de alguns milhares de homens e rapazes que davam vivas a D. Miguel, ás leis novas, á santa religião e morras aos cabralistas. Quando queimavam os papeis, um brazileiro setembrista, o Sá Miranda, disse ao commandante que não convinha por emquanto aclamar D. Miguel; que dessem morras ao governo e vivas á religião. N'esta barafunda, o regedor preso entre meia duzia de jornaleiros que discutiam as leis velhas e as novas na taverna do Folipo, comprehendera um acêno do taverneiro e fugira pelos quintaes. Metteu-se ao caminho de Braga, onde estava o general conde das Antas. O José Dias, receando que o perseguissem em Caldellas, refugiara-se também em Braga e alistou-se no batalhão dos serezinos commandado pelo conego Mont'Alverne.
N'este meio tempo, chegou da America o Feliciano Rodrigues Prazins, tio de Martha. Demorou-se poucos dias. Ganhára medo que o roubassem as guerrilhas. Foi para o Porto pôr em segurança as suas lettras e voltou quando a queda dos Cabraes garantia o socego dos capitalistas. Na volta a Prazins, olhou mais attentamente para a sobrinha, deu-lhe alguns cordões, e disse ao irmão que não se lhe dava de casar com ella. O Simeão affirmou logo com um descaramento perdoavel:—que não se fosse sem resposta o mano que a moça dava o cavaco por elle.
Feliciano tinha quarenta e sete annos. Não se parecia com a maioria dos nossos patricios que regressam do Brazil com uma opulencia de fórmas almofadadas de carnes sucadas. Era magro esqueleticamente, um organismo de poeta sugado pelos vampiros do spleen. Dizia, porém, que tinha febras de aço e nunca tomára remedios de botica. Muito myope, usava de monoculo redondo n'um aro de bufalo barato. Como era economico até á miseria, dizia-se em Pernambuco que o Feliciano usava um vidro só para não comprar dous; e que, se pudésse, venderia um olho como coisa inutil. Com a economia e o trabalho bem propiciado em trinta annos arredondára trezentos contos. Chegára aos quarenta e sete, ao outono da vida, sem ter amado. Nunca se conspurcára nos latibulos da Venus vagabunda. A sua virgindade era admirada e notoria; depunham a favor d'ella os seus caixeiros, os feitores e—o que mais é—as suas escravas. Os seus patricios devassos chamavam-lhe o Feliciano Pudicicio. Elle não se envergonhava de confessar a sua castidade ao parocho de Caldellas. Tinha vivido como um dessexuado;—que trabalhava muito nos seus armazens, que dormia poucas horas, e não dava folga ao corpo nem péga aos vicios. Originalissimo. Que lhe sahiram casamentos ricos; mas que elle para ser rico não tinha precisão de mulher; que vira algumas meninas pobres a namoral-o; mas que desconfiára que lhe namorassem o seu dinheiro. Não tinha queda para o sexo que elle dizia seixo. N'uma palavra, estava virgem. Elle podia dizer como Hamlet: Não me deleitam os homem não tão pouco as mulheres.
A sobrinha reformára aquella natureza aleijada. Talvez o desdem com que Martha o tratava na crise da sua paixão, fosse grande parte no amor do brazileiro. Além d'isto, a môça, muito parecida com elle na delgadeza das fórmas, tinha encantos que dispensavam a esquivança para se fazer amar de um homem de quarenta e sete annos—intacto de mais a mais. O presente que lhe fez de uma meada de cordões de ouro significava uma desordem, pelo menos interina, na sua condição sovina. Martha acceitou a dadiva sem enthusiasmo nem alegria. Lembrava-se que o pai a prevenira da possibilidade de ser mulher de seu tio, se adregasse gostar d'ella. Quando o tio lhe deu os cordões, teve-lhe uma nausea, um quasi odio, suspeitando-lhe os projectos; e quando elle fugiu para o Porto, com medo ás guerrilhas, sentiu ella uma satisfação incomparavel. Entretanto, apezar das más informações do brazileiro da Rita Chasca, o Feliciano sentia filtrar-se-lhe nas cellulas impollutas do coração o veneno dôce de uma paixão cheia de condescendencias, pouco superciliosa em pontos de honra, como quem pensa que no thalamo conjugal não se faz mister a virgindade em duplicado. Mas não era assim que elle pensava. Ninguem lhe desdourára a honra da sobrinha, nem o derriço com o José Dias fazia implicancia á sua honestidade. Elle não tinha os rudimentos de malicia necessaria para desconfiar que uma menina de dezeseis annos, creada nos seios da Natureza immaculada de uma aldeia do Minho, pudesse abrir de noite uma janella, debruçar-se no peitoril e ajudar a subir um homem. O official do pedreiro é que sabia casos, anomalias, desde aquella noite em que o luar o enganou.
Martha ouvira aterrada a noticia que o pai lhe deu da vontade do tio. Irritou-se. Tinha sido creada com muito mimo, sem mãe, voluntariosa, e com uns ares senhoris que desauctorisavam o respeito que o pai, rustico lavrador, não sabia incutir. Em vez de chorar como as filhas desgraçadas e humildes, respondeu desabridamente que não casava com o tio; que o desenganasse, se quizesse; e, se não quizesse, ella o desenganaria. A terrivel nota golpeára-lhe o coração cheio de saudades de José Dias que lhe escrevêra de Braga, por intervenção do padre Osorio, dando-lhe coragem e esperança no casamento logo que cessasse a guerra. Foi esse alento que a revoltou contra o pai quando elle instava com ella a casar com o tio, que era talvez, dizia, o homem mais rico de Portugal, abaixo do rei. Martha replicava com tregeitos de tedio desdenhoso; e, exaltada pela boçal insistencia do pai, protestava, se a apoquentassem, atirar-se ao rio como sua mãe.
O Simeão perdeu a vontade de comer; andava atordoado n'uma tristeza estupida a dar uns ais pela casa que pareciam mugidos de bezerro perdido na serra. A pequena já não queria ir á mesa, mettia-se na cama e fingia-se doente para não encontrar o tio Feliciano.
José Dias e o pai permaneciam em Braga, por que em differentes pontos da provincia continuavam as agitações miguelistas; o novo ministerio não tinha força, e o Zeferino das Lamellas nunca depozera as armas. Os seresinos faziam excursões e batiam os realistas ou prendiam os agitadores. José Dias, em uma d'essas sortidas a Villa-Verde, a pé e com pouca saude, ganhára uma bronchite que o teve de cama largo tempo. Quando se levantou, n'uma apparente convalescença, a tisica tuberculosa recrudescia pessimamente caracterisada. O padre Osorio fôra visital-o, ouvira o medico e sabia que o seu amigo estava perdido. Fallou ao pai, em particular, no estado do filho. Lembrou-lhe a sua promessa de consentir no casamento com a pobre Martha, que se perdêra confiada nos compromissos do José. O lavrador mostrou não perceber a conveniencia de Martha em casar, se o seu filho tinha de morrer cêdo.—Que a viuva, dizia, nada ganhava com isso, porque os herdeiros de José eram seus pais. Não comprehendeu a questão por outra face. Mas, apertado pela palavra que déra, repetiu que elle pela sua parte concedia a licença, se a mãe a désse; e justificava-se d'este respeito á mulher, allegando que a casa de Villalva era toda da sua companheira, e o que elle levára para o casal não valia dois caracoes.—Emfim, concluia, se o rapaz arrijar, casa querendo a mãe; mas, emquanto elle assim estiver, faça favor de lhe não fallar na rapariga... Bem lhe basta o seu mal... E um homem que está doente devéras não deve pensar em mulheres, é na salvação da sua alma. Eu penso assim, amigo padre Osorio.
—O vigario aprende o padre-nosso, dizia o de Caldellas.
Entretanto, o doente, muito animado, não sentia aquelles desalentos e presagios de morte que mezes antes o affligiam. Habituára-se ao soffrimento; já não tinha memoria das perfeitas delicias da saude. Quando espectorava sem violencia, e a dyspnea cedia aos xaropes e ao pez de Borgonha julgava-se em uma quasi completa restauração. Escrevia ao Osorio e a Martha com muita alegria e devotos agradecimentos a Deus e a Maria Santissima com quem se apegára fervorosamente desde que padecia, e tambem com o oleo de figado de bacalháo.
A repugnancia de Martha, face a face do tio Feliciano, seria um affrontoso desengano para o millionario, se não interviesse o implacavel e engenhoso ciume do Zeferino. Este chefe de guerrilha em armisticio soube que o brazileiro queria casar com a sobrinha e que o José Dias estava em Braga muito acabado, a dar á casca. O pedreiro chamou os bravos da sua jolda e fez-lhes saber que o brazileiro de Prazins pedira para Famalicão um regimento da divisão do Antas para deitar cêrco ás casas dos realistas, e sujeitára-se a sustentar o regimento á sua custa. Resolveram atacar o Feliciano, prendel-o como cabralista, e fazel-o pôr á má cara o dinheiro que havia de dar á tropa. Um dos da malta, visinho do brazileiro, o Metro, tinha-o convidado para padrinho de um filho. Procurou-o ás escondidas e avisou-o que se escondesse. Feliciano fugiu para o Porto a toda a pressa. Queria que a sobrinha tambem fosse. Escrevia-lhe que, se quizesse ir, compraria casa no Porto. Martha respondia que estava muito doente, que não podia sahir da cama. O pai chegava a descompôl-a:—Que não tinha molestia nenhuma, que era por causa do Zé Dias; mas que perdesse d'ahi a idéa por que estivera com o doutor Pedrosa, de Santo Thyrso, que o vira em Braga, e lhe dissera que o Dias estava ethego e mais mez menos mez esticava a canella.
Martha respondia com serenidade de alma forte, e escorada n'uma resolução suicida:—Se não casar com elle n'este mundo, casarei no outro.
—Que te leve o diabo!—resmungava o Simeão, riçando phreneticamente as suissas. Depois voltava manso e velhaco á beira do leito:—Olha, menina, teu tio está velho e esmagriçado. Aquillo não póde ir longe. Tu ficas p'r'ahi podre de rica, e podes casar depois com um fidalgo, se quizeres...
—Valha-me nossa Senhora!—murmurava Martha, pondo os olhos na litographia da Mãe de Jesus traspassada das sete espadas.—Quem me dera morrer.
A tisica do José Dias com as frialdades humidas de novembro entrou no segundo periodo. Recrudesceram as dôres de peito e a dyspnea, com accessos febris nocturnos. Expectoração esverdeada com istrias amarellas, e extrema magreza com repugnancia a todo o alimento. Pela auscultação ouvia-se-lhe o som gargarejado do fervor cavernoso. Os medicos disseram ao pai que o tirasse de Braga, das incommodidades da estalagem, e o levasse para casa onde lhe seria mais suave a morte na sua cama com a assistencia da familia. Foi para Villalva transportado n'uma liteira, e dizia ao pai que se sentia melhor, que respirava mais desafogado; e que, se ha mais tempo tivessem sahido de Braga, já elle estaria rijo.
A mãe, quando o viu entrar tão acabado, tão desfigurado, fez um berreiro descommunal, e não teve mão em si que não rogasse pragas á Martha, que lhe matára o seu querido filhinho. As visinhas concordavam:—que diabos levasse a mulher que o tolhêra!
O doente affligia-se, chorava como creança, e pedia ao pai que o deixasse ir para Caldellas, para casa do seu amigo; que não podia vêr a mãe; que lh'a tirasse de diante dos olhos; e que, se elle tivesse de morrer, que lh'a não deixassem ir á beira da sua cama. E fazia tregeitos furiosos, com os olhos a estalar das orbitas escavadas, incendido pela febre.
Chegou o padre Osorio, e o doente applacou-se sob as consolações calmantes do seu santo amigo. Deitou-se, com promessa de ir no dia seguinte para Caldellas; mas nunca mais se levantou, nem fez inuteis esforços.
Osorio não o desamparou. Ia á sua egreja dizer a missa dominical e voltava para Villalva com as respostas de Martha aos bilhetes que José lhe escrevia—poucas linhas em que ainda por vezes lampejavam alegres esperanças.
Toda a influencia de Osorio não conseguiu que o enfermo recebesse a mãe no seu quarto. Não lhe podia perdoar o odio que ella tinha a Martha; e bradava que a fazia responsavel perante Deus da deshonra da desgraçada menina. A velha escutava estes tremendos emprazamentos para a eternidade, e dizia de si comsigo, a beata:—bem me fio eu n'isso.
Por fim já não podia escrever, nem levantar a cabeça no travesseiro; mas perguntava ao Osorio se tinha noticias de Martha; que pedisse ao irmão que fosse lá, e lhe dissesse que elle estava mais doente, e não podia escrever.
Um d'esses recados motivou o bilhete que se copiou na Introducção d'este livro, e que o moribundo já não pôde lêr. Desde que a mãe lhe metteu á força dentro do quarto o vigario com a extrema-uncção, um homem de opa com a campainha, outro com a agua-benta na caldeirinha, mais dous com tochas, e outros com a sua devota curiosidade, o moribundo cahiu na modorra comatosa, e apenas, com longos espaços, tinha uns accessos sibilantes de ligeira tosse sêcca. Abria então os olhos que fitava no rosto de Osorio, e ás vezes circumvagava-os espavoridos como em busca da visão espectral da mãe que o vigario de Caldellas cuidadosamente e com doloroso constrangimento defendia de entrar á alcôva.
Em Prazins ouvia-se dobrar a defunto em Villalva. Martha perguntou ao pai quem tinha morrido.
Elle respondeu serenamente:—Dizem que foi o Dias que está com Deus. Reza-lhe por alma que é o que elle precisa agora.—Martha deu um grande grito, e com as mãos na cabeça, a correr, deitou a fugir pelos campos. Ella sabia onde era o remanso fundo do rio Ave em que a mãe se suicidára. O pai correu atraz d'ella, a gritar, que lhe acudissem. Fóra d'aldeia, andava uma roça de matto, com muitos jornaleiros que correram todos atraz de Martha, e a levavam quasi apanhada quando ella cahiu, a estrebuchar, em convulsões. Conduziram-na para casa com os sentidos perdidos, e puzeram mulheres a vigial-a na cama. Esta nova chegou a Caldellas. D. Thereza, a irmã do padre Osorio, foi com o irmão a Prazins, e convenceram o Simeão a deixar ir a filha para a companhia d'elles algum tempo.
Martha chorava muito, abraçando-se no amigo de José Dias; e elle, quando o lavrador com impertinencia dizia á filha «está bom, está bom», observava-lhe com azedumes:—Deixe-a chorar, deixe-a chorar!—E voltando-se para a irmã:—A estupidez é cruel!
[8] Carta dirigida ao cavalheiro José Hume. Versão de Antonio Pereira dos Reis, 1847, pag. 99.