OS MESMOS E O SENHOR JOÃO PEREIRA
O SENHOR PEREIRA
(entrando, sem pedir licença)
Deus aqui, e o diabo em casa dos frades...
D. ANGELICA
(á parte)
Olha o inimigo!... quem o chamou cá?!
O SENHOR ANTONIO
Ora viva o meu amigo e visinho! Esteja bom, passasse muito bem, é o que eu mais estimo. Puxe cadeira e sente-se, sem ceremonia.
O SENHOR PEREIRA
A bôda e a baptisado, diz lá o outro, não vás sem ser convidado. Eu não estive pelas contas. Somos visinhos ha cincoenta e dous annos, e rapazes da mesma creação. Cá entre nós não ha ceremonias. Vim dar os parabens ao meu amigo e senhor Antonio, e vêr-lhe a sua noiva, que emquanto a mim é esta menina...
D. MARIA ELISA
Uma sua criada.
O SENHOR PEREIRA
Criada dos anjos. Pois, minha visinha, a minha casa é logo adiante d'esta; mettem-se duas portas de permeio; se precisar d'alguma cousa, de mim ou da minha companheira, não tem mais que mandar.
D. MARIA ELISA
Muito agradecida ao seu favor... Queira sentar-se.
O SENHOR PEREIRA
Estou bem assim: farto de estar sentado estou eu atraz do mostrador. Com que sim, senhor Antonio, está vmc.e cá no rol dos homens de bem...
O SENHOR ANTONIO
(com intenção)
É verdade... cá estou no rol dos homens de bem...
O SENHOR PEREIRA
Fez vmc.e o que devia. Não ha vida melhor que a de casado. Eu cá de mim não tenho razão de queixa. Estou casado ha dez annos, tres mezes, e vinte e quatro dias, e, graças a Deus, não tive ainda um desgosto!
O SENHOR FERNANDES
(á parte)
Este é dos taes que o sabem no fim.
O SENHOR PEREIRA
A minha sancta companheira é propriamente uma mulher de casa, e minha amiga, que é mesmo uma cousa! Lá por eu ter mais vinte annos que ella, isso não tira, nem põe. Não é como algumas cá da nossa rua... nós bem sabemos quem ellas são...
O SENHOR FERNANDES
(á parte)
Eu só conheço a d'elle...
O SENHOR PEREIRA
Lá porque os maridos não andam espartilhados a dar, com licença... nas canellas com as abas da casaca, gostam mais de peralvilhos!...
Arreda com ellas! Eu, se tivesse assim uma, eu não seja João, se lhe não arrebentasse a propria barriga!... A minha Marcellina é uma rapariga, que, se me vir afflicto, vem prantar-se ao pé de mim, e não sahe d'alli sem que eu lhe diga que estou bom. Quando me cahiu o cabello foi ella que me pôz este chinó na cabeça, e por ahi os tratantes metteram-me sonetos ao chinó por debaixo da porta! Valha-os o diabo!...
D. ANGELICA
Credo! Anjo bento! vmc.e falla tantas vezes no inimigo! Não diga essa palavra que faz arripios no costado!
O SENHOR PEREIRA
Ahi está a nossa beata com as suas escrupulisações. A gente não sabe como ha de fallar diante de vmc.e A minha Marcellina, ás duas por tres, é diabo para aqui, diabo para acolá; e, se eu lhe digo que não é bom chamar quem está manso e quedo, ella diz que o diabo se chama diabo!...
D. ANGELICA
(persignando-se)
Sancto breve da marca! Cale-se lá com essas blasphemias! Sua mulher, se tivesse juizo, não dizia isso!... Se vmc.e lhe désse com o covado pela rabada, ella se calaria...
D. MARIA ELISA
(á parte)
São indecentes!... Se algum futuro author de novellas quizesse descrever fielmente esta scena, teria de ser indecente como elles! Tomára-me eu sósinha!
O SENHOR ANTONIO
Em que pensas tu, Mariquinhas?
D. MARIA ELISA
Ah!... eu?... não pensava em nada...
O SENHOR ANTONIO
A modo que estás triste! Aposto que estás a pensar lá n'essas cousas dos astros?
D. MARIA ELISA
Dos astros? não... pensava... na minha sorte... (com ironia) que é realmente invejavel. Estou satisfeitissima da deleitosa conversação d'estes senhores, que são sobremaneira recreativos.
OS SENHORES BAPTISTA E RODRIGUES
Pela parte que me toca... muito obrigado...
O SENHOR FERNANDES
(á parte)
Pobre mulher!... e pobre homem!...
O SENHOR ANTONIO
Então, Fernandes, estás ahi tão calado!...
O SENHOR FERNANDES
Que quer que eu lhe diga?
O SENHOR ANTONIO
Quando te casas?
O SENHOR FERNANDES
Quando tiver mulher. Ainda não é tarde.
O SENHOR ANTONIO
Isso não; mas o casamento faz arranjo... Ella tem cincoenta e quatro, mas olha que é um anno para cada conto; e tu tens os teus trinta e seis, mas cá, segundo os meus calculos, por morte de teu pae não tens nem trinta e seis moedas, porque elle é um gastador, e deixa-te viver lá mettido no quarto a lêr o Carlos Magno, sem te importares do negocio... Teu pae parece-me que não virá... vai-se demorando.
O SENHOR FERNANDES
Já lhe disse que o meu pae pede desculpa de não vir, porque se sente incommodado da gôta... Eu vim da sua parte dar ao senhor Antonio os parabens, e comprimentar a sua esposa a quem desejamos, tanto eu como elle, largos annos de felicidade.
D. MARIA ELISA
Muito agradecida! (á parte) Este falla melhor que os outros...
O SENHOR ANTONIO
Tu sabes fazer a preceito esses discursos! Sempre é bom a gente lêr o Carlos Magno... Eu era pequeno quando o li, e ainda me lembra esta passagem da formosa Floripes a Roldão: «Senhor par de França! Os vossos olhos são dous sóes que derramam raios que matam como os lampejos da vossa durindana. Senhor cavalheiro, eu vos digo que o vosso affecto é mais doce que o mel, e mais abrazador que as ardentes fragas.»
O SENHOR FERNANDES
(sorrindo)
Essas fragas deviam de ser boas para assar bacalhau.
D. MARIA ELISA
(sorrindo)
De certo...
O SENHOR ANTONIO
E outras muitas cousas que me não lembram agora.
O SENHOR FERNANDES
(com ar sarcastico)
É pena que vmc.e se esqueça dos bocadinhos de ouro do Carlos Magno!
O SENHOR ANTONIO
Ora diz lá tu algumas passagens...
O SENHOR FERNANDES
É impossivel, porque nunca li o Carlos Magno; mas, á falta d'essa preciosidade litteraria, posso dizer outra qualquer passagem bonita.
O SENHOR ANTONIO
A apostar que tu não sabes orthographia?
O SENHOR FERNANDES
(sorrindo)
Nada, não sei.
O SENHOR ANTONIO
Pois então diz alli a minha mulher que t'a ensine...
O SENHOR FERNANDES
Far-me-ia muito particular favor.
D. MARIA ELISA
Eu?!
O SENHOR ANTONIO
Sim, tu, Mariquinhas. Ensina-lhe aquellas cousas que fazem com que a gente não caia quando a terra anda de redor.
O SENHOR FERNANDES
E é isso que se chama orthographia?
O SENHOR ANTONIO
(meio irritado)
É, sim, senhor. Olha lá se queres saber mais d'essas cousas que minha mulher!
O SENHOR FERNANDES
Deus me livre d'isso... (sorrindo a Maria Elisa que abaixa, envergonhada, o rosto) Eu nem sequer sei escrever com astronomia, como hei de saber essas leis com que se regem os astros!...
O SENHOR ANTONIO
Chama-se lei d'attrição... Não te rias... é o que te digo, e, senão, ouve: ó Maricas, como se chama isto que nos faz estar de pé, assim direitos? (erguendo-se.)
D. MARIA ELISA
Salvo erro, creio que são as pernas.
O SENHOR ANTONIO
(sériamente)
Isso é verdade; mas, se a terra andasse á roda, a gente cahia para o lado...
O SENHOR FERNANDES
Não é forçoso que caia para o lado; póde cahir para traz, ou para diante. (Maria Elisa ri-se.)
O SENHOR ANTONIO
Tambem não vou contra isso; mas minha mulher sabe d'uma cousa que faz com que a gente não caia, porque todos os corpos sahem do centro da terra... Olha ella a rir-se! Então enganavas-me, cachorra?... Ah ruimzinha!... (puxando-lhe uma orelha.)
O SENHOR FERNANDES
Sua senhora tem razão... Os corpos, não digo que saiam do centro da terra, mas tendem para lá; e esta tendencia faz que não possam, embora a terra se mova, cahir no espaço.
O SENHOR ANTONIO
Tu não sabes d'essas cousas...
O SENHOR PEREIRA, do chinó
Os diabos me levem se eu sei o que vossês estão a dizer!
D. ANGELICA
S. Bento! Elle ahi torna com o berzabum do inimigo ás voltas! Não se póde estar ao pé de vmc.e!... Credo!
O SENHOR PEREIRA
Ó mulher! deixe fallar a gente!... Eu queria saber como é lá isso de andar o mundo ao redor como se fosse uma bola! Esta gente moderna sempre diz cousas! Eu nunca tal ouvi aos velhos! Já a minha Marcellina se mette tambem a fallar d'essas cousas lá dos livros com o doutor Miranda, e, pelos modos, a rapariga não é tôla de todo. Agora anda ella a congeminar nos planetas, e levanta-se algumas vezes de noite, e vem á janella...
O SENHOR FERNANDES
Observar os astros?
O SNR. PEREIRA
Acho que sim! A mulher lá tem aquella pancada na mola, e eu deixo-a estudar a natureza, como ella diz...
O SENHOR FERNANDES
Isso é justo. Não me sabe dizer que planeta estuda sua mulher?
O SENHOR PEREIRA
Acho que é o sete-estrello.
O SENHOR FERNANDES
Ah! sim? E que diz ella a respeito d'esse «planeta?»
O SENHOR PEREIRA
Eu sei cá o que ella diz? Está alli á janella duas horas a olhar lá para cima, e quando se deita está fria de neve. Eu já lhe disse: ó mulher! deixa lá essas cousas celestes aos homens que sabem da póda! Tanto faz como nada; ella diz-me não sei que da abobada, e das mariadas de estrellas... Apostar que o senhor Fernandes não sabe que ha uma estrella chamada vespa, e outra saturnea?
O SENHOR FERNANDES
Nada, não sabia, mas ainda venho a tempo de saber. Sua senhora é que lhe ensina essas cousas?
O SENHOR PEREIRA
E muitas outras, que me esquecem, porque não tenho as memorias affeitas a esses nomes inglezes e gregos. Se vmc.e quizer vêr o que é uma cabecinha ha de fallar com minha mulher...
O SENHOR FERNANDES
Estou convencido... não é preciso mais nada... Vejo que sua senhora estuda perfeitamente a natureza, e compensa bem a pena deitar-se fria de neve, quando a intelligencia vai quente do fogo da sciencia. Não concorda, senhora D. Elisa?
D. MARIA ELISA
Eu?!... não sei se...
O SENHOR FERNANDES
Pois não é da minha opinião?
D. ANGELICA
(rabugenta)
Não é, não, senhor! Qual natureza, nem meia natureza! Uma mulher não se deve metter lá n'essas trampolinices! Do que ella deve tratar é de governar a sua casa, de tratar do seu marido, e dos seus filhos, e de encommendar a sua alminha a Deus. Nossa Senhora era a propria mãe de Deus, e não sabia lá das sciencias, nem dos planetas! Uma mulher honrada não vai de noite vêr á janella o sete-estrello, nem a vespa, ou o bisouro... mau bisouro é o demonio... Deus me perdoe...
O SENHOR PEREIRA
(pundonoroso)
Com que vmc.e, lá porque não tem cabeça para estas cousas, quer que as outras sejam tapadas como vmc.e? Não é má esta! Cada qual trata de si, e Deus de todos. Minha mulher gosta de estudar a natureza, e vmc.e gosta de resar novenas. Quem vai contra isso?
D. ANGELICA
E ella porque não resa novenas? Acha que lhe não são precisas? Pois olhe que... eu já vi quem precisasse de resar menos... Melhor lhe fôra governar a sua casa, e remendar a sua roupa, e não deixar ir tudo como vai de portas a dentro...
O SENHOR PEREIRA
Sabe que mais? trate cá do que lhe pertence, e deixe as outras! Vmc.e é muito murmuradeira...
D. ANGELICA
Eu! murmuradeira!... Ó meu Menino Jesus! inda mais ouvirei! Ó Antonio, já viste uma cousa assim?
O SENHOR ANTONIO
Está bom... calem-se lá com essas questões. Cada qual vive como o seu genio lhe pede; mas olha cá, visinho, eu sempre fui teu amigo, e não tenho papas na lingua, quando é necessario. Cá a minha opinião é que não deves deixar vir tua mulher para a janella de noite...
O SENHOR FERNANDES
(com ironia)
Porque se póde constipar...
O SENHOR ANTONIO
Não é isso... é que das más linguas ninguem se livra... Se quer estudar a natureza, ou lá o sete-estrello, ou o que é como se chama, que o faça de dia.
O SENHOR PEREIRA
Tu és tôlo, Antonio! Pois os planetas apparecem lá de dia?! Já vejo que não te chama Deus para este caminho!...
O SENHOR FERNANDES
O senhor João Pereira tem razão. De dia não se descobrem planetas. O padre Theodoro d'Almeida, que escreveu muito sobre os astros, diz-me meu pae que o vira muitas noites na trapeira dos Congregados a contemplar a natureza.
O SENHOR PEREIRA
Vmc.e é que sabe responder, senhor Fernandes... E, de mais d'isso, eu estou muito contente com minha mulher. Antes quero que ella se entretenha com os planetas lá de cima, do que com certos planetas que andam por ahi a olhar para as janellas, e que não são das melhores cousas para viver em paz cada qual com a sua mulher. Eu não tenho até hoje razão de queixa; oxalá que tua mulher te dê a boa vida que a minha me tem dado...
O SENHOR ANTONIO
(enfurecido)
Isso agora!... salvo tal logar!...
D. ANGELICA
Longe vá o agouro, e mais não diga a bôca que tal diz...
O SENHOR ANTONIO
(para os circumstantes)
Que lhes parece esta?! (para elle) Meu amigo, sabes que mais?... Vai muito de cá a lá...
D. ANGELICA
Ó menina, Deus a livre de tal... Minha querida nossa Senhora dos Remedios, não permittaes que tal aconteça...
O SENHOR PEREIRA
(formalisado)
Que diabo dizem ahi? Se eu os percebo, sêbo! Parece que já jantaram!—Pois minha mulher... sim, pergunto eu... minha mulher... se faz favor de me dizer... com que então a minha Marcellina... digam para ahi o que sabem, linguas damnadas!... Eu queria saber o que vem a ser estas benzedellas da nossa sanctinha, e lá esses arrufos teus, Antonio!...
O SENHOR FERNANDES
Não se irrite, senhor Pereira, que não tem razão. Vmc.e entendeu mal os reparos da senhora D. Angelica e seu irmão. É porque o senhor Antonio não quer que sua senhora se constipe no estudo da natureza...
O SENHOR PEREIRA
Isso agora é outra cousa... Cada qual tem o seu genio; mas vir cá dizer-me que vai muito de cá a lá, isso tem que se lhe diga. Tanto é a minha Marcellina como a tua companheira. Somos todos do negocio, e deixemo-nos de fidalguias, porque todos nos conhecemos. E quem fôr mais rico, coma duas vezes, mas não desdenhe dos outros. O que eu queria dizer-te a respeito da conducta das mulheres é que sou teu amigo, e que oxalá a tua mulher seja como tem sido a minha.
O SENHOR ANTONIO
(desesperado; com as belfas tremulas)
Isso é que eu não quero!... já te disse que não quero e que não ha de ser!...
D. ANGELICA
E elle a dar-lhe! má mez para elle!... Valha-o uma figa! Não faça caso, cunhada...
D. MARIA ELISA
Eu sinceramente lhes digo que não sei o motivo d'esta disputa! Se me não engano, a esposa do senhor Pereira tem vocação para a astronomia. É louvavel esse gosto da sciencia. São raras as senhoras que se dedicam ao trabalhoso estudo da natureza...
O SENHOR PEREIRA
(interrompendo)
É como diz, e viva quem sabe fallar!
D. MARIA ELISA
O senhor Antonio José da Silva diz que...
O SENHOR ANTONIO
Ó Mariquinhas, é melhor dizeres meu marido.
D. MARIA ELISA
Meu marido diz que não quer que eu imite a senhora D. Marcellina.
O SENHOR ANTONIO
Não quero, é tal e qual o que eu disse. Minha mulher entendeu-me logo.
D. MARIA ELISA
Pois bem, eu não a imitarei; não me levantarei de noite a observar a atmosphera, porque realmente não quero ser martyr da sciencia. D'este modo, está acabada a questão. O senhor Pereira consentirá, porque assim lhe apraz, que sua senhora se levante para os seus estudos; e meu marido usará do direito, que eu lhe concedo, de me privar que eu estude os astros de noite.
O SENHOR PEREIRA
Fallou bem como quem é; parece mesmo a minha Marcellina que sabe dizer cousas que é mesmo da gente ficar encantado; mas eu tenho a dizer que cá quanto ao que eu quiz dizer, a minha birra é que se a senhora D. Mariquinhas fôr honrada como a minha Marcellina, não precisa ser mais.
O SENHOR ANTONIO
És teimoso como um jumento! Já te disse que a minha mulher tem outros brios, e que sabe as obrigações de mulher casada!
D. ANGELICA
E não ha de dar que fallar como algumas... emfim... cada qual metta a mão na sua consciencia...
O SENHOR PEREIRA
(solemne)
Que quer dizer isso? Então vmc.e acha que minha mulher... Ora tenha juizo, que já é bem tempo de perder o sestro da má lingua... D'estas beatas... Deus me livre d'ellas...
D. ANGELICA
(aguçando o queixo inferior)
Vmc.e está mesmo a inquietar a gente... Olhe que eu!... não me puxe pela lingua, que eu não sou boa...
O SENHOR PEREIRA
Isso sei eu... que vmc.e é levadinha de todos os diabos... diga-m'o a mim...
D. ANGELICA
(enfurecida)
Sabe que mais? ninguem o cá chamou... Deixe-nos em paz...
O SENHOR PEREIRA
Vmc.e é muito mal creada... O que merecia... sei eu...
O SENHOR ANTONIO
Está bom, Angelica! cala-te, João Pereira!... Se não estás bem, vai-te embora; eu não te chamei cá...
O SENHOR PEREIRA
O asno sou eu em vir cá fazer de homem que sabe a cortezia quando é preciso. Olha, meu amigo, emquanto tiveres cá em casa esta senhora Angelica, não has de ter amigo nenhum...
D. ANGELICA
Vá importar-se lá com a que tem em casa, que não tem pouco que guardar.
O SENHOR PEREIRA
A que eu lá tenho em casa tem mais honra nos calcanhares, que vmc.e na cara. O que vmc.e queria era que eu casasse comsigo, quando casei com ella. Como eu não estive para isso, vinga-se a fallar mal de minha mulher.
D. ANGELICA
Olha o bezuntão!... Eu quiz lá nunca casar com elle!...
O SENHOR ANTONIO
Accommodem-se!
D. ANGELICA
Sevandija! Más maleitas te colham!
O SENHOR ANTONIO
Angelica, tapa a bôca.
D. ANGELICA
Não quero!... Pois este desavergonhado não diz que eu quiz casar com elle! Mariola! Sempre é bem coitadinho!...
O SENHOR PEREIRA
D'uma pandorca assim não ha nada a estranhar. Eu tenho vergonha, sua truquilheira, quando não havia dizer aqui quem vmc.e é...
O SENHOR ANTONIO
Quem manda aqui sou eu! Já d'aqui para fóra, João Pereira!
(João Pereira, irritado como Ajax, leva as mãos indignadas á cabeça e maquinalmente desloca o chinó. Ouvem-se fungadellas de sorrisos, que exacerbam a cólera do calvo que se retira. Angelica tem o queixo n'uma attitude perfurante. O senhor Antonio transpira na abundancia do costume. Á lucta succede um profundo silencio, quebrado apenas pelos gemidos convulsos da beata offendida na sua isempção de setenta annos.)