XVIII

Chegaram por este tempo, vindos das terras de Basto a Requião, os tão almejados missionarios, interrompidos no seu esteril apostolado pela revolução da Maria da Fonte. Martha ouviu a noticia com alvoroço, e disse que queria seguir os sermões,—que precisava de salvar a sua alma. O Feliciano viera um pouco estragado de Pernambuco a respeito de religião; mas respeitava as crenças alheias, e não contrariava as devoções da sobrinha. O padre Roque era de parecer que se não deixasse Martha entrar muito pela mystica; aconselhava o marido que fosse viajar com a mulher, que a tirasse d'aquella terra, porque as suas enfermidades não podiam cural-as os sermões nem as hostias. O egresso conhecia a Pharmacia do varatojano de Borba da Montanha, e sabia que a primeira receita de frei João era exorcismal-a como demoniaca.

—Dão cabo d'ella, vocês verão, dão cabo d'ella—dizia o padre-mestre.

Eram quatro os missionarios que assentaram o vestibulo do paraizo em Requião.

O padre José da Fraga ainda novo, bem composto e limpo nas suas vestes sacerdotaes, grave e semblante intelligente. Tinha-se ordenado em Brancanes com o proposito de ir propagar o christianismo na China; depois, interesses e rogos de familia determinaram-o a ficar na patria, sem abrir mão da vocação apostolica. Lêra e percebêra Raulica, Lacordaire, e imitava o segundo com bastante engenho. O padre Osorio dizia-lhe que guardasse as suas perolas para outro auditorio menos suino. E, de feito, as mulheres, quando de madrugada o viam no pulpito, aconchegavam-se umas das outras para commodamente tosquenejarem o seu somno da manhã; e os homens diziam que não o chamava Deus por aquelle caminho—que não calhava p'r'á prédega.

O padre Cosme de Tagilde, robusto, de meia idade, auctor da Escada do céo pelas escarpas do Golgotha e da Via seraphica para o reino dos Cherubins, era pregador de sentimento. Tinha sido furriel no exercito realista, e ordenára-se para herdar uns bens de uma parenta beata que tinha horror á tropa. Lêra as novellas do Prévost e Madame de Genlis, quando era furriel. Ficou-lhe d'essas leituras uma linguagem amellaçada, com interjeições tragicas, e um geito especial de tocar as mães com imagens ternas tiradas das coisas infantis. Por exemplo: E o teu filhinho, mulher, o filhinho que Deus te levou para a companhia dos anjos, quando lá do céo te vê peccar, estende para ti os seus bracinhos, e diz: Mãe, ó mãe! não peques; mãe, não peques! pelas lagrimas que por mim choraste, não caias na tentação, porque, se te perdes, se te afundas no abysmo eterno não tornarás a vêr o teu filhinho que te chama do céo, mãe, ó mãe! E infantilisava o timbre da voz, inclinava a um lado a cabeça n'um langor menineiro, estendia os braços do pulpito abaixo com as mãos abertas, alongava os beiços no geito da boquinha de criança, e muito mavioso, n'um tremulo de voz e braços: Mãe, ó mãe! E todas as que tinham perdido filhinhos desatavam n'um berreiro.

O padre Silvestre da Azenha, homem antigo, d'uma porcaria de sotaina digna dos agiologios, boa pessoa, incapaz de mentir voluntariamente, era forte na topographia do inferno e nas genealogias, usos e costumes dos diversos diabos. Affirmava que a legião d'elles se dividia em esquadras, capitaneadas por Lucifer, principe da Luxuria, por Asmodeu, Satanaz, Belzebut e outros, cada um com a pasta ministerial dos seus competentes vicios. Dava noticia de um caudilho de esquadra, chamado Behemoth, cujo empenho era bestializar os fieis—verdadeira superfluidade.—Leviathan capitaneava o esquadrão da Soberba; e o ministro e secretario de estado encarregado da pasta da Avareza chamava-se Mamona. A sciencia moderna matou este diabo, extrahiu-lhe o oleo, e pôl-o ao serviço dos intestinos dos peccadores—oleo de Mamona. Explicava o padre ás mulheres o que era a corja dos demonios incubos. Contava casos de algumas que ficaram gravidas d'esses devassos, e dizia em latim que taes demonios fecundos podiam, mesmo contra a vontade da mulher, rem habere cum ilta. E as mulheres, sem pôr mais na carta, farejavam o latim e murmuravam indignadas:—Tarrenego! Catixa! cruzes, canhoto!—e benziam-se, cuspinhando nos calcanhares umas das outras.

Fr. João de Borba da Montanha, com quanto não frequentasse o pulpito, era o vulto mais proeminente da missão. Sahira já velho do Varatojo, peito fraco, um pigarro chronico de catarrho pituitoso, com poucos dentes, por onde as palavras lhe sahiam assobiadas que nem melro nos sinceiraes de julho. Por isso o confissionario era a sua faina de prosperrimas colheitas para o céo, e os exorcismos a sua famosa gloria cheia de triumphos sobre todas as esquadras dos demonios conhecidos do seu companheiro padre Azenha. Eram ambos, de mãos dadas, o terror do inferno; um a explorar diabos no planeta, o outro a enxotal-os. Á omnipotencia d'este varatojano é que o vigario de Caldellas confiara a reducção da mãe de José Dias.

Este egresso tinha feito á sua custa a terceira edição do Peccador convertido ao caminho da verdade, obra do seu conventual varatojano frei Manuel de Deus. Vendia o livro por 720, meia-encadernação. Chamava-lhe elle o seu balde de tirar almas do profundo poço do enxofre infernal Todas as beatas se consideravam mais ou menos empoçadas, e por 720 mettiam-se no balde de frei João. Barato.

Foi este o missionario escolhido por Simeão, de harmonia com o genro. Martha lembrava-se que o seu José Dias lhe fallára n'elle com muita esperança em que desfizesse os obstaculos do casamento. Quiz confessar-se ao varatojano, e revelou para esse acto uma espectativa seraphica, grande deliberação anciosa, um sobresalto jubiloso em que parecia influir a cooperação sobrenatural do querido morto. O padre Osorio entrevia preludios de loucura nas alegres disposições com que Martha, n'um recolhimento contemplativo, desde o apontar da aurora, esperava á porta da egreja que chegassem os missionarios com o cortejo das mulheres encapuchadas, muito ramellosas, estralejando os seus tamancos ferrados na grade do adro que vedava a passagem aos porcos.

Em quanto na egreja, depois da missão, se depunha a hostia nas linguas saburrentas e gretadas das beatas—que enguliam aquella farinha triga como quem devora sevamente um Deus—cá fóra armavam-se no adro dois taboleiros, assentes em tripêças de engonços, com seus pavilhões de guarda-soes de panninho azul. Algumas mulheres de aspectos repellentes, sujas da pójeira das jornadas, com os canêllos callosos e encodeados, expunham nos taboleiros as suas mercadorias, e ao mesmo tempo injuriavam-se reciprocamente por velhas rixas invejosas á conta de subornarem freguezas com caramunhas e palavreados. No silencio do templo, ouvia-se cá de fóra:—Arre, bebeda!—Cala-te ahi, calhamaço!

A exposição bibliographica, feita nos taboleiros, além das obras em brochura e encadernadas dos missionarios, constava da Regra de S. Bento, da Missão augmentada, da Missão abreviada, das Piedosas meditações, das Horas do christão, do Mez de Maria, do Mez de Jesus e do Livro de Santa Barbara. Havia tambem Novenas, Via-sacras com estampas d'um horror sacrilego, uns Christos que pareciam manipansos do Bihé. Seguia-se a camada dos Escapularios; uns eram de N. S. do Carmo, de N. S. das Dôres, da Conceição; outros do Preciosissimo sangue de Jesus, do Coração do mesmo, da Santissima Trindade e de S. Francisco. Tinham grande sahida os Cordões do mesmo santo, e as Correias de S. Agostinho, com um botão de ôsso, a apertar na cintura,—arnez impenetravel ao diabo, por causa do botão, que, posto na correia, tem virtudes para ôsso muito admiraveis, quasi como as da carne, mas no sentido inverso—ella attrahindo o cão tinhoso, e elle repulsando-o. De Santo Agostinho e do Anjo da Guarda também havia Rezas enfiadas em metal, ou em cordão, simplesmente, mais baratinhas. Na especie medalheiro, grande profusão: as medalhas mais procuradas eram as do Coração de Maria, do Coração de Jesus, do Anjo da Guarda e de Santa Thereza, a 10 réis.

As corôas, penduradas em barbantes ou estendidas em meadas, eram diversas no tamanho e na nomenclatura: as seraphicas com sete mysterios, e cada mysterio com dez Ave-Marias; as da S. da Conceição com doze Aves e tres mysterios:—uma certa conta que os missionarios lá graduavam com a gafaria espiritual das confessadas. Havia algumas que se aguentavam com os Rosarios de quinze mysterios, e a Corôa dos nove coros dos Anjos, e a do Preciosissimo sangue e coração de Jesus. Mas o grande consumo era de contas de azeviche, refractarias aos máos olhados; de modo e maneira que, se o azeviche é legitimo, senhores, logo que um inimigo nos encara a conta racha de meio a meio.

Martha, a beata, a senhora brazileira de Prazins, como lhe chamavam as regateiras das drogas da salvação, fornecera-se de tudo em duplicado; mas sobre todos os devocionarios o da sua leitura dilecta era o Peccador convertido ao caminho da verdade, edição do seu confessor varatojano, fr. João de Borba da Montanha.

São impenetraveis os segredos revelados no tribunal da penitencia por Martha ao seu director espiritual. O padre Osorio, não obstante, suspeitava que a penitente revelasse, com escrupulosa consciencia, solicitada por miudas averiguações do missionario, saudades, reminiscencias sensualistas, carnalidades que se lhe formalisavam no espirito dementado, emfim, visões e sonhos com o José Dias. Inferia o padre a sua conjectura, sabendo que frei João lhe mandára lêr no Peccador convertido, tres vezes por dia, o capitulo 33, intitulado Resistencia ás tentações contra a castidade. Fortalecia esta hypothese ter dito Martha a D. Thereza que a alma de José Dias lhe apparecia em sonhos; e ás vezes, mesmo acordada, lhe parecia sentil-o na cama á sua beira; e então mordia o travesseiro para que o tio a não ouvisse chorar. Póde ser que estas revelações, communicadas ao confessor, um simplorio incapaz de destrinçar entre doença e peccado, fossem acompanhadas de particularidades sensitivas que Martha por vergonha não contava á sua amiga. É certo que a confessada do varatojano lia, declamando, deante do seu oratorio, tres vezes por dia, a Resistencia ás tentações contra a castidade.

A oração dizia assim:

Senhor amorosissimo, não vos escondais, não me deixeis sósinha, que me cerca o leão para me devorar; os seus rugidos me atormentam para que não goste as suavidades do vosso amor. Cercarei todo o mundo, subirei aos ceos, não descançarei emquanto não achar o meu amor. Conjuro-vos, filhas de Jerusalém, creaturas da terra que, se encontrares o meu amado, lhe digaes que morro d'amor. E, se quereis os signaes para conhecêl-o, ouvi. O meu amado é candido e rubicundo, escolhido entre milhares; candido por divino, e rubicundo por humano, candido porque innocente, e rubicundo por chagado. Ai! doce amor, onde vos escondestes? Tende compaixão de quem vos busca. Estes signaes que de vós tenho só servem de avivar-me a saudade, são settas que me ferem; morro, desfalleço, se vos não acho.

Os cabellos da sua cabeça são como o ouro mais puro e mais precioso, são como palmitos e pretos como o corvo. Se não entendeis, filhas de Jerusalém, nem eu vo'l'o saberei explicar; o que vos digo e que os seus cabellos são fortes laços que bastam para prender a todo o mundo, bastam para abrazar tudo de amor. Ai! amado do meu coração, se as admirações do que sois abrazam a alma, que vos vê por enigmas, que será quando vos vir claramente! Os seus olhos são como pombas sobre correntes de aguas, mansos, puros, suaves, benignos, amorosos. Que magestosos, que humildes, que graves, que serenos, que doces, que suaves! Oh dulcissimo amor, já que tanto fechais os olhos para não serem vistos, ao menos não os fecheis para me não verem! As suas faces são como canteiros de flores aromaticas, sempre bellas, sempre cheirosas; passam os dias, os mezes e os annos, e os seculos, e as faces do meu amor sempre são flores, nem o sol as murcha nem o frio as corta, nem a agua as corrompe, nem o vento as desfolha; são rosas, são assucenas, são brancas e encarnadas. Oh! quem me dera uma gota da agua que as rega, um grão do calor que as vivifica; quem me dera que o jardineiro que as compõe me quizera semear umas flores no meu jardim e tomar á sua conta compôl-as e regal-as, que o meu amado gosta muito de flores. Dizei-me, aves do ar, flores do campo, peixes do mar, viventes da terra, dizei-me se sabeis onde assiste este jardineiro. Mas que digo, se este mesmo é o amado a quem busco e não mereço achar! Ó saudade ardente, ó sede matadora, ó setta penetrante, ó amor escondido! Que fareis, Senhor, que fareis, se o vosso empenho é ser amado, por que a minha ventura está em vos ter amor, como escondeis o mesmo que me havia de enamorar? Os seus labios são lirios, que distillam myrra excellente, lirios de pureza d'onde sahem palavras que inflammam no amor da mortificação. Oh! se fôra tão ditosa minha alma que recebêra alguma parte da myrra que distillam teus lirios! Oh! se foram tão felizes meus olhos que viram a engraçada côr de taes labios! Aonde estaes escondido, amado do meu coração? Não sahem por esses labios as palavras com que andais chamando pelas ruas, fortalezas e muros da cidade: «Se algum é pequenino venha para mim?» Logo, como vos escondeis d'esta pequenina pobre e necessitada que com tanto empenho vos busca? Suas mãos são como de ouro feitas ao torno e cheias de jacintos, todas perfeitas, todas preciosas; mas reparai, filhas de Jerusalém, e por aqui vos será mais facil conhecêl-o, que, no meio do ouro e jacintos, tem em cada mão um precioso rubi que a passa de uma para a outra. O seu peito e entranhas são de marfim ornadas de safiras, dando a conhecer a côr celeste da safira, a branca do marfim e sua dureza, que os seus affectos são puros, candidos, castos, virginaes, fortes, celestiaes e divinos, sinceros, compostos, solidos e constantes. Ó peito de amor, entranhas de piedade, como assim vos fechaes para quem vos ama? Aqui deve de haver mysterio! Gostaes talvez de me vêr afflicta para provar se sou amante! Quereis que me custe muito o que muito vale, porque, se o lograr a pouco custo, farei talvez pouco caso do que não tem preço. Mas aí, amado meu, que, se me não dizeis aonde passaes a sesta ao meio dia, temo que, andando vagabunda, venha a cahir nas mãos dos vossos contrarios! A sua apparencia é como a do Libano, a sua composição como a do cedro; em Judéa o monte mais formoso é o Libano, no Libano a arvore mais excellente é o cedro: assim é o meu amado entre os filhos dos homens. A sua garganta é suavissima, porque sahem por ella as vozes, as respirações do peito, que é archivo de amores e suavidades; em fim todo é formoso, todo perfeito, todo amavel. Tal é o meu amado, este é o meu amigo, filhas de Jerusalém, creaturas da terra; se o achardes, dizei-lhe que morro d'amor...

Martha dizia a oração em voz alta, em modulações cantadas, n'um arrobamento de preghiera. Aquelles dizeres, alinhavados pelo varatojano, são extractos e imitações das escandecencias erothicas do poema dramatico da Sulamita no «Cantico dos Canticos»—os trêchos mais lyricamente sensuaes da antiguidade hebraica. Elles deram o tom de todas as exaltações nevroticas, desde os extasis hystericos de Thereza de Jesus até ás allucinações da beata Maria Alacoque e da portugueza madre Maria do Céo, a cantora dos passarinhos de Villar de Frades. D'esta peçonha doce, elanguecente, vibratil e enervante, cheia de meiguices epidermicas de um corpo nú em frouxeis de arminhos, é que se fizeram uns Manuaes modernos em França por onde as adolescentes principiam a conversar com Jesus e a comprehendêl-o em linhas correctas, sob plasticas macias, a esperal-o, a desejal-o, como lh'o figuram com todas as pulsações, redondezas e flexibilidades da carne.

Martha, entre o Deus incomprehensivel e o Christo-homem, via um ser tangivel, o seu unico termo de comparação—o José Dias, esposo da sua alma e dominador dos seus nervos reaccendidos e abraseados pela saudade. Nas apostrophes a Jesus, palpitavam-lhe nitidas as curvas do amante que a ouvia de entre as nuvens, n'uma clareira azul, com a sua lividez marmorea e os anneis dos cabellos louros esparsos como nas cabeças dos cherubins. Tinha aquelle namoro no céo quando abria a pagina do livro com que o confessor lhe dissera que havia de exorcisar as tentações voluptuosas da sua alma e do seu corpo.

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