CAPITULO XX

Está, portanto, casada a senhora D. Maria Elisa de Sarmento e Athaide. Temol-a na rua das Flores, e deixal-a lá estar. Que se embriague dos carinhos do nosso bom amigo Antonio José. Se a riqueza satisfaz plenamente as suas ambições, é muito rica, póde cortar por largo, tem á sua disposição um homem capaz de tudo, menos de resignar-se com a felicidade do seu visinho João Pereira, que Deus tenha na bemaventurança dos pobres de espirito, que são quasi sempre os ricos de materia.

Vamos encontrar Rosa Guilhermina tambem casada com Augusto Leite. Sou o primeiro a confessar que o meu romance está cahindo muito! Um casamento ainda póde aturar-se no fim do romance. A gente gosta de vêr recompensados os tormentos de dous amantes com o prosaico destino de todos os tôlos e espertos. Ha casos, porém em que o casamento, em vez de ser o ultimo, deve ser o primeiro martyrio das personagens de uma novella. Quantas vezes eu leio uma, em que se me arrancam lagrimas de compaixão por dous entes que se adoram, a despeito de mil estorvos que lhes diluem em lagrimas os bellos olhos! Consterno-me; anceio a ultima pagina em que vão ser coroadas por um gôso duradouro as suas agonias... E essa ultima pagina diz-me que se casaram! «Faltava-lhes esta!» digo eu então, arremessando com piedosa indignação o livro!

Ainda um casamento... passe! Mas dous casamentos!... É abusar dos dons da igreja, ou romantisar o facto mais prosaico d'esta vida! Isto em mim creio que é falta de imaginação, ou demasiado servilismo á verdade!

Se Deus me chamasse para este caminho, como dizia, a respeito do estudo da natureza, o senhor João Pereira ao seu visinho, de certo não casava estas mulheres, tão depressa. Acho que o melhor era trazel-as por ahi um pouco de tempo a dar escandalos. Rosa deveria apaixonar-se por um major de cavallaria que lhe faria o favor de a inscrever no productivo catálogo das mães de familia. Depois o major era promovido a tenente coronel, e ia commandar dragões de Chaves, do que resultava (que palpitante não seria isto!) a boa da rapariga tomar duas onças de verdete n'um copo d'agua, e morrer amaldiçoando o perfido! Que cousa tão bonita! Hei de aproveital-a no primeiro romance que escrever, e que desde já se assigna nas lojas do costume.

Ora, Maria Elisa, essa... que havia de ser essa?... Eu entendo que Maria Elisa devia namorar-se d'um marquez. E vai depois este marquez tinha casado clandestinamente com Joanna Fagundes, criada da casa. E vai depois, constando á dita Fagundes que seu marido namorava Maria Elisa, a espadauda moçoila n'uma bella tarde, procura-a em casa, e mette-lhe os tampos dentro com uma cadeira. Elisa expira nos braços d'um sargento de policia, e Joanna Fagundes deixa cahir a mantilha, exclamando:

«Eu sou a marqueza de tal!»

O leitor ficava maravilhado do successo, e contava á familia a passagem com as lagrimas nos olhos.

Espero tambem não perder esta ideia, e o leitor terá occasião de avaliar duas obras primas. Por emquanto, peço ao respeitavel publico que suspenda o juizo a respeito da minha capacidade inventiva.

Já agora, porém, atemos o fio d'esta fastidiosa historia, e vejamos quantas moralidades podem produzir dous casamentos honestos.

O secundanista de direito casou oito dias depois de seu tio, e tomou conta da administração da casa, que recebeu do tutor de sua mulher.

Nos primeiros dias parece que leram muitos romances, e aligeiraram as horas em deliciosas palestras sobre a Experiencia amorosa, e Sophia ou o Consorcio violentado, romances muito lidos n'aquelle tempo.

Ao cabo de quinze dias, Augusto Leite não era certo á hora da leitura, e vinha, meia hora depois, pretextando negocios da casa.

Ao cabo de um mez, o extremoso marido deixava sua mulher a lêr as Viagens de Gulliver a sua sogra, e elle sahia a negocios domesticos, que lhe empatavam o tempo até ás 11 horas da noite.

Ao cabo de dous mezes, o digno apreciador da litterata, se sua mulher lhe perguntava a razão da demora, encarregava sua mãe de responder suavemente, porque a paciencia já lhe não dava azo para tantas satisfações.

Findo o prazo de dous mezes, Augusto foi para Coimbra continuar a sua formatura, e convenceu sua mulher de que não era costume as mulheres acompanharem seus maridos ao fóco da immoralidade. Rosa ficou, portanto, na companhia de sua sogra, que lhe enxugava as lagrimas saudosas, pedindo-lhe que lêsse a Joaninha, ou a Engeitada generosa. Seu marido escrevia-lhe todas as semanas poucas linhas, mas essas eram calidamente amorosas. Rosa indemnisava-lh'as com longas cartas, bonitas de linguagem, com muita meiguice em phrase pomposa, e muitas outras galanterias a que o academico, diga-se a verdade, não dava a maior importancia.

E vejamos porquê:

Augusto Leite tinha uma paixão unica: era o jogo; mas o jogo fôra o seu inferno, obrigára-o a fazer uma triste figura, como hoje se diz, porque perdia sempre. A sorte que o perseguira em solteiro não lhe era mais propicia em casado. O estudante continuava a jogar, e a perder; mas as perdas agora avultavam mais, e ateavam-lhe a paixão com mais ardor.

Depois do jogo, o pensamento subalterno do marido de Rosa Guilhermina era uma tricana, rapariga do campo, fresca e rosada, que vivia com elle, desde o primeiro anno, e que viera ao Porto durante as ferias grandes, em que se realisára o casamento do nosso traductor de novellas. Augusto transigiu amigavelmente com a rapariga, promettendo-lhe um cordão de ouro de vinte mil reis, uns brincos de sete mil e duzentos, dous pares de chinelas, umas côr de gemma d'ovo, e outras verde-gaio, afóra um capote de castorina côr de mel. De mais a mais, obrigára-se elle a tel-a em sua companhia, com tanto que ella não fizesse barulho.

As condições estipuladas, de parte a parte, foram cumpridas. Benedicta vivia, sem fazer barulho, na rua do Coruche com o seu academico, e conseguira, além dos dous pares de chinelas, um terceiro par de sapatos de cordovão com fitas, e uma mantilha de durante com aquelle bico escandaloso que usam as mulheres de Coimbra, que são as mulheres mais feias que Deus nosso Senhor depositou na face da terra.

Nas ferias do Natal, Augusto Leite veio consoar com sua familia. Houve muito beijo, muita saudade, foram á missa do gallo á Sé, comeram muitos confeitos de chocolate, e não tiveram tempo de lêr romances. Os outros dias correram rapidos para a carinhosa esposa. No ultimo fez certa revelação a seu marido, com a qual elle se mostrou contentissimo, e sentiu a innocente vaidade de ser pae.

O academico partiu, e d'aqui até aos Carvalhos foi imaginando o systema de banca-portugueza que lhe desse a desforra de seiscentos mil reis, perdidos até ao Natal. E tal era a certeza da desforra, que não duvidou contrahir o emprestimo d'um conto de reis, por isso que o patrimonio de sua mulher eram só propriedades.

O imaginado systema falhou, ou pelo menos não tinha vingado ainda, quando o imaginoso jogador perdeu o ultimo real do conto de reis.

Revoltado contra o traiçoeiro systema, seguiu o contrario, e perdeu tambem. As meditações incessantes no methodo de ganhar, absorveram-lhe o espirito de modo que o estudante foi reprovado, e retirou de Coimbra, onde dissipára seis mil cruzados, e ficára devendo dous.

No Porto eram geralmente sabidas as dissipações de Augusto Leite. Sua mulher fôra avisada por cartas anonymas, mas o seu espirito era altivo de mais para rastejar nas mesquinharias do dinheiro. O juiz dos orphãos é que não era tão sublime; e, instigado por o senhor Antonio José da Silva, resolveu intervir na ruina do patrimonio de Rosa, sujeitando-a a uma tutela, visto que seu marido era incapaz de administrar. Augusto Leite quiz provar que tinha muito juizo, mas parece que provou de mais, e peccou pelo excesso. As testemunhas disseram que nunca o tinham visto atirar pedras. Isto que devia convencer o juiz dos orphãos, o mais que fez foi tranquillisar-lhe o espirito dos receios de ser apedrejados pelo dissipador. Tenho á vista os autos d'este processo, e sou obrigado a confessar que o juiz julgou em boa harmonia com Pegas, e Carvalho, e Pereira de Mello.

Era um magistrado probo. Permittam este entre-parenthesis, porque o meu fraco é chamar probos a todos os magistrados, que recebem peitas, porque os ordenados não chegam a nada. N'este paiz, um magistrado probo já deu esta razão em pleno parlamento, e desde esse dia todos os magistrados são probos, e a probidade e a beca e os sapatos de fivela e as meias de seda, a rectidão e os bofes da camisa ficam sendo insignias de todos os magistrados.

Que é o que eu vinha dizendo? Não ha nada que me incommode tanto como ter de lêr o que escrevo... Acho que fallava no nascimento d'uma filha de Rosa Guilhermina... Ha de ser isso... Pois é verdade: nasceu a tal menina, e foi baptisada com o nome de Assucena, da qual se ha de fazer larga e pungentissima chronica. 4 Era uma linda creancinha, que a mãe offerecia ao pae, mas o fraco de Augusto não eram as creanças. Apenas a tomava dos braços de Rosa, douda de contentamento, passava-a aos braços da avó, que, por força, queria que a pequena se parecesse com ella.

Augusto vivia triste. Os carinhos de sua mulher não bastavam a desenrugar-lhe a testa, sempre carregada para os afagos da pobre senhora. Passeava sósinho no quintal, e, quando a timida mulher se aproximasse, retirava-se elle a meditar no seu quarto.

—Eu desconheço-te!...—dizia Rosa, tomando-lhe meigamente a mão insensivel—Que tens tu, Augusto?... já me não adoras com aquelles extremos de ha um anno? Que te fiz? Não tenho eu sido tão igual para ti?

—Tens, Rosa... Não repares na minha tristeza... Isto é organisação...

—Pois assim variam as organisações!... Grande mudança transfigurou o teu genio!...

—Que queres!... Eu não me fiz...

—Pois sim; mas porque soffres?!

—Porque não sou um homem vil, a quem se tire infamemente a administração d'uma casa...

—Mas tenho eu culpa de tal infamia!... Não fui eu propria fallar com o juiz?! Não empreguei os rogos, e as lagrimas com esse barbaro que quer governar o que é nosso?! Serei eu culpada n'essa fatalidade!...

—Não és... eu não te accuso... mas deixa-me, se não pódes remediar esta punhalada que se deu na minha honra! Foi um ultraje cobarde, forjado nas trevas, á sombra da lei!... Despotas!... Eu hei de vingar-me de vós, ou a minha dignidade nunca mais erguerá a fronte diante dos homens! (Reminiscencias d'um romance intitulado: EMILIA DE TOURVILLE, OU OS MEUS SETE ANNOS DE PERSEGUIÇÃO.) Feriram-me na corda mais sensivel da minha honra! Exauthoram-me dos direitos communs, a mim, que conheço, profundamente, as raias, que separam a demencia irresponsavel das operações do intellecto são! (Ideias pilhadas a dente na SCIENCIA DOS COSTUMES.) Fallarem-me no jogo!... Privarem-me do uso da minha fortuna, por que jogo!... Quem póde privar-me de abrir com uma alavanca de ouro a minha propria sepultura! (Pensamento soffrivel, roubado ao JOGADOR, comedia de Regnard.)

—E gostas assim de jogar, meu querido Augusto? Achas prazer no jogo?

—Acho... preciso d'esta distracção; fóra do jogo não vivo...

—Pois joga...

—E o dinheiro?... que é do dinheiro? Não vês que nos dão para a nossa subsistencia quarenta mil reis cada mez?

—Mas temos outros recursos...

—Quaes?!

—A nossa prata, que está avaliada em cinco mil cruzados... vende-a.

—Não te zangas por isso?

—Não, filho!... Eu dera a vida pela tua tranquillidade... Não é ella tua? Se o desejavas fazer, porque o não tens feito?...

Dias depois, Augusto Leite vendia a prata, que tinha sido o thesouro mais querido do arcediago de Barroso, e partira para Coimbra, combinando as fórmas d'um novo systema de jogo.

No dia seguinte ao da sua partida, Rosa Guilhermina recebia a sua prata, e este bilhete:

«Não desdenhes uma lembrança da tua velha amiga. Comprei essa prata, e quiz presentear tua filha com ella.

«Maria Elisa.»

A prata fôra comprada pelo senhor Antonio José da Silva.

Share on Twitter Share on Facebook