XVI

Relatava o vigario de Caldellas:

—O cerebro do Simeão, se era refractario aos golpes da dignidade, não era mais sensivel ás commoções das pauladas. Duas vezes feliz quanto á cabeça: nem honra nem predisposições inflammatorias. Cicatrisou a ferida; começou a comer gallinhas com a fome de um cannibal e com o prazer carnivoro d'uma raposa. Dera tacitamente Martha o consentimento de casar com o tio; esperava em soturno abatimento que a casassem; e, se minha irmã lhe tocava n'esse assumpto, dizia: «Façam de mim o que quizerem... Para o que eu hei-de viver ... tanto' me faz...» Quanto ao casamento, proseguiu o padre Osorio, eu scismava se a primeira noite nupcial seria a véspera de escandalosas desavenças, arrependimentos, choradeiras, divorcio, vergonhas, coisas; mas occorria-me que Feliciano me confessára repetidamente que sahira da sua aldeia aos doze annos e tornára casto e puro como sahira. E eu então, attendendo a que a castidade, além de ser em si e virtualmente uma coisa boa, tem umas ignorancias anatomicas, e umas inconscientes condescendencias com as impurezas alheias, descançava, tranquillisava o meu espirito escrupuloso. Uma falsa comprehensão da honra alheia ás vezes me aconselhava que mandasse o brazileiro conversar sobre o assumpto com o operario que o luar enganára em certa noite; mas a honra, como a consciencia, não são quantidades constantes no geral das pessoas; são condições da alma tão variaveis como a materia exposta ás mudanças climatericas. Ora as condições mentaes e moraes de Feliciano Prazins eram as melhores e as mais garantidas para a sua felicidade. Com que direito ia eu estragar aquelle excellente organismo?

Até aqui o padre Osorio com a sua grande pratica ethnologica dos usos e costumes dos maridos sertanejos do Minho.

O mano lavrador não era mais apontado em melindres de pundonor. Assim como curára em silencio o coração, golpeado pelas deslealdades da defunta Genoveva, do mesmo modo se acommodára com os estragos soffridos nos tegumentos da cabeça. Dizia-lhe o administrador que querelasse contra o Zeferino, porque havia testemunhas indicativas que faziam prova. Não quiz.—Depois é que me dão cabo do canastro;—dizia com um dom prophetico, e circumspecção admiravel em um homem sem instrucção primaria.

No entanto, Zeferino debatia-se n'um azedume de desesperado, muito má lingua, insano de paixão, a degenerar para faccinora em theorias de escavacar meio mundo. Começou a superar-lhe nas entranhas o vicio do pai com sêdes ardentes de vinho do Porto e genebra. Sentia allivios, consolações ineffaveis, quando se embebedava; rejuvenescia; a vida encarava-se-lhe melhor. Arranchava com vadios nas noitadas das tavernas onde se jogava esquineta e monte. Trocava na mesa da tavolagem peças de duas caras que comprára no tempo em que amealhára dez mil cruzados com dez annos de trabalho. Os parceiros roubavam-no. Vinham de noite de Famalicão a Landim, perto das Lamellas, jogadores professos, armar a forquinha ao pedreiro com cartas marcadas e pêgo. Depois das perdas, quando se via atascado na esterqueira do jogo e da borracheira, embriagava-se de novo, e n'essas allucinações ia a Prazins, de clavina ao hombro, com o Tagarro de Monte Cordova, e fallava alto, com petulancia, para que Martha o ouvisse. O brazileiro e o Simeão tinham-lhe medo e não abriam as janellas depois do sol-posto.

Espalhou-se então a noticia de que o brazileiro ia effectivamente casar com a sobrinha.

O Zeferino escreveu ao Feliciano uma carta anonyma, que era um traslado augmentado do depoimento do pedreiro que vira o José Dias saltar da janella. E por fim ameaçava-o—que se casasse com a Martha, não a havia de gosar muito tempo. O Feliciano mostrou a carta ao irmão. Concordaram que era o pedreiro com a sua paixão, damnado de raiva. O brazileiro entrou a scismar que o scelerado era capaz de levar a vingança ao cabo—bater-lhe, matal-o. Os tiros desfechados á sua honra de marido de Martha resvalavam-lhe na coiraça da consciencia: «eu sei o que faço» dizia elle; mas a idéa de um tiro ao seu physico, inquietava-o devéras. «É preciso dar cabo d'este ladrão» dizia o brazileiro ao mano, n'um grande mysterio.

Lembrou-lhe o seu compadre, o Francisco Melro da Pena, um taverneiro de olhos estrabicos, d'alcunha o Alma-negra, um que o tinha avisado, quando a malta da patuleia tencionava agarral-o. O Melro rompera relações com o Zeferino, por causa da partilha de uns dinheiros apanhados na mala do correio de Guimarães, e dizia hyperbolicamente ao seu compadre que o Zeferino, quando andára na patuleia, era ladrão como rato.

O Melro era má bisca. Estivera tres annos na Relação como cumplice em um homicidio que se fizera na sua tasca. Vivia apertadamente com mulher e quatro filhos, e não cessava de pedir emprestimos ao compadre desde que o avisara. Quando o Simeão foi espancado, o Melro logo lhe disse em segredo que quem lhe batêra fôra o Zeferino, com as costas guardadas por dois pimpões do Monte Cordova. E accrescentou:—Elle bem sabe a quem as faz. Havia de ser commigo eu com pessoa que me doesse...

O Feliciano deu um passeio para os lados da Pena, onde morava o compadre. Disse-lhe que ia vêr a quinta da Commenda que se vendia; que lh'a fosse mostrar. Conversaram; e, no regresso, pararam em frente de uma casa com tres janellas e um quintal espaçoso.

—É aqui, disse o Melro.

O brazileiro poz o monoculo e leu um bilhete pregado na porta com quatro tachas: Domingo, ás 10 da manhã, depois da missa, vai á praça a quem mais dér sobre a avaliação judicial de 500$000 réis esta casa, dizima a Deus, para partilhas. O Feliciano leu, retirou-se apressado para que o não vissem, murmurando quaesquer palavras a que o compadre Melro respondeu:

—Vossoria então está a lêr! Tão certo tivesse eu o céo como tenho a casa...

Feliciano seguiu para Prazins e o Melro disse aos freguezes da taverna que o seu compadre ia comprar a quinta da Commenda, e que estivera a lêr o escripto da casa do Cambado que se vendia, e dissera que talvez a comprasse para a dar a um afilhado ...

—Ao teu pequeno?!—perguntavam.

—Pois a quem ha-de ser! Aquillo é que é um homem ás direitas!

—Elle não sabe o que tem de seu. Tanto lhe monta dar-te a casa como a mim pagar-te um quarteirão d'aguardente—encareceu um pedreiro.—Anda agora a trabalhar no palacio da Retorta. Que riqueza! Parece um mosteiro. Pelos modos vai para lá viver logo que case com a Martha. Lá o mestre Zeferino rebenta que o leva os diabos! Isso diz que dá cada arranco...

—O Zeferino, a fallar a verdade, tem razão—disse o Melro.—O Simeão tinha-lh'a promettido. Gente sem palavra que a leve o diabo! Eu, se fosse commigo... Mas, emfim, é irmão do meu compadre ... não devo dizer nada. Que se governem.

O Melro, ás 8 da noite, quando os freguezes desalojaram, fechou a taverna; e, espreitando se os pequenos dormiam, disse á mulher:—A casa do Cambado é nossa, mas é preciso vindimar o Zeferino...

—Credo!—exclamou a mulher com as mãos na cabeça.—Nossa Senhora nos acuda!

—Leva rumor!—e punha o dedo no nariz.

—Ó Joaquim, ó marido da minha alma, alembra-te dos tres annos que penaste na cadeia! Olha para aquelles quatro filhos!...

—Já te disse que me não cantes—e relançava-lhe o seu formidavel olhar vêsgo incendido com os lampejos da candeia em que afogueava o cachimbo de páo. Depois, foi tirar d'entre a cama de bancos e a parede uma velha clavina. Sentou-se á lareira e disse á mulher que tivesse mão na candeia. Enroscou o sacatrapo na ponta da vareta de ferro e descarregou a arma, tirando primeiro a bucha de musgo, e depois, voltando o cano, vazou o chumbo na palma da mão.

—Ó Joaquim, vê lá o que vaes fazer!—insistia a mulher, limpando os olhos com a estopa da camisa. E elle, assobiando o hymno da Maria da Fonte, despejava a polvora da escorva, desaparafusava a culatra e tirava as duas braçadeiras. A mulher soluçava, e elle cantando n'uma surdina rouca:

Leva ávante, portuguezes,
Leva ávante, e não temer...

—Pelas chagas de Nosso Senhor, lembra-te dos nossos pequenos.

E o Melro n'uma distracção lyrica:

Pela santa liberdade,
Triumphar ou padecer...

Depois, bufava para dentro do cano e punha o dedo indicador no ouvido da culatra para sentir a pressão do sopro, que fazia um fremito aspero impedido pelas escorias nitrosas. Pediu á mulher umas febras d'algodão em rama, enroscou-as n'uma agulha de albarda e escarafunchou o ouvido do cano.—Está suja—disse elle—dá cá um todo—nada de aguardente.

—Joaquim, vamo-n'os deitar, pelas almas. Não te desgraces!

—Traz aguardente e cala-te, já t'o disse, mulher, com dez diabos!—E poz-se a assobiar a Luizinha. Enroscou algodão embebido em aguardente no sacatrapo e esfregou repetidas vezes o interior do cano até sahirem brancas e seccas as ultimas farripas da zaracotea. Soprou novamente e o ar sahia sem estorvo pelo ouvido com um sibillo egual. Parecia satisfeito, e cantarolava, mezza voce:

Agora, agora, agora,
Luizinha, agora.

Armou a clavina, aparafusou as braçadeiras, a culatra e a fecharia, introduzindo a agulha. Aperrou e desfechou o cão repetidas vezes, acompanhando o movimento com o dedo pollegar, para certificar-se de que o desarmador, a caxêta e o fradête trabalhavam harmonicamente. Levantou o fusil de aço que fez um som rijo na mola e friccionou-o com polvora fina; e, com o bordo de um navalhão de cabo de chifre, lascou a aresta da pederneira que faiscava.

—Valha-me a Virgem! valha-me a Virgem!—soluçava a mulher.

E elle, zangado com as lastimas da mulher, com expansão raivosa, n'um sfogato:

E viva a nossa rainha,
Luizinha,
Que é uma linda capitôa...

—Vai á loja atraz da ceira dos figos e traz o masso dos cartuchos e uma cabacinha de polvora de escorvar que está ao canto.

A mulher dava-lhe as coisas, a tremer, e fazia invocações ao Bom Jesus de Braga, e ás almas santas bemditas. Elle encarou-a de esconso, e regougou:—Máo! ... máo!...

Carregou a clavina com a polvora de um cartucho; bateu com a cronha no sobrado, e deu algumas palmadas na recamara para fazer descer a polvora ao ouvido. Fez duas buxas do papel do cartucho, bateu-as com a vareta ligeiramente, uma sobre a polvora e a outra sobre a bala.

Agora, agora, agora,
Luizinha, agora.

Depois, pegou da clavina pela guarda-matta, e poz-se a fazer pontarias vagamente, passeando um olho, com o outro fechado, desde a mira ao ponto.

A mulher fôra sentar-se no sobrado, á beira da enxerga de tres filhos a chorar; o mais novo esperneava, dava vagidos na cama a procural-a. O Alma negra fôra dentro beber uns tragos de aguardente, voltou enroupado n'um capote de militar, despojo das batalhas da Maria da Fonte.—Ora agora—disse elle—ouvistes? porta da cozinha e a cancella da horta aberta, porque eu venho pelo lado do pinhal.

—Vai com Nossa Senhora—disse a mulher—e poz-se de joelhos a uma estampa do Bom Jesus a rezar muitos Padre-nossos, a fio.

Era uma noite de fevereiro, de nevoa cerrada, um céo de carvão pulverisado em brumas molhadas, sem clareira onde lucilasse uma estrella. Não se agitava um galho de arvore nua movido pelo ar nem ondulava uma erva. Era a serenidade negra e immota das catacumbas. Ás vezes rugia nas folhas ensopadas de nebrina no chão esponjoso das carvalheiras a fuga rapida das hardas, dos toirões e das raposas que se avisinhavam do povoado a fariscarem as capoeiras. O Joaquim Melro estremecia e punha o dedo no gatilho. O restolhar d'um gato bravo, o pio da coruja no campanario distante punham arrepios de medo na espinha d'aquelle homem que ia matar outro—chamal-o á janella e varal-o á traição com uma bala.—Era o traçado.

—Que raio de escuro!—dizia, esbarrando nos espinheiros perfurantes.

Em noites assim, o universo seria o immenso vacuo precedente ao Fiat genesiaco, se os viandantes não esbarrassem com as arvores e não escorregassem nos silvêdos das ribanceiras. O noctivago sente na sua individualidade, nos seus callos e no seu nariz, a doce impressão pantheista das arvores e dos calháos. Que este globo está muito bem feito. Os transgressores do descanço que Deus estatuiu nas horas tenebrosas, os scelerados das aldeias que larapeam o presunto do visinho, que fisgam a moça incauta ou empunham o trabuco homicida, se não temem encontrar as patrulhas civicas das grandes municipalidades, encontram os troncos hostilmente nodosos das arvores que são as patrulhas de Deus. Alguns, porém, protegidos pelo Mephisto a quem venderam a alma pelo preço da consciencia eleitoral, ou mais barata, chegam incolumes ao delicto, passando illesos como o lobo e o javali por entre os troncos das carvalheiras esmoitadas, hirtas, com os galhos a esbracejarem retorcidos n'uma agonia patibular.

O Melro, como o porco montez e o lobo cerval, embrenhára-se por pinhaes e carvalheiras; ás vezes, parava a orientar-se pelo cucuritar dos gallos tresnoitados e latir dos cães. Ao fundo das bouças ladeirentas, rugia o rio Pelle nos açudes das azenhas e nas guardas dos pontilhões. Lamellas era da parte d'além. Mas o rio, de monte a monte, rugia intransitavel nas pequenas pontes. Foi á de Landim, uma aldeia engravatada, onde ainda se avistavam clarões de luz nas vidraças das familias distinctas que jogavam a bisca em ricos saráos do faubourg Saint-Honoré, com uns deboches sardanapalescos de sueca a feijões.

Havia também um rumorejo de vozes que altercavam na taverna do Chasco. Tinha dinheiro lá dentro. Jogava-se o monte.

O Melro cuidou ouvir proferir o nome do Zeferino. Abeirou-se, pé ante pé, do postigo da taverna, e convenceu-se de que estava ali o pedreiro. Era elle quem reclamava um quartinho que puzéra de porta, e o banqueiro recolhêra com as paradas que estavam dentro, quando tirou a contraria de cara.

—Que não admittia ladroeiras!

E o banqueiro desfeiteado observava-lhe que nada de chalaças a respeito de ladroeiras; que todos os que estavam d'aquella porta para dentro eram cavalheiros. O Zeferino replicava que não queria saber de cavalheiros; que queria o seu quartinho ou que se acabava ali o mundo. Que quem queria roubar que fosse para a Terra Negra.

A allusão era muito certeira e inconveniente. Estavam na roda dos cavalheiros alguns veteranos da antiga quadrilha do Faisca, na Terra Negra, muito desfalcada pelo degredo e pela forca. Travou-se a lucta a sôco e páo; havia lampejos de navalhas que davam estalos nas mollas; o Tagarro de Monte Cordova tinha feito afocinhar o banqueiro sobre os dois galhos do baralho com um murro herculeo, phenomenal. O taberneiro abriu a porta para escoar o turbilhão. Elles sahiram de roldão; e, quando entestaram com a treva exterior, quedaram-se cegos como n'um antro de caverna. Um, porém, dos que estavam, não sahiu; encostára-se ao mostrador com as mãos no baixo ventre, gritando que o mataram; e, vergando sobre os joelhos, n'um escabujar angustioso, cahiu de bruços, quando o taberneiro e o Tagarro o seguravam pelos sovacos. Era o Zeferino.

Quando, á meia noute, o Alma-negra entrava em casa pela porta do quintal, encontrou a mulher ainda de joelhos diante da estampa do Bom Jesus do Monte. Ao lado d'ella estavam duas filhas a rezar tambem, a tiritar, embrulhadas em uma manta esburacada, aquecendo as mãos com o bafo.

O Melro mandou deitar as filhas, e foi á loja contar á mulher, livida e tremula, como o Zeferino morreu sem elle pôr para isso prego nem estopa. Ella poz as mãos com transporte e disse que fôra milagre do Bom Jesus; que estivera tres horas de joelhos diante da sua divina imagem. O marido objectava contra o milagre—que o compadre não lhe dava a casa, visto que não fôra elle quem vindimára o Zeferino; e a mulher—que levasse o demo a casa; que elles tinham vivido até então na choupana alugada e que o Bom Jesus os havia de ajudar.

Ao outro dia, o Joaquim Melro convenceu-se do milagre, quando o compadre, depois de lhe ouvir contar a morte do pedreiro, lhe disse:

—Emfim, você ganha a casa, compadre, porque mátava Zéférino, se os outros não matam elle, hein?

Share on Twitter Share on Facebook