XVII

Celebrou-se o casamento na capella da quinta da Retorta. Foi o vigario de Caldellas o ministro do sacramento, D. Thereza madrinha, e o padrinho veio do Porto, o barão do Rabaçal, um gordo, casado com as brancas carnes velludosas da filha do Eusebio Macario. O padrinho, muito faceiro, dizia ao Feliciano:—Mi pérdoe, amigo Prázins, você si casa com minina mágrita, muito sêcca di encontros. A mi mi dá na tineta para gostar das redondinhas, hein? É a minha philosophia. A mulher si quer roliça, de manêras que a gente ache nos braços ella.

O devasso fazia córar o casto noivo. A Martha, á sobremesa, não lhe percebia umas graçolas obrigatorias em bodas canalhas, que faziam nauseas á aristocratica D. Thereza, muito pontilhosa em não admittir equivocos. O vigario achava no barão a salôbra brutalidade que faz nos intelligentes a cocega do riso que o Cervantes, o Rabelais, o Swift e o portuguez snr. Luiz d'Araujo nem sempre conseguem quando querem.

A Martha, n'uma tristeza inalteravel, desde que sahiu da egreja. Ao fim da tarde, fechou-se com D. Thereza no seu quarto, abriu o bahu, e tirou do fundo o pacotinho das cartas do José Dias, e disse-lhe:—A senhora ha-de guardal-as; e, quando eu morrer, queime-as, sim?

—E se eu morrer adiante de ti?—perguntou D. Thereza risonha.

—Diga então ao snr. padre Osorio que as queime: porque olhe—e abraçou-se n'ella a chorar, a soluçar—eu ... eu morro, ou endoudeço. Cheguei a esta desgraça; estou casada para fazer a vontade a meu pai, cuidando que elle morria; não sei como hei-de sahir d'isto senão acabando de vez ou perdendo o juizo como a minha mãe ... bem sabe como ella acabou.

D. Thereza Osorio banalmente a consolava com o vulgarismo das coisas que se dizem ao commum das meninas casadas com maridos repugnantes e ricos.—Que se havia de affazer, que tudo esquecia com o tempo. Ella, um pouco aristocrata por bastardia, não acreditava em melindres de sentimentalidade na filha do lavrador parrana e da Genoveva da vida airada. O apaixonar-se pelo Dias, um bonito rapaz d'aldeia, parecia-lhe trivial; tentar suicidar-se quando elle morreu, para uma senhora lida em novellas romanticas, era um caso ordinario e pouco significativo; porém, condescender com a vontade do pai, casando com o tio, pareceu-lhe um acto de condição plebea, a natureza reles da filha do Simeão que afinal dominava estupidamente as indecisas manifestações de uma indole artificialmente delicada.

O padre comprehendia mais humanamente Martha, dizendo á irmã:—Ella quando consentiu em casar com o tio já estava doente da molestia nervosa que a ha-de levar ao suicidio. D. Thereza, com o seu criterio um pouco adulterado pelas excentricas heroinas de Sue e Dumas, não podia entroncar aquella rapariga d'uma aldeia minhota na genealogia d'essas parisienses naufragadas em romanescas tempestades. E de mais, se Martha, como o irmão dizia, estava sob a influencia da loucura, a sua desgraça parecia-lhe uma doença e não uma tragedia, segundo as exigencias de uma senhora que tinha lido o mais selecto da bibliotheca romantica franceza desde 1835 a 1845—tudo o que ha de mais falso e tolo na litteratura da Europa. D. Thereza queria mais drama na desgraça de Martha; porque, se alguma poesia elegiaca lhe concedêra pela tentativa de matar-se, toda se resolvia em chilra prosa pelo facto de a imaginar no thalamo conjugal com o arganaz do tio.

Eram horas de deitar. O padre tinha ido para Caldellas a fim de dizer a missa de madrugada, e deixára a irmã a pedido de Martha; o barão do Rabaçal escancarava a bocca n'uns bocejos ruidosos e levantava uma perna espreguiçando-se; o noivo olhava para o mostrador do relogio collado aos olhos; e Martha, muito aconchegada de D. Thereza. queixava-se de caimbras; que lhe zuniam coisas nos ouvidos, que via faiscas no ar, e tinha muito calor na cabeça. D. Thereza dizia-lhe que se fosse deitar, que precisava de recolher-se. Martha pedia-lhe que a deixasse ir dormir ao pé d'ella, pedia-lh'o pela alma de sua mãe, pela vida de seu irmão.

A hospeda comprehendia, compadecia-se, receava o ataque epileptico, precedido sempre das faiscas e caimbras de que se queixava a noiva; mas não sabia como dirigir-se ao marido de Martha a pedir-lhe que se fosse deitar sósinho. Nos seus numerosos romances não achára um episodio d'esta especie. Interveio na critica conjunctura o Simeão, dizendo á filha:

—São horas de ir á deita. O teu marido está a cahir com somno.

Martha fixou o pai com os seus olhos esmeraldinos rutilantes de colera, n'um arremesso de cabeça erguida, e com os labios a crisparem. Era a nevrose epileptica. Seguiram-se as convulsões, o espumar da bocca, um paroxismo longo de vinte minutos. D. Thereza pediu que a ajudassem a leval-a para a sua cama, e disse com fidalga impertinencia ao Simeão que a deixassem com ella, e não lhe fallassem no marido. Simeão coçava-se com grande desgosto. O brasileiro contava ao barão que a sua sobrinha era atreita áquelles ataques; mas que o cirurgião lhe dissera que lhe haviam de passar em casando. O do Rabaçal notou que o remedio então bom era, e seria bom começal-o quanto antes. Disse mais chalaças a proposito e foi-se deitar. Feliciano ainda foi saber como estava a esposa; mas já não havia luz no quarto de D. Thereza. Reoolheu-se á cama, e continuou mais uma noite no seu leito solitario, virginalmente.

D. Thereza sentia-se mal, n'um embaraço quasi ridiculo, n'aquelle meio. Martha não a largava, parecia uma creança espavorida, agarrada ao vestido da mãe, assim que ouvia os passos do tio. Elle, muito carinhoso, com o monoculo no olho direito, a offerecer-lhe castanhas d'ovos, toicinho do céo, a pegar-lhe da mão e a fazer-lhe festas no rosto muito córado de pudor. D. Thereza discretamente deixou-os sósinhos. A Martha ficou a olhar para a porta por onde a amiga se evadira, e fazia uns gestos de quem meditava raspar-se; mas o marido tinha-a segura pelas mãos mimosas, beijando-lh'as ambas com uma sensualidade delicada, um pouco babada, mas muito commedida, estendendo os beijos quentes e humidos até aos pulsos lacteos e redondinhos. Martha, n'uma impassibilidade, não se recusava ás caricias, e pareceu mesmo inclinar um pouco o rosto quando o esposo com um bom sorriso do amor dos quinze annos lhe pediu um beijinho, que foi mais demorado do que era de esperar da sua candura e da inexperiencia de taes delicias. Estavam ambos rosados; mas o rubor de Martha era carminado de mais e nos seus olhos havia uma rutilação vaga pela extensão da grande sala. Ella via a sombra de José Dias: era o José Dias em pessoa, dizia ella depois a D. Thereza, quando recuperou os sentidos, e não sabia como a transportaram para a cama da sua amiga. Apenas se lembrava de que o tio, depois que a beijára no rosto, a levára pelo braço e entrára com ella no seu quarto, apertando-a muito ao peito, levantando-a nos braços com muita força, não a deixando fugir e suffocando-lhe os suspiros com os beijos. Não se lembrava de mais nada. E D. Thereza, quanto cabia na sua alçada, contava-lhe o resto imperfeitamente; isto é que o marido a fôra chamar ao laranjal, um pouco afflicto, dizendo que a sua esposa estava na cama sem sentidos; e pedia vinagre para lhe chegar ao nariz.

Padre Osorio veio jantar e buscar a irmã. Observou no aspecto do brazileiro uma irradiação de felicidade, o jubilo de um homem que se sentia impavidadamente completo, na integridade da sua missão phyloginia. Foi então que o padre assentou as suas theorias um pouco fluctuantes ácerca das vantagens da castidade em beneficio das impurezas alheias.

O Feliciano, quando o cirurgião chegou á tarde, contou-lhe com pouco recato de pudicicia conjugal as circumstancias, particularidades occasionadas no «fanico da sua esposa», dizia elle. O facultativo, um velho patausco, disse que não se admirava, porque a snr.ª D. Martha era muito nervosa, imperfeita ainda na sua organisação, e que as impressões desconhecidas e um pouco violentas nas constituições fracas produziam extraordinarias perturbações; mas que não se assustasse, que não era nada; que as segundas naturezas se faziam com o habito.—Banhos de mar, aconselhava, bife na grelha e vinho do Porto, quanto mais chôco melhor. O que se quer cá fóra é um rapaz; não ha como um filho para fortalecer a compleição d'uma mulher debil; um filho, quando sae do ventre da mãe, traz comsigo para fóra os máos nervos, e acabam os cheliques. Ande-me com um rapagão p'rá frente!

Na ausencia de D. Thereza, a melancolia de Martha cerrava-se de dia para dia. O governo da casa era-lhe de todo indifferente, como se fosse hospeda. O marido não a compellia a interessar-se n'esses arranjos de que, dizia o Simeão, ella nunca quizera saber em Prazins. O barão do Rabaçal mandára-lhe do Porto cozinheira e governante. Martha sahia raras vezes de uma saleta onde tinha um oratorio que trouxera de casa. Confessava-se mensalmente a frei Roque, o irmão da sua mestra, e professor do de Villalva, e demorava-se no confissionario com perguntas desvairadas a respeito da alma de José Dias, por que dizia ella ao padre-mestre que o via muitas vezes em corpo e alma, e até o ouvia fallar e lhe sentia as mãos no seu corpo. O frade, sem revelar o sigilo da confissão, dizia á irmã que a Martha dava em douda como a mãe.

O Feliciano ficou espavorido quando a mulher, n'um dos paroxismos epilepticos, se pôz a rir para elle com os olhos espasmodicos e a chamar-lhe José, seu Josésinho. Passada a nevrose, quando ela imergia num torpor physico e mental, o marido contou-lhe o caso de lhe chamar Josésinho. Ella parecia esforçar-se muito para recordar-se, e dizia que não se lembrava de nada. Vinha o cirurgião a miudo:—que era hysterismo, e consolava o marido com a esperança no tal rapagão, esperanças bem fundadas, segundo as confidencias do pai; mas, consultado pelo padre Osorio, o Pedrosa, um grande clinico, dizia que a brazileira não tinha simplesmente a gota coral; que havia ali epilepsia complicada com delirio, alienação mental intermittente, um estado de inconsciencia ou consciencia anormal, e que verdadeiramente se não podiam determinar bem quais eram os seus actos de lucidez intercorrente.

—Ella está gravida—observou o vigario de Caldellas.—Parece que este facto denota uma tal ou qual normalidade de consciencia, uma concepção racional dos deveres de esposa...

—Não denota nada—refutou o medico.—Faça de conta que é uma somnambula. E, como a sua demencia é funccional e não organica, não ha desorganisações physicas que a estorvem de ser mãe. O meu collega que lhe assistiu á ultima vertigem disse-me que, alguns minutos antes do ataque, ella, n'uma grande irritabilidade, lhe dissera que fugia para Villalva, que queria vêr o José Dias... O marido felizmente fôra n'essa occasião prover-se de vinagre á dispensa. Eu considero-a perdida, a menos que se lhe não dê uma prompta e completa diversão ao espirito, e nem assim se consegue senão temporariamente desherdar os desgraçados que tiveram mãe e avó como esta Martha. Eu assisti ao primeiro e ao ultimo periodo da Genoveva. Repetiram-se as vertigens, veio a decadencia gradual da razão, delirios, idéas confusas, concepção difficil, nevroses vesanicas, e por fim, suicidou-se já n'um estado de demencia epileptica, que os especialistas consideram a mais incuravel. Este me parece o itinerario da Martha, e o casal-a com o tio deixou de ser um acto immoral para ser um estupido arranjo de fortuna por lado do pai e de luxuria por parte do marido. Esta pequena tinha de vir a isto, e ha-de ir á demencia, mesmo sem drama nem paixão. Tem o cerebro defeituoso assim como podia ter a espinha vertebral rachitica. Como se faz a perda da vista? Pela paralysia dos nervos opticos; pois a perda da vista normal da alma é tambem a paralysia d'uma porção de massa encephalica. Bem sei que isto embaraça um pouco os senhores theologos-methaphysicos, mas lá se avenham: a verdade é esta.

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