XIX

Frei João não se entendia já com a sua confessada. Deviam ser grandemente disparatadas as revelações de Martha para que o varatojano desconfiasse que ella estava obsessa e que as suas visões deviam ser malfeitorias de demonio incubo. Feliciano discordava da opinião do inexoravel exorcista, quando elle o interrogava sobre miudezas de alcôva. O marido contava singelamente que sua mulher passava a maior parte do dia a rezar pelo livro no oratorio; que tinha dias de comer bem e outros dias de não comer nada; que não dava palavra ás creadas, nem se mettia no governo da casa; que com elle tambem fallava pouco, e não desatremava. Que dormia bem e sempre na mesma cama com elle. Verdade era que ás vezes elle acordava e a via sentada com os olhos postos no tecto.

—Pois é isso...—atalhava o varatojano.

—É isso quê, snr. frei João?—perguntava o marido.

O confessor não podia explicar-se. O seu praxiste Brognolio, ampliado pelo padre-mestre arrabido frei José de Jesus Maria, admoestava-o a occultar de terceiras pessoas os signaes evidentes da obsessão de uma alma, sem estar devidamente apparelhado para o combate e na presença do inimigo. O apparelho, n'este caso, era a estola, a agua-benta, o latim—uma lingua familiar ao diabo. Além dos preceitos da arte, havia a inviolabilidade do segredo da confissão; e uma caridade decente aconselhava que Feliciano ignorasse as tentativas adulteras do demonio incubo, figurado na pessoa espectral do José Dias. Com o vigario de Caldellas foi menos reservado o exorcista. Asseverou-lhe que a brazileira de Prazins estava possessa, muito gravemente energumena. O padre Osorio abriu um sorriso importuno, d'estes que vem de dentro em golfos involuntarios como a nausea d'um embarcadiço enjoado. O egresso reparou no tregeito heretico da bocca do padre, e perguntou-lhe se tinha alguma duvida a pôr.

—Uma pequena duvida, snr. frei João, respondeu intemeratamente o vigario.—Não posso acceitar que o diabo, sendo filho de Deus, seja o ente perverso que faz soffrer a pobre Martha...

O diabo, filho de Deus!—interrompeu o varatojano, levando as mãos inclavinhadas á testa. Padre Osorio, o snr. disse uma blasfemia enorme... Santo nome de Jesus! O diabo filho de Deus! Anathema!

—Anathema á logica, ao raciocinio, por tanto!—contraveio sereno e risonho o outro.

—A logica? a logica de Calvino, de Voltaire.

—Não, senhor, a logica do professor que m'a ensinou no seminario bracharense. Creador não é pai?

—É sim, e d'ahi?

—Deus é pai de todas as suas creaturas; ora o diabo é creatura de Deus; logo: Deus é pai do diabo.

Distinguo!—contrariou o varatojano.

E o vigario, sem attender á interrupção escolastica:

—Se Deus é bom, as suas creaturas não podem ser más; ora, o demonio é máo: logo, o demonio não póde ser creatura de Deus; mas, se o diabo não é creatura de Deus, pergunto eu o mesmo que um negro da Africa perguntava ao missionario: Quem é o pai do diabo?

Distinguo!—insistiu o varatojano apoiado nas velhas formulas da dialectica esmagadora—Deus creou os anjos; d'estes houve alguns que se rebellaram contra o seu creador, e foram precipitados do céo: são os espiritos infernaes. Alguns d'esses anjos não desceram ás trevas inferiores, e permanecem para flagello do genero humano no ar caliginoso. Aer caliginosus est quasi carcer dœmonibus usque in diem judicii, diz S. Agostinho. Deus permitte que os demonios vexem as creaturas, pelo bem que póde resultar ás creaturas d'esse vexame. É o que se colhe do Evangelho de S. João: Omnia per ipsum facta sunt. Por tanto, Deus permitte o mal? logo: este mal é bom, por que Deus é o Summo Bem. Verdade é que os males não são bens...

—Ia eu dizer...—atalhou o padre Osorio; ao que o missionario acudiu prestes e victoriosamente:

—Mas Deus tira os bens d'esses mesmos males, como diz S. Thomaz: Bonum invenire potest sine malo, sed malum non potest invenire sine bono. Logo: Deus permitte o mal como causa do bem; id est, permitte o demonio como exercitação saudavel do genero humano. Melius judicavit Deus de malis bona facere, quam mala nulla esse permittere, diz D. Agostinho: e S. Thomaz ainda é mais claro e persuasivo: «A divina sabedoria permitte que os demonios façam mal pelo bem que d'ahi resulta.» Divina sapientia pennittit aliqua mala tieri per malos Angelos propler bona quæ ex eis elicit. São doze as causas por que Deus permitte que os demonios atormentem as creaturas humanas. Primeira: para que o homem obstinado na culpa seja n'este mundo e no outro atormentado; segunda...

—Estou convencido, snr. frei João—atalhou o vigario,—vossa reverencia já esclareceu a minha duvida. É o caso que Deus permitte demonios flagellantes para depurar com elles os peccadores,—uns e outros creaturas da sua divina justiça.

—É isso mesmo.

—O espirito do máo homem—do peccador que é em si um demonio interno, depura-se pela acção de outro demonio externo, ambos creaturas do seu divino amor... Percebi. Estou convencido... Deus é como um pai que azorraga o seu filho querido a vêr se elle recebe as mortificações como caricias. Rico pai!—E accrescentou com amargura:—Ah! meu frei João, receio muito que as superstições venham a desabar o catholicismo que deve a sua existencia á victoria que alcançou sobre as mentiras da idolatria com as armas da verdade. Ego sum veritas.

Frei João ia fulminar segunda vez a argumentação do padre Osorio, quando os outros missionarios chegavam, para assistirem ao jantar de despedida em casa da brazileira.

Fechára-se a missão; os padres iam d'ali para Barcellos; mas frei João, empenhado em desendemoninhar a pobre Martha, hospedou-se na quinta da Revolta, em cuja capella celebrava missa e confessava as suas filhas espirituaes insaciaveis do pão dos anjos, que digeriam n'uma vadiagem dorminhoca, amesendadas nos adros das egrejas e nos soalheiros, catando as proprias pulgas e as vidas alheias.

Frei João andava apercebido com todos os utensilios infestos ao diabo. Resolvido a dar-lhe batalha, armou a energumena das mais provadas armas nos seus triumphos sobre o inferno. Lançou-lhe ao pescoço um santo lenho, um breve da Marca, a veronica do S. Bento, o Symbolo de Santo Athanasio, cruzinhas de Jerusalém, veronica com a cabeça de Santo Anastacio, reliquias de varios santos, umas esquirolas de ossos grudadas em farrapinhos, orações manuscriptas da lavra do varatojano, mettidas em saquinhos surrados da transpiração d'outras obsessas.

Martha devia jejuar, como preparatorio. Parece que o demonio se compraz de habitar estomagos confortados na quentura do bôlo alimenticio. O exorcista jejuava tambem conforme o preceito dos praxistas, e aconselhava ao Feliciano que jejuasse, em harmonia com o texto de Jesus que dissera pela bocca de S. Matheus que «taes diabos, sem jejum nem oração, não sahiam do corpo:» Hoc genus demoniorum in nullo potest exire nisi oratione et jejuino. O Feliciano dizia que sim, que jejuava; mas, ás escondidas do frade, comia bifes de presunto com ovos; começava a revelar idéas egoistas, um cuidado da sua alimentação e do seu repouso, certo desprezo cynico pela parte que o diabo tomára na sua familia.

Frei João de Borba da Montanha expendeu ao vigario de Caldellas os fortes symptomas que Martha apresentava de estar possessa. Eram muitos, e bastava-lhe citar os seguintes:

Ouvir a voz de José Dias que a chamava, no sonho e na vigilia. E mostrava o texto: quando patiens audit quasdam voces se vocantes. Por que aborrecia a carne e o pão, e tinha grande fastio. O Osorio lembrava-lhe que seriam enôjos peculiares da gravidez; mas o varatojano confundia-o com o latim. Quando quis non potuit gustare panem aut carnem. Ella digeria com muita difficuldade os alimentos. Era obra do diabo, por que o livro dizia,—bem vê—mostrava frei João ao padre Osorio: Quando quis sanus cibum digerere non potest in stomacho. Chorava e não dizia por que chorava. Diabrura com toda a certeza:—Quando lacrymas plorat et nescit quid ploret. Havia um artigo que accentuava as mais fortes presumpções da obsessão incuba de Martha. Parece que ella no confissionario se accusava de repugnancias, de concessões violentadas, de resistencias ás caricias do esposo: e talvez revelasse que a imagem de José Dias intervinha n'essas luctas da alcova. É o que se deprehende do Signal decimo terceiro que frei João mostrava com o dêdo no seu Brognolo, e vai em latim, como lá está, para que poucas pessoas possam alegar intelligencia:—Quando vir uxori et uxor viro apropinquare non potest, quia videt aliud corpus intermedium, aut sibi videtur esse.—Aqui é onde bate o ponto!—dizia frei João martellando com o dedo indicador na pagina indecente.

—Mas não será essa visão o introito de uma alienação mental?—perguntava o de Caldellas.—Não vê, padre João, que esta rapariga está abatida por uma grande amargura que prende com actos da sua vida passada? Não a vê tão cahida, tão melancolica...

—Os melancolicos são os mais vexados pelo demonio—replicou o egresso. Veja Galeno e Avicena, que aqui vem citados.—E folheou o Brognolo, até encontrar o texto triumphal.

—Aqui tem; leia, verá que a demencia póde ser obra do demonio.

O padre Osorio leu com uma grande ignorancia curiosa: Os demonios acommettem mais os melancolicos. Primeiro, porque o humor melancolico com difficuldade se tira e é de sua natureza inobediente e rebelde. Segundo, porque o humor melancolico é mais apto para gerar diversas enfermidades incuraveis, porque, se é muito enxuto, offende as membranas do cerebro e faz ao homem doudo; se offende os ventriculos causa apoplexia, e gera raivas, frenesis e odios; e estes effeitos de melancolia muitas vezes os costuma causar o demonio, etc.

—O padre Osorio está-se a rir?!—invectivou fr. João abespinhado. Sabe o snr. que mais? Eu já tinha ouvido dizer ao abbade de S. Thiago d'Antas que o snr. padre vigario de Caldellas não era muito seguro em materia de fé; que tinha um bocado de fedor heretico nas suas predicas, e que dava mais importancia á quina do que aos santos milagrosos na cura das maleitas.

—Se isso fede a heresia, então, snr. frei João, estou de todo pôdre—obtemperou Osorio, e continuou deixando impar de espantada indignação o missionario.—A respeito da enfermidade de Martha, sou a dizer-lhe que em vez de exorcismos quereria eu que lhe ministrassem banhos de chuva, calmantes, distracções; e, baldados estes recursos, que a internassem n'um hospital de alienadas, porque esta mulher é filha de uma douda, é neta de outros doudos, e pouco ha-de viver quem a não vir de todo mentecapta. Além de herege sou propheta, meu caro senhor frei João. A sua energumena tem infelizmente o demonio que raras vezes a sciencia vence—o demonio da demencia hereditaria que a não se curar com a agua em chuveiro, também se não cura com a agua benta. Seria bom que vossa reverencia, antes de pôr á prova os exorcismos, ouvisse a opinião dos medicos.

—Eu sei o que dizem os medicos—e sorria com menospreço da pobre medicina. Eu, aqui onde me vê, com os exorcismos, com este remedio que não inventei, mas que a egreja de nosso Senhor Jesus Christo me deixou, e que elle mesmo, o divino Mestre usou, como o senhor padre Osorio deve ter lido nos seus Evangelhos ... ou nega a auctoridade dos Evangelhos? Nega que Jesus Christo expulsava demonios?

—Não senhor, eu sei a historia da legião que se metteu nos porcos...

—E outras; os livros sagrados estão cheios d'esses factos a que o padre Osorio chama historias; não são historias, são factos.

—Ah! snr. frei João! Jesus Christo, a sua vida e os seus milagres não são historia? não pertencem á historia? Máo é isso então!

A polemica prolongou-se um tanto azeda; Osorio escandalisava os pios ouvidos do egresso que, pondo as mãos no peito e os olhos no céo, exclamava com S. Paulo que era necessario que houvesse escandalos. Interrompera-os o brazileiro dizendo que a sua sobrinha estava com um ataque e que lhe dera no jardim. Frei João entrou na alcôva para onde a tinham levado em braços, e o padre Osorio ficou ouvindo a revelação da governanta, que lhe dizia:

—A desgraçadinha está de todo varrida! Eu estava no tanque a passar uns lenços por agua quando ella entrou no pomar sem fazer caso de mim, como se ali não estivesse viva alma. E vae depois poz-se a cortar rosas e a dizer que eram para o seu amado José Alves, para o seu esposo José Alves. V. S.ª não me dirá quem diacho, Deus me perdôe, é este José Alves?

—E depois?

—Depois, sentou-se debaixo da ramada, esteve a chorar com o ramo das rosas muito chegado á cara e d'ahi a pouco cahiu para o lado a dar aos braços e a espernear. Eu então chamei a cozinheira e levamol-a para o quarto com os sentidos perdidos! O José Alves, quanto a mim, acho que foi derriço que ella teve em solteira. Já ouvi dizer que a casaram com o arenque do tio contra vontade... É o que tem estes casamentos...

O padre Osorio não illucidou a governante. Assim que o Feliciano lhe disse que se iam lêr os exorcismos, retirou-se, pretextando deveres parochiaes, e observou-lhe:

—Não deixe mortificar muito sua sobrinha com os exorcismos, snr. Prazins. O demonio que ella tem é a doença. Faça o que lhe disse o padre mestre Roque que é um velho illustrado e virtuoso. Vá dar um giro com ella. Leve-a á capital; demore-se por lá; e, quando a vir distrahida, contente e com bom appetite, volte para sua casa.

O brazileiro disse que bem sabia que os exorcismos eram chérinolas; mas que o frade se lhe mettera em casa, e dizia que não se ia embora sem curar ella. Accrescentou que não podia agora sahir do Minho porque estava á espera que os filhos do Cerveira de Quadros perdessem na batota do Porto a sua parte de alguns contos de réis, que acharam por morte do pai;—que lhe convinha muito comprar a quinta da Ermida que partia com a d'elle, e havia outro brazileiro que a trazia d'olho. Que a respeito da sobrinha tencionava leval-a a banhos do mar, e havia de comprar o Manual do Raspail, a vêr o que elle dizia da molestia, porque em Pernambuco toda a casta de doença se curava pelo Raspail, e que levasse o diabo o frade e mais a caiporice dos exorcismos.

—Que sim, que comprasse o Manual do Raspail—concordou o padre Osorio, e sahiu muito cançado—dizia elle á irmã—de lidar com as duas cavalgaduras.

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