A Filha do Arcediago

Camilo Castelo Branco

 

 

A

FILHA DO ARCEDIAGO

 

POR

CAMILLO CASTELLO BRANCO

 

 

 

TERCEIRA EDIÇÃO

 

 

 

 

PORTO
EM CASA DE CRUZ COUTINHO—EDITOR
18 E 20—CALDEIREIROS—18 E 20
1868

 

 

PORTO—TYPOGRAPHIA DO JORNAL DO PORTO

rua Ferreira Borges, 31

 

Leitores! Se ha verdade sobre a terra, é o romance, que eu tenho a honra de offerecer ás vossas horas de desenfado.

Se sois como eu, em cousas de romances (que no resto, Deus vos livre, a vós, ou Deus me livre a mim) gostareis de povoar a imaginação de scenas, que se viram, que se realisaram, e deixaram de si vestigios, que fazem chorar, e fazem rir. Esta dualidade, que caracterisa todas as cousas d'este globo, onde somos inquilinos por mercê de Deus, é de per si um infallivel symptoma de que o meu romance é o unico verdadeiro.

Eu sou um homem, que sabe tudo e muitas outras cousas. Não espreito a vida do meu proximo, nem ando pelos salões atraz d'uma ideia, que possa estender-se por um volume de trezentas paginas, que, depois, vil espião, venho vender-vos por 480 reis. Isso, nunca.

Tudo isto que eu sei, e muito mais que espero saber, é-me contado por uma respeitavel senhora, que não vai ao theatro, nem aos cavallinhos, e que tem necessidades organicas, mas todas honestas, e, entre muitas, é predominada pela necessidade de fallar onze horas em cada dez. Desde que tive a ventura de conhecel-a, não invejo a sorte de ninguem, porque vivo debaixo das mesmas telhas com esta boa senhora, e posso satisfazer a mais imperiosa necessidade da minha organisação, que é estar calado. É que não podemos fallar ambos ao mesmo tempo.

E, depois, a sua conversação, escassa d'arrebiques, e despretenciosa, abunda em riquezas naturaes, em thesouros impagaveis para o escriptor publico, em estudos sociaes adquiridos no testemunho de factos da vida, que não vieram ás locaes do jornalismo, porque a imprensa, ha poucos annos que denuncia os casamentos, os obitos, e os suicidios.

Ingrato seria eu, se não significasse aqui, com toda a cordialidade de que sou susceptivel, o meu reconhecimento á dita pessoa, que promette elevar-me á importancia de escriptor veridico, n'um genero em que todos os meus collegas mentem sempre.

No momento infausto em que os sêllos do tumulo me fecharem este livro do passado, obliterar-se-ha a fecunda veia de romancista, d'onde tenho havido uma barata immortalidade para mim, e para a minha collaboradora.

O publico, maravilhado da minha esterilidade, dirá então que os meus romances eram d'ella; e um nome, hoje obscuro, será exhumado do esquecimento para quinhoar da gloria dos escriptores-fêmeas d'esta nossa terra tão escassa—ainda bem—d'esse contra-senso.

A FILHA DO ARCEDIAGO

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