XIII

O Zeferino deixou o Cerveira Lobo em Quadros, com os tres contos de réis, foi para as Lamellas, e entrou de noite para que o não vissem. Elle tinha-se gabado aos visinhos de que estava despachado sargento-mór e seu pai coronel reformado. Ao José Dias de Villalva e mais ao pai que era regedor, mandára-lhes dizer que elles brevemente haviam de topar com o seu homem. Da Martha de Prazins dizia trapos e farrapos. A sua paixão nao tinha outro respiradoiro. Além d'isso, nao podia esquecer-se da nadega exposta pelo cão ás descompostas gargalhadas da rapariga. Era uma vergonha chronica. E, para remate de desastres, voltava para as Lamellas, a ouvir as rabugices do pai que lhe chamava cavalgadura—que se deixasse de politica e fosse fazer paredes, que é o que elle sabia.

Constava-lhe de mais a mais que o José Dias, o estudante, estava sempre em Prazins, e tinha ido com Martha e mais o Simeão ao fogo preso da romaria de S. Thiago da cruz. Viram-os todos tres a tomar café de madrugada n'uma barraca, a cochicharem os dois muito aconchegados, em quanto o velho tosquenejava a dormitar.

O pai de José Dias, o Joaquim de Villalva, era um lavrador de primeira ordem. Lavrava quarenta carros de milho e centeio, uma pipa de azeite, dez de vinho, muita castanha, tinha tres juntas de bois chibantes e poldros de creação. O José, meeiro no casal, a não se ordenar, era um dos primeiros casamentos do concelho.

O rapaz amava castamente a Martha com a pudicicia do primeiro amor. Ella tinha uma formosura meiga, delicada e supplicante. Parecia pedir que a não immolassem a uma paixão sensual; mas, se o seu amado o exigisse, a victima coroar-se-ia de flores, e iria risonha e mansamente para o sacrificio. Tinha extasis a contemplar-lhe os cabellos loiros e a pallida face doentia; deixava-se beijar com a impassibilidade de uma santa de jaspe—um quadro paradisiaco sem fructas nem cobras.

O José não necessitava pedil-a ao pai na incerteza de uma recusa. Disse-lhe que ella havia de ser a sua esposa: a creança contou ao pai as palavras do amado e o Simeão:—Ora venha de lá esse abraço, amigo e sê Zé!—e apertou o futuro genro com a ternura de pai que arranja a sua filha como se quer.

Mas os paes do estudante já tinham dito ao rapaz que mudasse de rumo, que a môça de Prazins não era fôrma de seu pé. A mãe principalmente protestava que, emquanto ella fosse viva, a tal filha da Genoveva de Prazins não havia de ser sua nora, nem que a levasse o diabo, e Deus lhe perdoasse, se peccava. Justificava-se dizendo que a Martha era de ruim casta; que a mãe, a Genoveva, dera desgostos ao homem, pintava a manta nas romarias, andára muito fallada com um frade de Santo Thyrso, e um dia pegára a dar gritos na egreja; toda a gente disse que ella tinha o demonio no corpo, e afinal morrêra douda, atirando-se ao rio Ave.

E constava-lhe que o avô d'ella tambem não era escorreito, e quando já tinha sessenta annos mandára fazer uma sobrepeliz, abrira corda, e onde houvesse um defunto lá ia com um ripanso á egreja e punha-se a cantar como os padres. A tia Maria de Villalva tinha inconscientemente este horror moderno, scientifico da hereditariedade; mas o que mais a impulsionava na sua resistencia aos rogos do filho era ter sido má mulher a mãe de Martha. De má arvore mim fructo—era toda a sua philosophia que se encontra diluida modernamente nas explorações physio-psychologicas do Janet, do Maudsley e no determinismo.

O Joaquim de Villalva, muito instado pelo filho e pelo padre Osorio, o de Caldellas, promettia fazer o que a sua companheira fizesse: mas dizia-lhe a ella em particular:—Tu aguenta-te, Maria; nunca digas que sim, ouviste? E ella:—Deixa-me cá, homem! Vem barrados. Credo!

A tia Maria era muito rezadeira, erguia-se de noite para não perder a sua missinha no verão ao romper do dia, e garganteava com uma melopêa fanhosa a via-sacra na quaresma, á volta da egreja; presenteava os santos dos altares com os mimos da sua lavoira que se leiloavam ao domingo no adro, dava cama e mesa unctuosa aos missionarias, confessava-se todos os mezes, e sentia pelas suas visinhas menos beatas o ineffavel prazer de affirmar que haviam de cahir vestidas e calçadas no inferno. O filho penetrou-se d'uma idéa trivial a respeito de sua mãe:—Que os sentimentos religiosos a levariam a dar o consentimento, se Martha commettesse um d'esses peccados que se remedeiam com o matrimonio. O padre Osorio dizia-lhe que a intenção era honesta, mas o expediente mau. Não lhe citou theologos nem preceitos de origem divina. Argumentou-lhe com a hypothese da pertinaz resistencia da mãe. Que não esperava nada da sua religião,—um habito de tregeitos de mãos e de beiços, o automatismo idolatra dos selvagens da America que davam guinchos mechanicos, prostrando-se por terra, quando ouviram a primeira missa; que a religião das aldeias, sobre a dos indianos da catechese dos jesuitas, as vantagens que tinha era a hypocrisia em uns, e o fanatismo em outros, quando não se ajuntavam ambas as coisas nos mesmos fieis. O padre Osorio parochiava e conhecia o seu rebanho, joeirando-o pelos crivos do confessionario. Não conhecia menos a tia Maria de Villalva. Affirmava que a fragilidade de Martha seria para a velha mais um motivo de odio e desprezo; por que, na sua cartilha e nos dictames dos seus directores espirituaes, não se lia nem ouvia que a mãe devia encobrir a deshonra de uma rapariga casando-a com o seu filho, seductor d'ella.

As reflexões do vigario de Caldellas eram optimas mas extemporaneas.

Um official de pedreiro de Prazins, que trabalhava com o mestre Zeferino, contou-lhe que uma noite se enganara com o luar, e, cuidando que era dia nado, se levantára para ir para a obra; mas que ao passar por diante da casa do Simeão ouvira duas horas no relogio, e vira luz pelas frestas de uma janella. Que se puzera á coca debaixo de um carvalho, a desconfiar que a luz áquella hora não era coisa boa, e estivera, vai não vai, ó pernas p'ra que te quero, lembrando-se se seria bruxedo ou alma penada, por que se dizia que a Genoveva do Simeão, a que se deitara ao rio, não podia entrar no purgatorio, e morrera com o diabo no corpo, salvo seja. Estava n'isto quando a luz se sumiu, e se coou pelas frestas d'outra janella, e logo depois n'outra mais baixa, onde um homem podia chegar, com o cabo d'um machado. N'isto apagou-se a luz e abriu-se a janella de portadas sem vidros. Dava-lhe a chapada do luar;—era como se fosse dia. O pedreiro, muito no escuro da ramaria do carvalho, viu apontar uma cabeça e depois meio corpo de homem que se pôz ás cavalleiras do peitoril da janella, quedou-se a olhar e a escutar a um lado e outro; depois desmontou-se muito devagarinho, sem tugir nem mugir, pendurou-se no peitoril e deixou-se cahir, ficando em pé. A janella fechou-se, e o José Dias, que o operario conheceu como se o visse ao meio dia, metteu-se ao caminho de Villalva, por signal que levava sapatos de borracha que brilhavam ao luar como um espelho.

O oratoriano Manoel Bernardes, como é notorio, escreveu um livro edificante, muito piedoso, chamado Armas da Castidade. O mystico filho de S. Philippe Nery, com duas palavras sãs, d'um realismo seraphico, cabalmente explicou a situação d'outro José Dias a respeito d'outra Martha. Conhecia-lhe o leito, dizia elle. É o mais que se póde dizer sem escandalisar ninguem. Conhecia-lhe o leito.

Mas o Zeferino é que sentiu em cheio no peito amante a facada do escandalo. O official viu-o sentar-se sobre uma padieira que estava esquadriando, e, com o rosto entre as mãos, desfazer-se em pranto. Elle tinha amado aquella rapariga desde que a vira aos treze annos. Trabalhára e roubára como gallego para a poder comprar ao pai por um conto e quinhentos e pico. Metteu-se na politica; fez-se sargento-mór a vêr se se levantava a uma altura em que a Martha o achasse digno d'ella e superior ao estudante. Desabadas as esperanças com a prisão do patife de Calvos, scismava ainda em voltar de novo ao campo quando viesse o D. Miguel authentico, porque o tenente-coronel de Quadros lhe dizia que el-rei chegava a Portugal na primavera do anno seguinte—affirmava-lh'o o padre Rocha para o consolar juntamente com as bebedeiras quotidianas. Tudo acabado, perdido, como se lhe morresse a Eva do seu paraizo! E por isso o pedreiro chorava como os grandes poetas trahidos, como Camões, como Tasso, como Alfred de Musset. As lagrimas na cara tostada d'aquelle operario tinham o travo das que a poesia crystallisou no pantheon dos martyres do amor.

Depois, levantou-se, limpou as faces á manga da camisa, pegou da esquadria e continuou a trabalhar, assobiando a musica triste d'uma cantiga d'esse tempo:

Ó mar, se queres,
Tem dó de mim.

Estes assobios eram o silvo da serpente da vingança; mas o seu rancor não punha a pontaria em Martha. Se deixava de cinzelar a pedra, e fitava os olhos extaticos n'um immenso vacuo, via passar lucilante a imagem da pequena, pura, angelical como a vira aos treze annos. Um grande romantico—uma explosão de ideaes que florejavam d'aquelle pedreiro como um canteiro de boninas nos musgos de um penhascal. Havia d'estas transigencias com os anjos despenhados. Dir-se-ia que elle tinha lido as Confissões de um filho do seculo, aquella torrente de lagrimas ignobeis que lava os pés de uma dissoluta illustrada.

Elle, desde essa hora funesta, pensou em matar o José Dias; mas, nas ricas protuberancias osseas do seu grande craneo, a bossa do homicidio era muito rudimentar. Tinha tido varias occasiões de poder-se gabar d'essa perfeição. Haviam-lhe batido dois estudantes a um pinhal, por causa das denuncias ao padre mestre Roque; e, quando o cão do Dias lhe rasgou a calça n'um sitio melindroso, o Zeferino desconfiou que, se fosse capaz de matar um homem, deveria ter atirado com o machado á cabeça do caçador. Elle queria espesinhar o cadaver de José Dias, espostejal-o, trincal-o, mascal-o, esmoêl-o, devoral-o, mas á maneira dos devoristas incolumes que compram um porco já morto na Ribeira Velha, e o esquartejam com um grande regosijo anthropophago, com as mãos ensopadas nas banhas da victima.

O pedreiro denunciante ia contando em segredo a toda a gente a descoberta que fizera n'aquella noite em que se enganára com o luar. A Martha estava desacreditada na freguezia; as mulheres que sachavam os milharaes faziam commentarios perpetuos ao texto do pedreiro, recordavam as façanhas da Genoveva, contadas pelas velhas, e as mais antigas diziam que a Brigida Gallinheira, avó da Martha, já tinha dado o exemplo á filha.—Uma geração de maratonas do alto, dizia a tia Rosa de Carude, cuspindo no chão, e pondo a soca em cima. Riam-se do Zeferino que andava como a cobra que perdeu a peçonha, muito escamado; que lhe tinham sahido dois casamentos com boas lavradeiras, e elle diz que havia de ir morrer solteiro ás Pedras Negras, depois de matar um homem; e houve quem affirmasse que o vira com um bacamarte debaixo dos carvalhos, por essa noite fóra, defronte da casa do Simeão. Uma calumnia.

Avisaram a mãe do José Dias da espera do pedreiro, e ella fez dormir o filho era uma trapeira que não tinha janella por onde saltasse, e fechava-o de noite por fóra, rogando pragas á serêsma de Prazins:—Que um raio a partisse e o diabo a levasse para as profundas do abysmo! Depois ia rezar a corôa com os creados, e rogava a Deus pelos que andavam sobre as aguas do mar e pelas almas de todos os seus parentes e visinhos, com uma intonação chorada que fazia devoção.

O José Dias vivia amargurado. Tinha sido creado n'um grande respeito aos paes, e sentia-se inhabil para lhes reagir. A doença de peito que principiava a desvigorisar-lhe o corpo, implicava-lhe com a atonia da alma. Sentia o egoismo indolente dos enfermos minados pela consumpção lenta. Invejava a robustez do irmão, um trabalhador forte que dormia dez horas, e ao romper da aurora ia lavar a cara ao tanque e pensar o gado com uma grande alegria, de assobios remedando as requintas das chulas. Passava muitas horas com o seu confidente, o padre Osorio. Pedia-lhe conselhos—que arranjasse modo de elle poder casar com a Martha.—Que eu, dizia com desalento, não vou longe; mas queria remediar o mal que fiz.

A Martha escrevia-lhe para Caldellas, porque a tia Maria de Villalva, uma vez que lá viu um garoto com carta para o filho, deu sobre elle com um engaço, que por pouco o não apanha pela cabeça com os dentes do instrumento. As cartas eram desconfianças, receio do abandono, lagrimas. O pai não a mortificava. Pelo contrario, dizia-lhe a miudo:—Se o Zé de Villalva não casar comtigo, talvez seja a tua fortuna, por que póde ser que teu tio adregue de gostar de ti, e mais mez menos mez elle rebenta por essa porta dentro rico como um porco. O brazileiro da Rita Chasca que chegou agora diz que elle tem quatrocentos contos fortes, p'ra riba, que não p'ra baixo.—A Martha escondia-se a chorar; e, ás vezes, lembrava-se do fim da mãe—o suicidio; e punha-se a olhar para o Ave e a escutar o rugido cavo de uma levada que parecia trazer-lhe os gemidos agonisantes de muitos afogados.

O Dias fallava-lhe na sua doença, no desfallecimento de forças que já o não deixavam caçar, da tristeza que o consumia, do desamor com que a familia o via padecer, do odio que começava a ter á mãe, e das saudades dilacerantes que sentia pela sua querida Martha.—Que o seu amigo padre Osorio trabalhava para obter o consentimento do pai; mas que, se o não obtivesse, estava resolvido a fugir com ella, mesmo sem recursos, ou com os poucos que o seu amigo lhe podia emprestar.

De tempo a tempo ia vêl-a de dia; mas a mãe trazia-o muito espreitado, e ralava-o:—que a tal croia havia de dar cabo d'elle. O cirurgião tinha-lhe dito delicadamente que o José abusava do 6.°. Ella, como sabia os mandamentos de cór e salteados, entendeu logo, e dizia a toda a gente que o seu Zé andava assim um pilharengo por causa do 6.°. Era o resultado de saber a doutrina christã esta decencia no explicar-se por numeros. As visinhas entendiam-na e diziam-lhe que o José andava forgado, que lhe mettesse uma enxada nas unhas e o puzesse a roçar matto oito dias, que elle perdia o cio.

Decorreram alguns mezes. Com a primavera a saude de José Dias pareceu restaurar-se. Elle attribuiu as suas melhoras ao contentamento. O pai, que era regedor, a pedido do governador civil que o mandou chamar a Braga, por intervenção do padre Osorio, dava o consentimento; mas a mãe recalcitrava. Esperava-se, porém, a vinda dos missionarios a Requião, para a reduzirem ao dever de catholica. O vigario de Caldellas já tinha prevenido um egresso do Varatojo, fr. João de Borba da Montanha, das terras de Celorico de Basto, d'uma força prodigiosa em emprezas mais difficeis.

Martha recobrava alegres esperanças, e o Zeferino das Lamellas digeria a sua dôr, assobiando a musica da melancolica bailada:

Ó mar, se queres.
Tem dó de mim.

Para seu desafôgo, ia a miudo a Quadros saber quando chegaria o snr. D. Miguel. O Cerveira estava relacionado com os setembristas. Formára-se a juncção dos dois partidos hostis aos Cabraes, aproximados pelas eleições sanguinarias de 1845. O tenente-coronel reunia espingardas em Quadros e dava dinheiro para o fabrico de cartuchame no concelho da Povoa de Lanhoso e nos arrabaldes de Guimarães. O padre Rocha communicava-lhe as noticias enviadas de Londres pelo Saraiva, e conseguiu que elle fosse ao Porto receber o gráo de commendador da ordem de S. Miguel da Ala a casa do João d'Albuquerque, da Insua, que representava nas provincias do norte o Grão-Mestrado. O Zeferino sentia momentos de jubilo de tigre que se agacha a medir o salto á presa. Tinha um riso que era um ringir de dentes. Parecia-lhe que estava a mastigar os ligados do José Dias.

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