Maria Elisa, com Rosa Guilhermina, e a filha viviam na casa do Sério, unica propriedade que poderam salvar da fatal quebra do negociante francez e do sequestro do judeu. O dinheiro, que lhes fôra enviado de Paris, melhorára a condição precaria das afflictas senhoras, que se viam na dura precisão de entrarem n'um convento como criadas de freiras.
Calcularam d'onde poderia vir-lhe aquelle dinheiro, e abençoaram Augusto Leite, que parecia entrar, ao cabo de tantos desatinos, na estrada da honra. Calaram o segredo, receando que perseguissem o assassino dos dous soldados em Casal de Pedro, e esperaram que o tempo o rehabilitasse para tornar a Portugal.
Passou um anno, sem novas de Augusto. Resolveram mandar a Paris o procurador que fallára com o generoso hespanhol. Foi. Procurou-o na mesma casa, e soube que esse homem se retirára de França um anno antes.
Disseram-lhe que existia em Paris um general, que conhecera muito D. Affonso Vilhegas. O procurador encontrou esse general que era o visconde de Bellarmin, e soube que o supposto hespanhol morrera em Cadiz.
Esta nova matou todas as esperanças das pobres senhoras. Pobres outra vez! Choraram muito, como é natural, e resolveram abraçar a baixa profissão de criadas de convento.
Mas eram bellas ainda. A desgraça, ao passar por ellas, nem lhes desbotára o viço da formosura, nem lhes arrefecera de todo o coração. Viuvas ambas, embora pobres, quantos anciariam por esposal-as, se ellas viessem ao mundo com o seu sorriso de seducção?
Rosa tinha visto, em cinco mezes successivos, todos os dias, á mesma hora, um cavalleiro que passava, com os olhos pregados na janella do seu quarto, onde ella, na hora das saudades, á luz crepuscular, costumava sentar-se com sua filha nos braços.
Em uma d'essas tardes, vira que o cavalleiro parava, e dissera para cima palavras que ella não entendeu, nem quiz entender. Restirára-se a contar á sua amiga a aventura estranha, e promettera nunca mais, a tal hora, dar azo aos atrevimentos do senhor Alvaro de Sousa, que assim se chamava o fidalgo enamorado.
No dia seguinte, é certo que não veio á janella; mas, por entre as cortinas mal cerradas, teve a fraqueza de espreital-o. O fidalgo, que não deu por isso, parou um momento, e disse ella á sua amiga que o vira suspirar. Se isto é verdade, o senhor Alvaro de Sousa, emquanto a mim, era poeta. Os poetas fazem monopolio dos suspiros, mas, honra lhes seja feita, não encarecem o genero; barateiam-no de modo que não ha consumidora que tenha razão de queixa.
E eu creio sinceramente que Rosa Guilhermina, se lhe não dava em troca um suspiro, nem por isso se affligia da violencia com que o illustre representante dos Sousas lhe remettia os seus anhelitos amorosos.
Hão de acreditar-me que o mancebo era um bello mancebo. Ainda hoje me fallam d'elle como a joia das formosuras masculinas do Porto. Era uma dama, segundo me dizem as senhoras de cincoenta annos. Tinha intelligencia, qualidade que o exceptuava da regra geral que regulava o entendimento opaco de seus nobres primos. Era filho segundo; mas rico, e generoso, e dado a prazeres que lhe não arruinavam a bolsa nem a saude. Vinha a ser, emfim, um perfeito homem o que se apaixonára sériamente pela esquiva viuva de Augusto Leite.
Alvaro de Sousa, contrariado pela apparente frieza de Rosa, sentiu-se vexado no seu amor proprio, e impoz-se orgulhosamente um fidalgo desprêso por tal mulher, indigna de honrar-se com o seu amor. Isto foi ao meio dia; mas, ás quatro horas, o soberbo moço anafava cuidadosamente os cabellos, para não ser suprendido, em desalinho, no Sério.
N'essa tarde encontrou Rosa Guilhermina passeando, na alameda da Lapa, com a amiga, e a filhinha que brincava com um cão de regaço. O cãosinho, que não estava para brinquedos, encolheu a cauda, e fugiu á ama, na direcção da casa. As senhoras chamavam-lhe Joli, que era, por esse tempo, o nome favorito de todos os cães; mas o rebelde quadrupede não olhava para traz.
Alvaro esporeou o cavallo, cortou a vanguarda do cão, apeou-se gentilmente, apanhou o bichinho, que se agachava com medo, tomou-o no collo, e foi conduzil-o ás damas, que receberam a attenciosa delicadeza com o rubor na face.
O leitor deve ter observado que estas damas perderam o antigo estylo. Já não fallam a guindada linguagem das novellas, nem curam de aprimorar as ideias, enfeitando-as d'aquelles arrebiques e galanterias que eu espero ainda encontrar na mulher, que Deus me destina, e que ha de fazer de mim um respeitavel marido.
N'outro tempo, Alvaro de Sousa seria recebido com quatro metáphoras, e vêr-se-ia na precisão de incommodar a mythologia para responder-lhes. Agora, já não. A idade, o soffrimento, a experiencia, e o temor do futuro abatera no raso da linguagem humana aquellas almas perdidas nas maravilhas aereas. Fallavam como nós, importavam-se pouco dos livros, sentiam-se muito decahidas no espirito, e concordavam conscienciosamente que tinham sido embrutecidas pela desgraça.
E se não vejam:
—Agradecemos muito a sua delicadeza—disse Maria Elisa, recebendo o cãosinho (não tenho a certeza se era cadelinha) das mãos de Alvaro.
—Só este irracional—disse Alvaro, mastigando a fineza—deixaria de obedecer ás ordens de suas amas. Assim mesmo peço que não seja castigado... Se elle tivesse entendimento, o remorso de ter sido desobediente seria bastante castigo.
—Muito agradecidas ás lisonjas de v. exc.ª—atalhou Maria Elisa, emquanto Rosa se fingia distrahida sacudindo a terra das saias da menina.
—Não é lisonja, minhas senhoras. O que eu digo é o menos que se póde dizer, e espero acreditem que não sei dizer tudo que sinto. Aquella senhora parece aborrecer-se da minha presença...
—Não, senhor—disse Rosa.—A presença de v. exc.ª não aborrece... É porque estava sacudindo a terra dos vestidos de minha filha...
—Que é linda como sua mãe... Que annos tem?
—Quasi cinco.
—Em tão tenra idade é admiravel a esperteza d'esta creança!... Venha cá, minha menina... como se chama?
—Assucena—disse a creança.
—Que lindo nome!... Uma rosa devia produzir uma assucena... É minha amiga?
—Sou.
—É? Já tenho uma pessoa que seja minha amiga!... Sou mais feliz do que pensava... Quer ir a minha casa?
—Quero.
—Pois hei de mandal-a buscar um dia. Minha mãe gosta muito de creanças... V. exc.ª dá-me licença que ella vá?
—Pois não! É muita honra...
—N'esse caso, amanhã, se me permitte...
—Quando aprouver a v. exc.ª
Ora aqui está como começou o namoro. No dia seguinte, Alvaro de Sousa veio de carruagem buscar a menina, subiu á sala, como era natural, e não viu Rosa que se fechára no seu quarto banhada em lagrimas. Quiz saber a causa de tal soffrimento, e disse Maria Elisa que a sua amiga tivera noticia de estar viuva.
—Viuva a reputava eu, ha muito!—atalhou Alvaro.
—Não o era... Convinha que esse boato corresse...
O fidalgo deu a entender que sabia a razão d'esse boato, e retirou-se sem Assucena, que não podia, durante o lucto, sahir de ao pé de sua mãe. Á tarde, Alvaro veio fazer a D. Rosa a visita de pezames, e offerecer o seu prestimo.
Na tarde do dia seguinte repetiu a visita, e passou a noite.
Nos dias immediatos entrava com familiaridade. O ferreiro que morava defronte disse ao sapateiro visinho que o tal fidalgo não se lhe dava de recolher as duas frangas perdidas do rebanho. Este ferreiro tinha algum espirito. Se vivesse hoje, de certo não era ferreiro; escreveria folhetins, ao passo que o seu visinho sapateiro, homem lido no Bandarra e Carlos-Magno, amanharia substanciosos artigos de fundo. O fidalgo, esse, se vivesse hoje, faria o mesmo que fez então, e que ha de fazer-se no seculo XX. Eu, por mim, se fosse contemporaneo do mestre ferreiro, não escrevia romances. A estas horas (são sete e meia da tarde) estava eu rezando vesperas em algum côro de frades carmelitas, para que tenho uma vocação imperiosa.
Agora, leitores, o meu trabalho termina aqui. As cartas, que ides lêr, confiou-m'as a pessoa, que me contou esta historia. São textuaes. Podem vêr-se em minha casa, desde o meio dia até ás quatro horas da tarde. Quem as escreve é um pintor, que teve nome no Porto, e pouco tempo furtou á desgraça para cultivar a arte. Quem as recebe é uma senhora, que ainda vive.
CARTA I
22 de setembro de 1824
Minha estimavel amiga:
Não posso ser indiferente ao interesse, que v. exc.ª tem na minha felicidade. Na soledade em que me vejo, as suas cartas são a unica indemnisação que tenho das compridas horas de uma vida sósinha, escura, e despovoada de todas as bellezas, se é que algumas a existencia póde ter para mim.
Votei-me ao amor da arte, porque eu tinha precisão de viver para alguma cousa; mas a arte não me galardôa a minha dedicação. Do seio da tela tenho arrancado imagens, que são a reminiscencia d'aquella mulher que me fugiu dos braços para os braços do tumulo.
Aqui tem, minha amiga, como a arte recompensa os meus desvelos! Pede-me lagrimas, e não m'as paga com a esperança de crear por ella um nome, como o de muitos desgraçados que se immortalisaram nos quadros, em que verteram muitas.
Eu não sou egoista dos meus padecimentos. Tenho querido encontrar a felicidade que a minha extremosa amiga me vaticina. Tenho procurado essa segunda mulher com o reflexo luminoso da primeira, que me deixou rodeado de trevas, e saudades. Alguma vez, abandono o meu quarto, e corro, anhelante de não sei que esperança embriagadora, atraz d'essa visão impossivel. Sabe o que eu encontro sempre? A fachada do templo de S. Francisco. Lá dentro dorme o somno eterno a nossa amiga, sempre chorada! Se posso entrar, ajoelho, chamo-a a testemunhar as minhas ancias, e retiro-me d'alli gelado pela dúvida, gelado como a pedra que a separa dos vivos, gelado como o cadaver, que se move impellido por não sei que mão fatal que me não deixa resvalar no meu abysmo!
Sou bem desgraçado, não é assim? Muito! Este meu viver é alguma cousa mais dilacerante que a dôr. Não tenho a esperança consoladora, que a Providencia manda sentar-se no limiar de todos os infelizes. Vejo d'aqui todos os pontos em que devo passar na minha longa viagem para o nada. O presente conta-me o futuro. O que vem não receio que seja peor que o que é. Ha uma cruel monotonia n'esta angustia de todas as horas!
V. exc.ª comprehende-me? Creio que sim! O infortunio illumina o entendimento. Para o que soffreu não ha mysterios de dôr no coração do estranho. A minha amiga tem soffrido muito. Perdeu, ha pouco, um esposo querido. Já depois beijou os labios frios d'uma unica filha que ficára fallando com a innocencia da saudade a linguagem singela e carinhosa de seu pae. Ainda assim, invejo-lhe o poder que tem de prestar consolações á amargura dos outros. Eu, hoje, não saberia consolar ninguem.
Minha amiga, dê-me a sua estima, que eu não tenho mais nada. Em remuneração, dou-lhe a verdade da minha alma, que é um thesouro, raras vezes, concedido.
De v. exc.ª
Verdadeiro amigo,
Paulo.
II
30 de setembro
Palpita-me com sobresalto o coração. Preciso escrever-lhe emquanto me dura esta febre, que está sendo a minha felicidade! Felicidade! com que ousadia pueril escrevi semelhante palavra! Já é desejar muito possuil-a! Bem se vê que sou um homem sem presentimento nenhum alegre, sem nenhum direito á felicidade. Um pequeno lance na minha vida transtorna-me a cabeça; e, comtudo, estes lances, creio eu que são frequentes, e desapercebidos, na vida de qualquer outro, mediocremente feliz.
Hontem fui procurado por Alvaro de Sousa, que uma vez encontrei em casa de v. exc.ª Impressionou-me um ente estranho, no meu quarto, fechado para todo o mundo. Chamou-me «amigo» e esta palavra banal fez-me sorrir, pronunciada por um homem, que eu apenas conhecia, e que tão distante está da minha obscura classe!...
Disse-me que possuia um quadro meu, era que uma virgem, mais formosa que as de Raphael, era pintada no extasis de responder a sua mãe que a chamava do céo. Eu já sabia que v. exc.ª lhe tinha dado este quadro. Entendi, quando o soube, que não devia magoar-me; mas quizera, antes, que os profanos na religião do martyrio ignorassem o author daquella pintura. Não me receba isto como queixume. É a innocente sensibilidade de quem, pelo muito soffrimento, chegou talvez aos escrupulos injustos...
Perguntou-me se eu continuava a pintar. Respondi-lhe a verdade, que nunca veio desfigurada do meu coração. Disse-lhe que sim. Pediu-me, como especial favor, que retratasse uma mulher. Hesitei um momento; mas tive pejo de me negar. Annui, e na tarde de hontem, acompanhei-o ao Sério, a casa da viuva d'um negociante que, penso eu, se chamou Antonio José da Silva, e creio mesmo que v. exc.ª me fallou, ha tempos, n'esse homem, contando-me as aventuras d'uma tal Anna do Carmo, casada com seu primo de traz da Sé.
Em casa d'essa viuva está uma senhora, viuva tambem. Ha tres annos que a vi casada com um tal Augusto Leite, que deixou uma triste celebridade. A nossa chorada amiga fôra companheira d'ella nas orphãs em S. Lazaro, e contou-me cousas que lhe não eram muito favoraveis á sua indole de menina.
Quando a vi casada com um homem perdido, imaginei que a semelhança dos genios aproximára dous entes, que deviam encontrar-se. Comtudo, a Rosinha, como lhe chamava Helena, pareceu-me triste. Soube depois que era realmente infeliz, e nunca mais tornei a vêl-a.
Vi-a hontem, sentada diante de mim, com o sereno aspecto do prazer no rosto, um pouco macerado, mas radiante ainda d'aquelle brilho de certas bellezas que não se apaga nunca. Quiz adivinhar-lhe o coração nos olhos, e estes olhos, languidos de ternura, vi que se fechavam n'um espasmo delicioso a cada olhar de Alvaro de Sousa. Entristeci-me daquillo, porque me lembraram as mulheres do grande mundo, os typos de magestosa immoralidade, que dificultosamente se aclimatam em Portugal, onde não chegou ainda a cultura e o despejo da França
Eu disse-lhe que não podia prescindir dos seus olhos por algumas horas. Sentia-me com disposição para zombar da belleza, que tinha a vaidade de reproduzir-se para, dez annos depois, encontrar, no logar das rosas, as rugas da velhice, no vívido scintillar dos olhos o amortecimento do cansaço.
Principiei o retrato. Alvaro de Sousa entretinha nos braços uma pequena creança a quem chamavam Assucena. É filha de Rosa. Conheci-a pela semelhança com sua mãe; mas não sei o que ha na physionomia da pequena, que prophetisa fatalidades! Serei eu supersticioso?
Emquanto esboçava os contornos, perguntei-lhe se conhecera Helena Christina, nas orphãs. Disse-me que sim, e que chorára, quando teve a noticia da sua morte, por causa d'uma paixão que cegamente tributára a um homem, que não era da sua condição.
Que homem era esse?—perguntei-lhe eu—Era o filho d'um advogado.—Pensei que a condição do advogado era nobre, repliquei eu.—É nobre; mas a d'um general é muito mais nobre, e Helena era filha d'um general.
Não pude continuar o retrato. A palheta tremia-me no braço, e o pincel traçava linhas confusas. Pedi licença para retirar-me, e deixei Alvaro enleado da minha improvisada sahida.
Passei uma noite cruelissima. Levantei-me para escrever a v. exc.ª Cuidei que esta carta me seria um desabafo; mas a suffocação augmenta. Para que me disse aquella mulher que eu fui a causa da morte de Helena? Penso que o fui. Accuso-me d'esse crime; porque não posso accusar meu pae, que devera ser general, e não advogado.
Como é a sociedade, senhora! É impossivel que a Providencia não abandonasse o homem, depois de o ter creado! Se o espirito de Deus presidisse á organisação do genero humano, ninguem viria dizer-me: «A tua condição social collocou um tumulo entre ti e a filha de um general!»
E é a isto que eu chamei a minha felicidade! É um novo crime! Aquella mulher confirmou a certeza que eu tinha de ter sido amado por Helena até lhe merecer o sacrificio da vida. Será isto um egoismo barbaro?
Adeus, minha boa amiga.
De v. exc.ª
Amigo do coração,
Paulo.
III
12 d'outubro
Tive hontem o desgosto de não encontrar em casa v. exc.ª Procurei-a porque tinha muitas ideias a revelar-lhe, mas tão desordenadas, que receei não poder escrevel-as. A bondade, com que a minha paciente amiga costuma attender os desvarios d'este forte coração e d'esta debil cabeça, seria mais uma vez tolerante comigo.
Não a encontrando, resolvo escrever-lhe, e v. exc.ª verá n'esta carta o tumulto de sensações que se me atropellam na alma, ha dez dias.
Instado por Alvaro de Sousa, fui recomeçar o retrato da viuva. Era-me preciso, para não passar por doudo, remediar de qualquer maneira a precipitação com que sahi d'aquella casa. Não me occorreu algum pretexto. Adoptei o silencio como explicação, e não dei uma palavra que suscitasse recordações do dia anterior.
Reparei com animo frio na physionomia de Rosa. É uma d'estas mulheres que o mundo chama bellas, e eu creio que o são. Sem uns traços de soffrimento, que lhe assombram os olhos, não seria tão bella. Tem um olhar humilde, como quem pede compaixão. Não sei que transparente brilho de lagrimas lhe empana os olhos. As palpebras, como cansadas de se abrirem diante do infortunio, pendem amortecidas. Se não ha estudo n'esta attitude caracteristica, o olhar de Rosa póde exprimir muito amor, ou muito fastio.
Muito amor, talvez... é mais natural. Alvaro de Sousa, constantemente embebido na contemplação d'esta mulher, não a deixa um instante sósinha. Muitas vezes a viuva do negociante vem á sala trocar algumas palavras com Alvaro, e não consegue divertir-lhe os olhos da sua amiga. Não pude comprehendel-os. Achei demasiada precaução no amante, e alguma frieza, se não era pudor, em Rosa. As perguntas carinhosas, que elle lhe faz, são correspondidas com meiguice nos labios; mas a phrase vem sêcca do coração. Reparei n'isto, e parece que o pincel, que traçava as feições de Rosa, copiava tambem a physionomia moral de ambos.
Á primeira secção vieram ao panno os traços formosos da viuva. Alvaro abraçou-me com frenesi; e ella parece que encarou tristemente aquelle jubilo, que me pareceu pueril. É que aos vinte annos é assim o amor. A felicidade embriaga os que não provam o fel nas primeiras libações da infancia.
No dia seguinte fui continuar o retrato.
Alvaro de Sousa não tinha chegado ainda. Rosa pareceu-me mais alegre, e recebeu-me com um sorriso de graça e confiança. Antes de sentar-se perguntou-me que razão tivera eu para retirar-me, na primeira vez que alli fôra, d'um modo que a deixára cuidadosa. Pedi-lhe que me não interrogasse. Rosa, sem offensa ao meu pedido, fallou de Helena, recordando a conversa que precedera a minha sahida. Era uma delicada maneira de interrogar-me. Eu creio que me desfigurei. Reparou ella que eu estava pallido e tremulo. Assucena, que por não sei que infantil capricho me subira para o collo, disse que eu tinha uma lagrima nos olhos. Rosa aproximou-se, e, apertando-me a mão, com um ar de bondade, e um desembaraço de que eu não seria capaz, disse que me conhecia, e pediu-me perdão de ter ferido o filho do advogado, que adorára a filha do general.
Não respondi a este lance affectuoso. Pedi-lhe que se sentasse para continuar o retrato. Rosa parecia mais commovida que eu. Sentou-se. N'este momento entrou Alvaro. Cortejaram-se com algumas perguntas e respostas triviaes, e eu, com os olhos do coração no tumulo de Helena, e os da face na physionomia da sua companheira de recolhimento, continuei, sem vontade nem attenção, o retrato.
No dia immediato fui concluir a obra. Rosa recebeu-me com estranha affabilidade. Perguntou-me quantas secções faltavam. Respondi que era aquella a ultima.
—E, depois—proseguiu ella, titubeando—não torna a esta casa?
—Tornarei todas as vezes que v. exc.ª se dignar occupar-me no seu serviço.
—Eu desejava possuir o retrato de minha filha.
—Enviarei a v. exc.ª um habil pintor.
—Pois não quer encarregar-se d'este trabalho que eu tanto queria que fosse seu?
—Agradeço a lisongeira fineza... Se eu tivesse o amor artistico, não teria mais incensos a desejar para o seu culto; mas eu não posso, sem grande sacrificio, fazer retratos. Fui surprendido, quando me prestei a este serviço; agora, se v. exc.ª me concede recusar um sacrificio que não é necessario ao seu bem, eu declino de mim esse trabalho, e, repito, enviarei a v. exc.ª um retratista, que de certo não posso substituir.
—N'esse caso, prescindo do seu favor... agradecendo-lh'o muito... Não será retratada minha filha.
—Eu receio ter sido grosseiro, minha senhora... Se v. exc.ª determina que seja eu o retratista d'esta linda menina, recebo a sua vontade como ordem...
—Deus me livre de sacrifical-o... Pensei que lhe não seria penoso conversar com uma companheira de Helena, alguns instantes no dia.
—É muito penoso...
—Muito?... é admiravel!... E porquê?... Mereço-lhe a confiança de me dizer que motivos lhe dou para não ser digna testemunha de suas lagrimas?
—Nenhuns motivos, senhora D. Rosa... É que eu não tenho a tranquillidade de espirito precisa para receber como um prazer as recordações d'essa mulher que amei como não posso tornar a amar... Já vê que deve ser-me bastante amarga a convivencia com uma pessoa, que promette fallar-me de Helena...
—Não lhe fallarei n'ella...
—Então seria eu quem fallaria, senhora D. Rosa... Tenho-a sempre adiante dos olhos... Não posso mandal-a afastar da minha alma, para entreter-me em cousas futeis...
—Nem tudo é futil, senhor Paulo...
—Para mim... é. Não tenho vida que não seja uma insoffrivel saudade; mas acho esta dôr mais nobre que tudo que me rodeia... Por ella, troco de boamente todas as felicidades que o mundo possa traiçoeiramente offertar-me...
—Traiçoeiramente...
—Sim... Creio que o mundo não póde offerecel-as d'outro modo... Tomára eu ser esquecido para todos, assim como o meu nome o foi para v. exc.ª... Preciso que me deixem, porque eu não procuro alguem. Será forçarem-me a soffrimentos com que não posso, e contra os quaes empregarei toda a minha coragem, chamarem-me para um mundo, onde serei como o homem sem patria, nem affeições, nem amigos.
—Não crê na amizade?
—Não, minha senhora... Eu tinha uma grande alma, cheia de todos os sentimentos bons; essa alma foi como um raio de luz amortecida no prestito funebre da filha do general... Apagou-se ao pé da sepultura... Não tinha senão essa alma...
—Nem espera resuscitar d'esse lethargo?
—Nunca mais.
—Nem emprega diligencias para isso?
—Nenhumas. Eu sei que o mundo não tem nada para mim...
—Nem o senhor Paulo tem nada que dê ao mundo?
—A compaixão para os desgraçados como eu, um sorriso de escarneo para as felicidades d'um dia, e um adeus invejoso áquelles que morrem... Bem vê que ainda sinto impulsos nobres no coração...
—Deseja a morte?...
—Procuro-a; mas entendo que é debil o poder das paixões nas organisações fortes... Eu lucto, ha dous annos, face a face, com uma dôr, que me não deixa cinco minutos de descanso, e vivo... vivo assim com o aspecto da serenidade, e talvez com o rosado juvenil d'uma saude perfeita... Não se morre de paixão...
—E que importaria morrer?
—Importava não sentir...
—Pois o senhor não crê n'outra vida?
—Não creio n'outra vida. Procurei acredital-a. Li tudo, estudei tudo, porque me disseram que a incredulidade era a estupidez. A cada oraculo da immortalidade, que consultava, a minha alma, além de incredula, sentia a cruel precisão de escarnecer a fé dos que nos mandaram crêr. Disseram-me que eu não cria, porque a fé era uma graça especial do Senhor. Isto fez-me rir amargamente; mas, supersticioso pela desgraça, pedi, invoquei, suppliquei com fervor a fé. Esperei-a. Deixe-me rir, senhora, que este riso é um insulto bem merecido às minhas crenças... O homem é um verme. Deus não tem nada com este grão de areia, que lançou no oceano, a turbilhões, com a ponta d'um pé...
—Deve ser muito desgraçado...
—Não sou mais do que seria: creio, pelo contrario, que sou menos. A immortalidade de que me servia?
—De encontrar essa mulher, que tanto amou n'este mundo...
—Isso é falso... Essa mulher, que muito amei n'este mundo, antes de entrar no esquife, principiou a desorganisar-se. As pessoas, que estavam em redor, diziam que era insupportavel o cheiro do cadaver... A putrefacção, a estas horas, deve tel-a consummido... De que me servia a immortalidade a mim, se os vermes me não restituissem a mulher que teve um dobre a finados, uma oração mercenaria, uma lagrima do costume, e a eternidade do nada, que é a verdadeira eternidade?...
—Com uma razão tão forte é impossivel que não possa vencer os seus soffrimentos.
—Chama v. exc.ª a isto razão forte? É uma debilidade, minha senhora... Forte é a razão do homem que se dá voluntariamente a esperanças chimericas, e crenças sem critica... O forte é esse, que vence a propria razão... Fraco sou eu, que não posso subjugar o espirito...
—Nem com as consolações d'uma verdadeira amiga?
—O que é uma verdadeira amiga?
Fomos surprendidos por Alvaro de Sousa. Reparou no embaraço de Rosa, com ares desconfiados. Eu recebi-lhe os cumprimentos com a frieza não calculada dos meus habitos ordinarios. Continuei o retrato, com não sei que placidez incomprehensivel! Senti-me melhor do coração...
Agora é que eu me sinto incapaz de continuar esta longa carta... Creio que é longa e fastidiosa... Soffra, e tolere-m'a, minha querida senhora.
Até ámanhã.
De v. exc.ª
Dedicado amigo,
Paulo.
VI
14 de outubro
O retrato de Rosa estava concluido. Na tarde d'esse dia, Alvaro de Sousa procurou-me, agradeceu-me o emprego que eu fizera de todos os recursos da minha arte divina, e delicadamente deixou sobre a minha mesa um cartuxo de dinheiro. Não sei o que continha; porque, apenas o encontrei, depois que Alvaro se despedira, mandei entregal-o em sua casa.
Alvaro voltou no dia immediato, e instou pela razão de semelhante precedimento. Respondi-lhe, depois de importunado, que me dispensasse s. exc.ª de dar uma categorica explicação das minhas acções. Vi-lhe um sorriso de desconfiança, que me fez piedade. Estive quasi a pedir-lhe a definição do sorriso; mas não quiz culpar-me no erro, que lhe censurava a elle. Todo o homem póde chorar ou rir quando quizer.
Decorreram tres dias, sem o menor incidente, com referencia ao retrato da viuva. Hontem, porém, recebi a carta, que remetto a v. exc.ª, já que me impôz a obrigação de lhe não esconder os mais secretos incidentes d'esta minha attribulada existencia, que v. exc.ª segue, desde o berço, minuto por minuto. Communicando-lhe essa carta, entendo que não me deshonro. A mulher, que a escreveu, ou está deshonrada de mais para não soffrer nos seus creditos com semelhante revelação, ou está bastante pura para não soffrer no seu pudor, confiando-se á minha discrição, e á de v. exc.ª
«Já não sou de mim propria quando commetto a estranha temeridade de escrever-lhe. Separo-me das leis do meu sexo, e declaro-me muito forte na minha fraqueza para me abandonar loucamente á vontade caprichosa d'um sentimento, que póde deshonrar-me, mas que me absolve na consciencia.
«Escrevo-lhe, Paulo, porque não tenho esperanças de encontral-o n'esta casa. Quero deixar cahir este véo, com que me viu, porque tenho vergonha de parecer-lhe o que a minha razão me diz que não sou.
«Que julga de mim? Como tem avaliado o meu procedimento? Reputa-me amante de Alvaro de Sousa? Não quero essa consideração; renuncio a tal gloria, porque eu não sou amante de Alvaro de Sousa. Este homem entra na minha casa, e denomina-me prima. Intitula-me prima, porque dizem que minha mãe é casada com não sei quem que pertence á alta nobreza. Vi esta mulher; não pude amal-a; não pude reconhecel-a; e fui com ella rude como seria com uma pessoa estranha.
«Soube que a fortuna de meu pae a fizera elevar-se até ao ponto de nobilitar-se. Não me fez uma ligeira impressão esta mudança. Não a procurei nunca, e morrerei de indigencia antes de pedir-lhe uma dobra de seus velhos tapetes para resguardar do frio minha filha.
«Alvaro de Sousa tem-se-me offerecido para estabelecer entre mim e D. Anna do Carmo uma alliança filial. Revela um interesse extraordinario pelo meu futuro. Dedica-me extremos de irmão e encobre com muito fina astucia as suas intenções, se ellas são más.
«Não me importa saber quaes ellas sejam. Nada ha commum entre mim e este cavalheiro, senão uma amizade sem consequencias, e um commercio de frivolidades como é a troca de retratos, a que eu não ligo importancia alguma.
«Aqui tem o que eu sou para aquelle homem. Precisava abrir-lhe assim a minha alma, Paulo. O resto do mundo deixo-o julgar a seu bel-prazer; não me canso até em sondar a indifferente opinião da sociedade a meu respeito.
«A sua preciso d'ella; porque preciso da sua estima, como d'um amparo que me anime a esperar sobre a terra a felicidade, que, em poucos dias, vi fugir diante de meus olhos, como um sonho ditoso.
«A sympathia entre dous desgraçados deve ser abençoada por Deus. Não fuja d'uma mulher que póde, se não dar-lhe consolações, recebel-as ao menos. Seja meu amigo, não como foi de Helena, mas como póde sêl-o d'uma pessoa, que desejára n'este instante ter uma sepultura ao lado d'ella.
«Não ouso pedir-lhe nada, não tenho sequer coragem de implorar-lhe duas linhas em resposta a esta carta, que me sahiu tão ingenua do coração, que nem quero tornar a vêl-a, para que o artificio da fria cabeça não vá manchar a pureza natural com que a escrevi.
«Adeus, Paulo. Não desdenhe a inutil estima, que lhe offerece
Rosa Guilhermina.»
Esta carta não me impressionou. Quasi que me não occupei senão do estylo em que era escripta! Encontrou-me n'um momento de gélida atonia. Tenho-os assim, e então a minha alma é dura, o meu coração paralysa, os meus labios sorriem-se machinalmente, e eu escondo a face nas mãos para contemplar este mysterioso mixto de sensibilidade e cynismo que caracterisa as feições da minha indole.
O portador d'esta carta esperava uma resposta, duas horas depois. Eu não pensei que devia responder; por isso não tive o cuidado de saber se alguem esperava resposta. Quando me annunciaram o portador, mandei-o subir. Perguntei-lhe se era forçoso responder; disse-me que tinha ordem de esperar até que eu lhe désse resposta, ou dissesse que a não tinha.
Escrevi...
Não me lembra bem o quê. Penso que eram estas as ideias:
Que eu não mostrára o menor interesse em conhecer indiscretamente a natureza das ligações que prendiam D. Rosa Guilhermina a Alvaro de Sousa;
Que me eram tão indifferentes depois como antes, mas que muito ingenuamente estimava que ellas fossem taes, que nunca a excellente senhora tivesse de soffrer por ellas;
Que acceitava a offerta da sua estima, porque já não podia aspirar a outros triumphos no coração das mulheres, que sabiam separar a amizade do outro sentimento que a hypocrisia vestiu com os arminhos emprestados d'uma affeição nobre;
Que, na minha posição, não podia dar-lhe mais consolações do que as muito poucas que um homem qualquer póde offerecer no serviço de qualquer senhora, que precisa d'um criado.
Penso que foi isto, pouco mais ou menos, o que eu escrevi. São passadas vinte e quatro horas. Não tenho nada a accrescentar a este episodio, e creio que terminará aqui.
Não concebo bem o que esta senhora quer de mim! Não creio n'estas fascinações momentaneas, porque as não entendo, ou o meu coração está muito abaixo d'esses vôos.
O que em verdade lhe digo, minha boa amiga, é que não preciso recordar os juramentos que fiz a Helena, dous dias antes da sua morte, para vencer a impressão que Rosa Guilhermina me poderá ter feito. É nenhuma. Posso esperar com firmeza e animo frio a perseguição. Nem, ao menos, a lastimo, porque a febre da imaginação ha de mitigar-se, e, quinze dias depois, esta mulher terá por mim um sentimento de resentido orgulho que ha de salval-a. Entende-o assim?
De v. exc.ª
Grato amigo,
Paulo.
V
19 de outubro
Retirou-se, n'este momento, de minha humilde casa o senhor Alvaro de Sousa.
S. exc.ª é um lastimavel mancebo! Como seu primo, minha boa amiga, sinto que elle seja o incentivo irrisorio d'esta carta.
Entrou de chapéo na cabeça na minha officina.
Vou tentar recordar o dialogo, que tivemos.
«—Venho exigir do senhor uma prompta resposta—disse elle, dobrando o punho d'uma bengalinha com a ponta.
«—Tenha a bondade de fazer a pergunta—respondi-lhe eu, convidando-o a assentar-se no canapé, inutilmente.
«—O senhor tem algumas intelligencias com D. Rosa Guilhermina?
«—Não respondo.
«—Quer dizer que tem?
«—Não quero dizer nada. Digo que não respondo.
«—Mas eu preciso que responda sim, ou não.
«—Pois por satisfazer ás suas exigencias imperiosas, senhor Alvaro de Sousa, respondo ambas as palavras: sim e não.
«—Não comprehendo...
«—Tanto peor para v. exc.ª que não póde esperar de mim outras explicações.
«—O senhor parece ignorar a qualidade de pessoa com quem falla...
«—Poder-me-hei ter enganado, mas creio que fallo com um dos mais distinctos cavalheiros do Porto... O senhor Alvaro de Sousa é muito conhecido, para que eu não conheça a qualidade da sua pessoa, até pela libré dos seus lacaios.
«—É preciso que nos entendamos.
«—Desejo-o de todo o meu coração...
«—O senhor tem algumas relações com D. Rosa?
«—Continuemos na mesma desintelligencia, senhor Alvaro... Essa pergunta já foi respondida.
«—Mas a resposta não me satisfaz.
«—Não tenho outra, e falta-me até a paciencia para lhe offerecer, outra vez, a que v. exc.ª não acceita.
«—Eu sinto que o senhor não seja um cavalheiro da minha classe para responder-me á ponta da espada.
«—Dou, portanto, louvores á Providencia por me ter feito d'uma classe diversa da dos heroes, que teem ponta de espada para os que não tem ponta de lingua...
«—O senhor zomba de mim?!
«—Zombo.
«—E não receia as consequencias d'essa affronta á minha honra?
«—Não, senhor.
«—Estou em sua casa...
«—Que quer dizer com isso?
«—Não quero dizer nada... Encontrar-nos-hemos...
«—Senhor Alvaro de Sousa, eu tenho épocas em que difficilmente sou encontrado, e esta parece-me que é uma. Se v. exc.ª tem urgencia de encontrar-se comigo, sahirei hoje.»
Não me respondeu, e sahiu.
São tres horas da tarde. Vou dar um passeio.
V. exc.ª ha de permittir-me que, invocando o sagrado testemunho da nossa amizade, eu lhe imponha o preceito de não fazer transpirar uma palavra d'esta minha carta, a não desejar um completo rompimento nas nossas relações.
De v. exc.ª
Humilde criado,
Paulo.
VI
20 de outubro
A carta de v. exc.ª, cheia de benevolos conselhos, e prudentes reflexões a respeito do meu conflicto com o senhor Alvaro de Sousa, é uma nova força que v. exc.ª quer dar ás minhas convicções na sua amizade.
Felizmente, o primo de v. exc.ª, sentindo por ventura que lhe não era glorioso um desforço com o pintor, já teve a summa discrição e bondade de encontrar-se comigo tres vezes, e deixar-me seguir pacificamente o meu caminho.
Sinceramente lhe digo, minha nobre amiga, que o menos interessado, n'esta ridicula lucta com um moço digno d'outro competidor, era de certo eu.
Não me levava para este acto de suprema vaidade o coração. O meu mal pensado cavalheirismo era todo da cabeça, que tenho cheia de loucuras, e refractaria a tudo que é submissão a classes, cuja superioridade—desculpe-me v. exc.ª—não reconheço debaixo do céo.
D'este orgulho, que eu supponho não existirá d'hoje a cem annos, porque então os homens serão todos iguaes perante a lei, e irmãos perante Deus, d'este orgulho resultou a facilidade com que fui hontem procurar D. Rosa, que me pedia anciosamente uma entrevista.
Encontrei-a assustada, confiando de mais na superioridade de Alvaro, e avaliando em menos que o seu valor real a minha frieza de animo para arrostar as furias do seu fidalgo amante.
Sorri piedosamente para aquelles receios, aliás naturaes no coração d'uma mulher.
Aquietei-lhe quanto pude o seu sobresalto, e acabei por pedir-lhe que fosse grata aos extremos do gentil moço, que, por ella, se arriscava a um encontro, cujas consequencias eram imprevistas para ambos nós. N'este sentido, aconselhei-a com uma generosidade digna d'outros tempos. Encareci o merecimento do senhor Alvaro, advoguei a causa d'elle com o fervor d'amigo, estabeleci comparações entre nós que redundavam em grandes vantagens para elle, e terminei este difficil papel, salvando a minha posição falsa, com lhe offerecer a sincera estima de irmão.
Rosa Guilhermina não me quer para irmão. Achei-a de marmore para este sentimento que seria em mim o mais vital de todos, o que eu hoje mais lhe agradeceria, e o primeiro e derradeiro que eu posso offerecer a uma mulher. Ella, não. Fallou-me do seu amor com estranho desembaraço. Explicou-me os effeitos d'uma impressão violenta. Disse-me que só um prompto desprêso poderia salval-a, porque tinha o amor proprio necessario para não succumbir sem gloria, humilhando-se a um homem que a não comprehendia. Empregou, na exposição eloquente da sua sympathia, as melhores palavras da novella, e concluiu o seu não interrompido discurso com lagrimas, que me pareceram mais eloquentes que a fecundidade palavrosa.
Eu não sei o que ha de sublime, e mavioso nas lagrimas d'uma mulher. Como se Deus lhe désse a humildade por instrumento de triumpho, eu senti-me enfraquecer, ao mesmo tempo que recobrava toda a minha coragem, pedindo-a á saudade de Helena, como se pede uma alegria ás recordações do passado, que se nos foi com todas ellas.
Eu creio já ter dito a v. exc.ª que D. Rosa é uma linda mulher. Quando a retratei, havia alli n'aquella physionomia um colorido de felicidade, um sangue agitado que lhe vinha em estos ardentes do coração, uma viveza robusta, que denunciava um feliz descuido de pezares.
Hontem não era assim. Rosa estava livida. Orlavam-lhe os olhos umas manchas azuladas, que marcavam talvez a passagem de muitas lagrimas escondidas, em longas noites de desesperação. Posto que vaidoso, eu não me felicitei, minha cara amiga, por ter sido a causa d'esses padecimentos. Se é por mim que elles existem, não se me dá da gloria inutil que elles possam dar-me. Não tenho nenhuma: não me prestam de balsamo para o coração; não me aquecem esta cabeça de gêlo; não me deixam roubar ao passado um instante para com elle idear futuros de impossivel felicidade.
Poderei amar esta mulher repetindo as minhas visitas? Não. A aproximação é o divorcio das grandes paixões, que a distancia esposára. Aos pés do homem cahe partido o prisma, quando o hálito da mulher é tão de perto que lhe empana as côres.
E eu, de mais a mais, não desejei aproximar-me, quando a vi de longe. Não senti este toque inesperado, esta surpreza electrica, uma só vez recebida na existencia de cada homem.
Poderá o tempo fazer o que não fez um instante?
Não.
Dizem que existe um amor lentamente creado pelo habito, emanação da amizade contrahida pela semelhança de vontades, resultado d'uma demorada elaboração de dous espiritos que se consagram no mutuo sacrificio de propensões e desejos. Não sei o que seja isto. A razão rejeita essas candidas theorias.
Eu só creio no amor não esperado, não grangeado por sacrificios, não calculado de dia para dia.
Se me dizem que essas paixões improvisadas n'um olhar, e n'um sorriso, e n'um córar, são instantaneas, e ephemeras como o féto arrancado ao embrião, com violencia, antes de tempo, eu direi que sim... que morrem essas paixões na vida, porque ha a pedra do tumulo que desce quando Deus a manda, mas ha a eterna saudade que nem a Providencia póde desvanecel-a no coração, que se envolve n'um pedaço da mortalha, roubada a outro coração, que o deixou viuvo de todas as esperanças, e gélido para todos os confortos.
Minha paciente amiga, eu sou fastidioso com as minhas choradeiras. Acolha-m'as com amor, que eu não tenho, sequer, em galardão de tantos soffrimentos, o poder de as lançar ao papel de modo que consternem a compaixão da unica pessoa que póde sentir comigo.
Estou pintando. É o meu sonho de ha dias. É Helena, quando me deu uma rosa murcha, e me disse: «Ahi tens o meu amor: a rosa cahirá desfeita em pó; mas a saudade ficará perpetuamente entre os vivos, como o germen d'essa flôr.» Estas palavras repetiu-m'as no sonho. Vi-a tal qual era, n'esse primeiro dia em que os medicos lhe disseram que désse um passeio recreativo á ilha da Madeira. N'esse dia começou ella o seu curto passeio em redor da sepultura!...
Adeus, minha estimavel senhora.
De v. exc.ª
Amigo dedicado,
Paulo.
VII
29 de Outubro
Tem decorrido sete dias, depois que lhe escrevi, minha boa amiga. V. exc.ª não calculava a razão do meu silencio, quando na sua queixosa carta de hontem arguia a minha reserva, ou indolencia.
Eu indolente, senhora! Eu que não tenho cinco minutos de repouso desde o dia á noite! Eu, que conto os longos instantes do escurecer ao dia!
Não lhe escrevi... por vergonha!... Ha de crêr-me, senhora! não tenho tido animo de ser eu o proprio accusador das minhas fraquezas incomprehensiveis! Tenho esperado o intervallo lucido d'esta demencia de seis dias, e as trevas cerram-se cada vez mais.
Que é o que se passa em minha alma? Que transfiguração se operou na minha vida? Que brinquedo cruel é este que vem ludibriar-me no canto esquecido em que me refugiei com as minhas desgraças?
A minha organisação está debaixo da terrivel influencia d'uma zombaria providencial! Eu era, ha oito dias, o homem morto para o futuro; as minhas alegrias resuscitava-as do tumulo mudo do passado; a minha vida era uma saudade que devia cegar-me os olhos da razão com o seu brilho sinistro, enlouquecendo-me, ou matando-me. Detestava o presente, porque debaixo dos meus pés estava o ardor do deserto, e nos horisontes da minha esperança... nem uma gôta d'agua que me apagasse este lume que me queima, sem o poder de aniquilar-me. Eu era isto! A solidão era-me cara. O tumulo de Helena povoava-se-me de anjos. A imagem d'ella, esboçada em cada téla que me rodeia, tinha uns olhos que choravam, mas os seus labios articulavam não sei que palavras animadoras, que me mandavam subir com o sorriso da resignação as escadas do meu patibulo.
E esta vida acabou para mim. A imagem de Helena fugiu lagrimosa e espavorida da solidão do meu quarto. A sepultura d'ella... é uma pedra êrma de phantasmas para mim. Comecei por descrêr das minhas passadas visões. Raciocinei friamente sobre a vida e a morte; sobre a belleza que foi, e o cadaver que é; sobre o coração arquejante de amor, e o coração minado de vermes.
Que é isto, pois? quem rasgou este véo diante de meus olhos? Que homem sou eu hoje, ou que homem fui durante dous annos de amargura incuravel?
Entre mim e Helena... está Rosa Guilhermina! Tenho o rubor do pejo na face, quando estas palavras me fogem do coração! Parece que a vejo contrahir uma visagem de indignado pasmo por tal mudança! O meu caracter apresenta-se-lhe uma inconcebivel monstruosidade! Vota-me um legitimo desprêso, desde este momento?
Primeiro me despresei eu a mim. Primeiro olhei eu, com asco, para a minha miseria. Antes de v. exc.ª recuar nauseada da baixa condição da minha alma, entrei eu na minha consciencia, e vi-me torpe, ingrato, insensivel, perjuro, e vil!
Tenho muito orgulho da minha honra; quero absolver-me d'esta deslealdade á memoria de Helena, e não posso. Vejo que é necessario ser cynico para me desculpar, escarnecendo as culpas que a sociedade me imputa. Não posso, não sei sêl-o, não está na minha mão rasgar o contracto que fiz com Helena, nos seus ultimos instantes.
Mas eu amo Rosa. Que sentimento é este? Como hei de convencer-me de que amo esta mulher? Se isto é uma illusão, como é que se dissipam estas chimeras?
Não sei! Lembra-me que senti uma commoção inexplicavel quando a vi chorar! Lembra-me que a vi n'um sonho, de que acordei balbuciando o seu nome com ternura. Lembra-me que desdenhei, acordado, a ternura do sonho... Mas a minha alma estava inquieta. O meu quarto parecia-me pequeno: este silencio entristecia-me... Faltava-me não sei que voz, que som dos anjos que me tinha ferido uma corda no coração!... Ri da minha fragilidade. Peguei d'um pincel... Disse á minha alma que lhe inspirasse os traços de Helena... e os olhos amortecidos de Rosa resaltaram-me do panno com duas lagrimas... Era a imagem d'ella, que se levantava de um tumulo a dizer-me: «Aqui tens lagrimas minhas; aqui tens um coração, que renasceu das minhas cinzas; aqui te dou a unica mulher, que póde supprir a que não terá para ti um sorriso sobre a terra... Vê que os vermes corroeram a minha face. Não te illuda uma esperança em outros mundos, porque os limites da vida são a campa... Eterna é só a materia; mas a materia que te feriu os sentidos, dissolveu-a o sôpro da desgraça...»
Contive-me durante dous dias de tribulação incessante. O coração dizia-me que Rosa me escreveria. Li a carta que recebera com indifferença, e passei por a minha alma todas aquellas palavras. Achei-as sinceras... Acarinhei-as com soffreguidão... Recordei o que ella me dissera, depois. Accusei-me de ingrato. Tive orgulho do meu rival. Receei ter parecido um ente indigno de tamanho amor! Senti ciumes... Queria vêl-a... Precisava de lhe esconder metade de minha alma, revelando-lhe uma pequena parte dos meus sentimentos...
E procurei-a... Não sei o que lhe disse... Recordo-me que lhe apertei a mão com ardor; que lhe pedi lagrimas de piedade, e coragem para não transgredir um juramento... Penso que me não entendeu, porque me respondeu com um sorriso, e fugiu de ao pé de mim com a face abrazada...
E, desde esse dia, escrevo-lhe a todas as horas. Não lhe mostro as minhas cartas, porque não posso convencer-me de que o meu coração está n'ellas... É impossivel!... Aqui ha uma fascinação!... Eu não posso ter esquecido Helena!...
Preciso hoje da sua companhia, minha querida amiga!... Escrevi o que não ousaria pronunciar...
De v. exc.ª
Grato amigo,
Paulo.
VIII
25 de outubro
A ingratidão é punida. Principio a expiar o perjurio. Helena vai ser vingada por esta mulher, que, traiçoeiramente, me assaltou o coração, quando eu me julgava de ferro para as paixões.
Rosa Guilhermina vai recuando diante de meus passos. Aproximar-me foi gelal-a. Da tristeza profunda com que me olhava, antes da vergonhosa quéda que dei do alto do meu orgulho, transformou-se n'um rosto folgasão, n'um conversar futil e acreançado, n'um nem eu sei que de motejo e zombaria que me escandalisa e envergonha.
Esta mulher quiz experimentar-se, experimentando a minha soberba. Humilhou-se como a vibora, que se enrosca entre as urzes, para se levantar d'um salto de que eu devia fugir atrozmente ferido no meu amor proprio. Isto tudo é inexplicavel; mas o facto existe com horrorosa evidencia! Essa mulher, que me provocou, ha de amanhã despresar-me... despresa-me já hoje, e ousa dizer-me que me recebe, em attenção á delicadeza com que a tenho tratado!
Esta fria linguagem é a mascara impostora dos caracteres, que se não sustentam. Quando a mulher assim falla, é porque o amor, nos labios d'ella, foi uma expressão mentirosa, que passou por lá, como a palavra «Deus» que é seguida, na bôca do impio, pela palavra «demonio!»
É isso crivel, minha querida amiga?
Rosa será aquella mulher, que me escreveu? Não a veria eu chorar? As lagrimas podem assim prestar-se a uma infamia? Ha mulheres que tiram d'um coração gasto um tal proveito?
Hontem procurei-a com a resolução estupida de convidal-a a ser minha mulher! Eu não podia já luctar com ella, nem comigo. Um dia antes, perguntei-lhe a razão da sua frieza; respondeu-me que ella mesmo não sabia explical-a. Disse-me que Alvaro de Sousa não frequentava a sua casa, e accrescentou que desejava saber de mim a razão d'este procedimento.
—De mim?!—perguntei eu.
—Sim... do senhor... Por minha parte não lhe dei a elle motivo algum de abandonar uma casa, em que entrava como parente... O que fiz foi interpôr as minhas supplicas com o senhor Paulo e com elle para que não tivessem desintelligencias em que soffresse a minha reputação.
—A sua reputação é invulneravel...
—Não é tanto assim... A vinda frequente do senhor Paulo, e a ausencia completa de Alvaro de Sousa, é motivo de murmuração na visinhança.
—Quer com isso dizer que não a sacrifique á murmuração dos visinhos?
—Escuso lembrar á sua honra esse dever. O senhor deve ser o primeiro a lembrar-se da susceptibilidade em que estou na presença d'um mundo que não distingue as mais honestas das mais torpes intenções...
—Está raciocinando com admiravel prudencia, senhora D. Rosa!... Quer em summa dizer que não devo vir a sua casa...
—Não digo tanto; mas devo pedir-lhe que seja menos frequente nas suas visitas...
Comprehendi-a...
E ergui-me d'um impeto para retirar-me. Parece que o coração se me tinha despegado no peito. Ouvi um zunido estranho, que me fazia latejar a cabeça em dolorosas pontadas. Era tudo escuro diante de meus olhos, e não havia em mim sensação que me não fizesse recear uma demencia.
Sahi, e, só muitos passos longe d'aquella casa fatal, me lembrou a retirada boçal que fizera. Como foi possivel que eu não respondesse áquella mulher?! Que indignação, ou que nobreza d'alma foi a minha, que me não inspirou uma palavra que a fizesse córar?! Será isto uma devassidão moral, que supporta impassivel todas as offensas? A longa desgraça petrificou-me? Um amor, todo sancto, todo saudade, o amor de Helena, dous annos puro no sacrario do meu coração, fez-me cynico?
Tenho-me hoje feito estas perguntas. É um tormento não poder responder. Não posso. Não sei o que sou, nem o que é aquella mulher!
Seria uma desgraça, um cancro incuravel na minha alma a certeza de que ella é tão infame como se me ostenta!
Vejamos se posso absolvel-a... Oh! eu queria absolvel-a, sem deshonra para mim, nem para ella!... De que modo?...
Ha, por ventura, uma intriga? Qual? Por quem? E com que fim?
Não sei, não posso comprehendel-a.
Disse-me ella que nunca me confessou amor! Será isto verdade? Fui eu que me illudi? Então, aquella carta, aquella livre explicação d'um affecto repentino... foi tudo um sonho?! Terei eu mentido a v. exc.ª? A cópia da carta que lhe enviei, foi uma ignobil impostura?...
Como é especialmente horrivel a minha situação! Como eu, d'um lance d'olhos, vejo todos os casos em que um homem póde suicidar-se na sua honra cuspindo na face d'uma mulher!...
Esta situação não póde assim durar... Eu preciso ouvil-a... Ella ha de saber colorir a sua depravação d'outro modo... Eu quero até que ella se defenda, porque vai ahi n'essa defesa a salvação do meu amor proprio... Que dirá?... Que terei eu que responder-lhe?
Minha boa amiga, ha uma conspiração sobrenatural contra mim... Eu receio, hoje mais que nunca, uma demencia. Lamente o seu infeliz amigo
Paulo.
IX
2 de novembro
Tudo está perdido.
Rosa Guilhermina vai sahir do Porto. D. Anna do Carmo faz parar, ha quatro dias, a carruagem á porta de sua filha. Alvaro de Sousa reconciliou-as. Leia v. exc.ª essa carta, que recebo n'este momento:
«Confidente de minha amiga Rosa Guilhermina, devo dizer a v... que as suas visitas a esta casa, emquanto ella fôr minha hospeda, são bastante prejudiciaes á futura felicidade d'esta senhora. Sua mãe, informada das relações que o chamam a minha casa, obriga Rosa a sahir do Porto. Suspeito que a sua direcção não pare aqui em Portugal.
«Da parte de v..., tanto eu como ella esperamos a cavalheira prudencia, que o seu bom caracter nos afiança. Se a ama, como devo acreditar das cartas que lhe escreve, desvele-se em não prejudical-a. Até aqui a sua união com a filha sem mãe, seria possivel. Hoje que D. Anna do Carmo reconhece sua filha para eleval-a até onde o dinheiro a collocou, declaro-lhe, com pesar meu, que serão, além de inuteis, nocivos todos os seus esforços.
«Com sincera estima
«De V...
«Veneradora affectuosa,
«Maria Elisa.»
Ora aqui tem, minha boa amiga, o artista em lucta com a sociedade. Ella ahi vem pôr-me um pé, segunda vez, no pescoço! Cá sinto já a dôr vilipendiosa, e nem sequer sei já sorrir-me, quando a soberba me estende na face uma bofetada! É preciso ser homem, antes de tudo. Quero tirar nobreza da minha vilania! Esta dôr moral é mais forte que a outra. Sinto desvanecer-se o amor, e só tenho alma para compulsar as agonias d'uma paixão incomparavelmente maior. Cerra-se uma ferida; mas creio que me abriram outra incuravel, rasgando-me a antiga cicatriz.
Hoje preciso da vida, porque é impossivel que eu não tenha a minha hora de vingança...
Vou sahir de Portugal... não porque me reconheça tão pusillanime que receie aqui uma consumpção moral... Não é isto... é que debaixo d'este céo não ha para mim um anjo bom que me auxilie n'esta peleja desigual com o meu inseparavel demonio.
Tenho dinheiro, que me é inutil aqui. Preciso desperdiçal-o... Quero tocar a extrema da miseria, para que a necessidade me faça artista, e o trabalho me salve d'estes ocios despedaçadores. Não sei onde irei... nem mesmo quero sabel-o... De qualquer parte, minha querida amiga, virá uma minha carta pedir-lhe uma lagrima. Quando a não receber... quando o silencio lhe afigurar que a sua amizade fez um ingrato, poderá v. exc.ª dizer: «Aquelle desgraçado, de quem fui tão amiga, e que tanto deveu ás minhas consolações, morreu!»
E v. exc.ª poderá então louvar a Deus, que encravou a roda do meu infortunio. Poderá agradecer-lhe, como unica pessoa que deixarei no mundo com o meu nome no coração, a graça da morte concedida ao talvez primeiro homem, que não teve cinco minutos de felicidade na demorada existencia de vinte e seis annos.
N'este momento ha em mim alguma cousa sobrenatural. Não amo Rosa Guilhermina; mas tambem a não detesto! O que eu muito queria era o segredo d'aquella indole, porque eu não seria acreditado se contasse a transição do amor ao desprêso, a infame mentira que me arrancou aos braços d'um cadaver para me lançar nos da desesperação.
Deixal-a! Quero até pedir a Deus... a Deus! a desgraça, que é a mãe da piedade! Sinto-me religioso, porque, acima d'estas torpezas, ha de necessariamente existir um Creador, que deixou aqui a dilacerarem-se o mal e o bem. Este Creador deve ser juiz, e eu começo a temêl-o desde este momento... Quero, pois, pedir a Deus que proteja o futuro de Rosa Guilhermina. Os anjos vão com ella. Esta expressão do povo é a mais expansiva e tocante que a minha alma pode dar-lhe. A derradeira consolação do infeliz é perdoar. Eu perdôo... Offereço o meu coração para todos os punhaes; curvo a minha cabeça a todas as desgraças; dobro o meu joelho a todas as violencias, e prometto de nunca mais chamar infames os instrumentos, que obedecem á vontade superior do grande motor da vida, e da morte, da honra, e da deshonra.
Não tenho coragem de abraçal-a, minha cara irmã. Adeus.
De v. exc.ª
Amigo de toda a vida,
Paulo.
X 5
Roma, 4 d'abril de 1825
Minha prezada amiga
Eu tinha esperanças na minha convalescença moral. O coração, aturdido por padecimentos tumultuosos, cansado e endurecido por cicatrizes de golpes sobre golpes, adormecera extenuado... Eu principiava agora uma nova estação na minha vida. A insensibilidade promettia-me uma tranquilla vegetação. Adormeceria sem lagrimas; acordaria sem sobresaltos; veria tudo descórado em redor de mim; abriria para tudo, que me cerca, estes olhos de estatua, sem culto para o bello, nem asco para o repugnante.
Este ultimo baluarte sinto-o esboroar-se debaixo dos pés. Á convalescença da alma segue-se a desorganisação da materia.
Estou doente d'uma enfermidade que eu sentia, ha annos, fermentar-se-me no coração. Muitas vezes sentia umas palpitações extraordinarias, e depois dores agudissimas, um suor copioso, um mal-estar physico e moral, um mixto de aborrecimento e desesperação, que eu attribuia sempre á inconsolavel viuvez da minha alma.
Este padecimento, nos primeiros mezes da minha viagem, diminuiu até se extinguir. N'outro tempo, não se me dava sentir aggravar-se o mal; mas, agora, queria vêr-me livre, queria viver muito n'este marasmo de todos os sentidos.
Não o quiz a Providencia. Ha quinze dias que soffro muito. Dizem-me que tenho uma aneurisma. Não sei o que é... É a morte, que me fugiu quando eu a chamava, e me chama quando eu lhe fujo. Não posso dizer-lhe que bem vinda seja!
Mandam-me a ares patrios... Eu não sahirei, já agora, d'aqui... Este conselho da medicina é um futil subterfugio.
A minha doença estudo-a nos livros onde aprendem a cural-a os medicos. É inevitavel a morte... Póde-se assim viver longos annos; mas eu, assim, não desejo viver...
É lamuria de mais por uma cousa tão transitoria como a vida!... Eu devo ser superior a esta pouca materia que se dissolve no dia seguinte áquelle em que o espírito planisa mil prosperidades. Não me deve ser penoso morrer, porque eu não tinha previsto felicidade nenhuma. O meu futuro seria uma atonia glacial, uma sensibilidade de morte no coração, e vida na apparencia... Viver assim, entre os homens, ou entre cadaveres, que importa?... Morrerei resignado.
Agora posso fallar-lhe de tudo, porque tudo me é indifferente. Levanto, hoje, a suspensão que impuz á sua bondade, minha amiga. Póde fallar-me de Rosa. Que é feito d'essa mulher?
Incommoda-me muito o escrever. Prohibem-m'o; mas a prohibição não seria obedecida, se a cabeça me deixasse... Sinto um desprazer semelhante á nausea. É um esvahimento de cabeça, e uma lassidão em todo o corpo, que só posso attenuar com o uso do opio, que me entorpece completamente. Adeus.
De v. exc.ª
Amigo do coração,
Paulo.
RESPOSTA
Porto, 6 de maio de 1825
Meu bom amigo
Eu peço a Deus que lhe sosegue a imaginação. V... suppõe-se mais doente do que realmente está. O seu ardente espirito engana-o. Não se entregue ao terror da morte: viva, porque esse medo é signal de que a vida ainda lhe é cara.
Espero ainda vêl-o em Portugal, esquecido dos seus passados dissabores, e vivendo para a felicidade de pessoas suas amigas.
Quando v... perder um falso preconceito em que tem a sociedade, verá que o seu elevado merecimento lhe grangeia estimas, e o seu bom coração encontrará, por ventura, outro digno d'elle.
Não quero que se lembre da morte!
Dava-me tantas esperanças de o vêr feliz, na sua penultima carta, e agora parece que capricha em fazer-se desditoso, communicando á sua extremosa amiga as suas tristes previsões!
Bem sabe com que amizade lhe fallo. Affiz-me a tratal-o como irmão, e não saberia amar com mais ternura um filho. Quando perdi um esposo, na flôr dos annos, e uma filha que elle me deixou nos braços, tambem eu, senhor Paulo, me julguei morta para tudo. Sentei-me no leito d'onde vira sahir o cadaver de meu marido, e esperei ahi a morte. Abracei-me ao berço vasio de minha filha, e pedi ao Senhor a esmola de uma mesma sepultura para tres entes que deviam ajuntar-se.
Encontrei-o ao meu lado, chorando comigo a perda de Helena, senhor Paulo, e os seus nobres padecimentos vieram minorar os meus. V... fallou-me do céo, da eternidade, da perpetua união das almas no seio de Deus, e eu acreditei-o. Como as suas palavras me vinham sanctificar a minha dôr no coração, gravei-as ahi, e a sua imagem entrou lá com ellas para sempre.
Não sei se o amei; mas, se o amor não era aquella extremosa amizade, que lhe consagrei, e consagro, então não sei o que é o amor.
Não era isso o que accende o ciume, porque esse não o senti eu nunca. O seu triste episodio com Rosa contristou-me, porque desde o principio prophetisei desventuras. Realisaram-se muito além do meu agouro.
Nunca lhe fallei assim, porque... deixe-me tambem ceder a não sei que triste e mysteriosa inspiração... parece-me que o não verei mais... isto é uma loucura, uma allucinação, mas o coração sente-a tão forte, que eu não posso suspender as lagrimas... Nunca lhe fallei assim, porque v... tem hoje vinte e sete annos, e eu trinta e sete... As desgraças não me poderam ainda envelhecer de todo, e eu recearia enganal-o, fazendo-o nutrir, a respeito da minha amizade, alguma falsa supposição, que me poderia fazer muito desgraçada, ou muito feliz.
Esses receios passaram. Agora conheço que não ha commum entre nós senão uma amizade illimitada até á honesta confiança. Nunca podia-lhe ser outra cousa...
Fallei já muito de mim. Quer que lhe falle de Rosa?
Depois da sua partida, a filha de Anna do Carmo foi viver na companhia de sua mãe, levando comsigo a viuva do negociante da rua das Flôres. Encontrei-as em casa do D. Antonio de ***, e achei-as ambas bellas.
Maria Elisa trazia douda a cabeça de S*** C***, Rosa Guilhermina, um pouco triste, recebia com indifferença o cortejo teimoso de Alvaro de Sousa. Por causa de Maria Elisa houve pequenas miserias de salão, ciumes senis, com que os nossos velhos se inculcam rapazes. Felizmente, não lhes falta zêlo para não deixarem transpirar as fidalgas impudencias, que sabem occultar nos seus solares.
Agora receba uma novidade, que não deve já ferir a sua vaidade, nem mesmo alvoroçar o seu coração.
Rosa Guilhermina vai casar-se.
Quer saber com que neto de trinta avós?
É um neto sem avô conhecido.
Não sei se ha seis ou mais annos que Rosa Guilhermina viveu algum tempo em casa do negociante Silva, da rua das Flôres, com quem seu pae, o arcediago de Barroso, a quiz casar.
Rosa namorou-se ahi d'um tal José Bento, filho d'um retrozeiro. Este lôrpa (diz Maria Elisa que o era de grande marca, e eu creio que continúa a sêl-o) estudava latim em casa do Passos, cujo quintal partia com o do arcediago, na travessa do Laranjal ou Bomjardim. Por causa d'ella, e á sua vista, o rapaz foi castigado com uma palmatoria. No dia seguinte, o mestre que o castigou, appareceu morto, e José Bento desappareceu.
Foi para o Brazil, onde se demorou alguns annos, vendendo carnes sêccas. Por fim, morre o patrão, e deixa-o senhor d'uma riqueza que parece extraordinaria, pelo fausto com que se apresentou no Porto.
Ninguem se lembrava já do filho do retrozeiro, que tinha morrido. José Bento de Magalhães e Castro, como elle se assigna, occultou algum tempo o seu nascimento; mas, um dia, apresenta-se em casa de Anna do Carmo, pedindo licença para vêr Rosa Guilhermina.
A viuva apparece; mas não se recordava já das feições do seu primeiro namoro. José Bento declara-se, e offerece-se como marido de Rosa.
Não sei o que se seguiu a isto. O boato do proximo casamento correu logo. O senhor Magalhães e Castro é recebido nas primeiras casas. Alcançou fôro de fidalgo, e trata de edificar no Reimão um palacete com as armas dos Castros e Magalhães. Dizem-me, que, dentro de oito dias, Rosa será senhora de grandes bens de fortuna, e as suas carruagens serão as melhores.
Eu quizera que v... se risse com a fina ironia de talento, e da experiencia, como eu realmente me rio d'estas grutescas evoluções do mundo.
Vai extensa a carta, e parte para Cadiz o hiate que deve leval-a.
Adeus, meu querido amigo. Escreva-me, dizendo que se desvaneceram os seus terrores. Viva para a sua dedicada irmã.
***
XI
Roma, 28 d'abril de 1825
Graças, minha querida amiga! A sua carta é um modelo de que deviam servir-se os raros anjos, que receberam de Deus a divina missão de consolar infelizes.
O meu coração sentira uma estranha alegria, duas horas antes de eu abrir a carta de v. exc.ª Era o presentimento.
Tive uma hora de luz. Respirei o aroma de todas as flôres da vida. Dilatava-se-me o coração. As palpitações eram impetuosas como as do sangue, surprendido pela imagem de uma mulher, que se julga morta, e para sempre perdida.
Era esta justamente a hora em que v. exc.ª devia assim fallar-me. Mezes antes, esta linguagem faria a sua desgraça, que a minha está fadada desde o seio de minha mãe.
Foi minha amiga, quanto podia sêl-o. Fui eu quem lhe esposou o seu coração viuvo d'um esposo e d'uma filha. Eis aqui uma vaidade sancta, que não deshonra um quasi moribundo. As suas revelações, senhora, acolhe-as meu coração como um deposito sagrado que brevemente confiarei ao tumulo.
A minha morte proxima não é uma chimera de imaginação ardente. Já lhe disse que quero viver e não posso... Desfalleço, porque todos os meus esforços são impotentes. Cravo as unhas na aresta do abysmo; mas o corpo resvala, e a queda é infallivel.
Morro aos vinte e sete annos. Vou, envelhecido por toda a sorte de tribulações. Resta-me saber o que é a indigencia: vai muito adiantada a noite da vida para que a conheça. O meu dia eterno vai nascer, e a luz matutina d'esse dia irradiou-se em volta de mim, quando as suas palavras vieram povoar de bellas visões a solidão do meu quarto.
Foi o amor que me matou! Posso dizel-o com toda a ufania d'uma nobre amargura: foi o amor que me matou! Esta grande alma não era para esta sociedade. Offereci-lh'a, despresou-m'a... Lancei-lh'a aos pés... calcaram-m'a... Fez-se-me uma villania, porque eu era muito nobre... conheço que o era, porque tenho perdoado a todos aquelles que me cortaram as carnes até me chegarem ao coração... Não me conheceram, e eu não os conheci a tempo. Foi muito tarde que o mundo se me ostentou, qual é. Eu tinha direitos a ser feliz, embora recebesse a felicidade pela porta da deshonra. Não quiz. A minha pureza custou-me a vida, porque fugi do mundo para a solidão a digerir o fel que me deram, e protestei morrer antes de cuspil-o na face da sociedade.
Aconselho a infamia a todos os desgraçados, senão quizerem o martyrio. Se forem insultados, indemnisem-se. Renunciem educação, honra, pundonor, e dignidade, todas as vezes que a vingança depender da villania, da deshonra, da impudencia, e do descaramento.
Desculpe-me v. exc.ª... Esqueci-me que estava escrevendo a uma senhora, que não resolveu ainda os asquerosos problemas da infamia. A minha cabeça é um vulcão. Não é ainda a demencia que me desvaira, mas póde sêl-o a febre.
Ha tres dias que me não levanto. Estou quasi só. Tenho um medico alguns minutos no dia, um frade portuguez que por aqui anda atraz da salvação eterna, e um criado, que me serve um caldo, e não entende o que lhe digo.
Eis-aqui a minha familia na vespera d'uma viagem infinita... Falta-me aqui uma mulher, que me fosse esposa, mãe, ou irmã. Em Portugal, quando estes ataques me annunciavam a morte, lembrei-me, muitas vezes, que o meu derradeiro olhar encontraria os olhos de v. exc.ª
Aqui, será a sua imagem, o seu retrato, que me sorri, aquelle retrato que v. exc.ª me concedeu a pedido da nossa pobre Helena...
Não posso...
Ah!... esquecia-me dizer-lhe que a historia de Rosa Guilhermina é uma bonita farça... Fez-me sorrir; mas, no coração, lamento-a!... É uma mulher bem trivial!...
Adeus, minha querida irmã... Será o ultimo?...
Paulo.
«—Eis-aqui a ultima carta, que eu recebi de Paulo—disse a senhora, que me confiou a leitura, e as cópias de todas.
«—Que sentia v. exc.ª depois que a leu?
«—O que eu senti?... Nem já me recordo... Isto passou-se ha trinta annos; e a memoria do coração, aos sessenta e seis, está embotada; mas, se quer um facto que lhe exprima melhor que todas as palavras o que eu senti, bastará dizer-lhe que, dous dias depois, parti para Roma...
«—Para Roma!...
«—Admira-se!?
«—Então v. exc.ª amava Paulo...
«—Se o amava!... Não se fazem essas perguntas a uma velha. O senhor ri de mim, se eu deixar fallar o coração, como elle, ainda ha trinta annos, lhe responderia.
«—Eu não posso rir do que a vida tem mais grave e triste...
«—O amor!... diz bem... É bem triste recordal-o; mas o ridiculo manda suffocar as expansões d'um coração, que não envelheceu ainda. Dizem que os cabellos brancos são veneraveis. Se o são, e só nos patriarchas, nos prophetas, e nos apostolos... Quer que lhe diga que amei Paulo? Pois sim... Amei-o muito... Conheci-o, já casada; mas eu fui uma esposa com todas as virtudes, e com a resignação para todos os sacrificios.
A filha do general *** amava Paulo.
A minha casa era o unico local onde se reuniam. Impuz-me esta violencia, e prestei-me ao doloroso serviço de os approximar, porque precisava matar um veneno com outro veneno.
Helena morreu, e Paulo refugiou-se a chorar comigo. Eu e o tumulo d'ella eramos o unico passatempo da sua atormentada existencia.
Enviuvei. Encontrei-o sempre a meu lado. Sondei com muita delicadeza a sua alma, e achei-a fria. Reconheci que era meu amigo, porque eu lhe fallava muito de Helena. Um homem assim não podia amar-me...
«—Porque não lhe revelou a sua alma?
«—Uma mulher, se não está gasta pela libertinagem, ou não é prodigiosamente estupida, nunca faz semelhantes revelações. Se elle me perguntasse se eu o amava, responder-lhe-ia que não, e córaria pela vergonha da mentira, ou pelo remorso da offensa... Dizem-me que as mulheres de hoje são faceis n'essas delações da sua alma. Se não é a moda que as absolve, o pudor de certo não é... Emfim, eu nunca lhe disse que o amava, nem elle me proporcionou occasiões de dizer-lh'o.
Um anno antes de conhecer essa mulher fatal...
«—Quem? Rosa Guilhermina?
«—Sim... Um anno antes de conhecel-a, raras vezes vinha a minha casa. Vivia muito só: dizia-me nas suas frequentes cartas, que vivia namorado da arte, que tinha muitos retratos de Helena, e que roubava á pintura o tempo apenas necessario para visitar-lhe, em S. Francisco, a sepultura.
Relacionado com Rosa, Paulo, sem o pensar, ultrajou-me quanto era possivel!... O ciume devorou-me alguns dias, e eu tive momentos de detestar o infame caracter do infeliz moço... Habituada, porém, a dominar-me, afivelei outra vez a mascara, e recebi-o com a mesma graça em minha casa para ouvir-lhe as expansivas apologias de Rosa Guilhermina.
Tenho remorsos de ter sentido uma cruel alegria, quando essa mulher o despresou...
«—Naturalmente... alguma intriga...
«—Urdida por mim?...
«—O amor, muitas vezes, obriga...
«—A praticar villezas? O amor nobre, não... Eu não urdi intrigas... Rosa despresou-o; porque o seu caracter era o caracter de sua mãe... Anna do Carmo nascera nas palhas, fôra amante d'um padre, fôra adultera mulher d'um livreiro, fôra repellida de casa de sua filha, e recebera-a por fim, nos seus salões, sem vergonha do seu passado, nem resentimento da sua dignidade. Filha de tal mãe, não podia apreciar o amor de Paulo, que amára uma mulher, que morrera por elle.
Ia-me esquecendo o conto... Fui a Roma; cheguei lá vinte dias depois que recebi a carta.
«—Encontrou-o?
«—Sepultado... Morrera seis dias antes... Ao lado da sua cabeceira estava o meu retrato... É aquelle que alli se vê.»
Reparei... Ninguem diria que esta senhora podia ter sido tão bella!
Cahiam-lhe duas a duas as lagrimas... Eu quiz divertil-a d'esta dolorosa situação, perguntando-lhe:
«—Demorou-se em Roma?
«—Tres dias... Voltei a Portugal, depois... Deixe-me chorar, porque ha muitos annos que não fallei a ninguem n'este homem... Quer saber o resto d'esta historia, que faz o seu romance?... Essa senhora de que faz menção no seu prologo, póde contar-lh'a.
«—Com menos graça que v. exc.ª...
«—Pois eu lhe digo: Rosa Guilhermina morreu, ha seis annos em Lisboa, com o titulo de viscondessa de ***. Seu marido ainda vive... É um dos mais ricos proprietarios do paiz...
«—E Maria Elisa?
«—Essa mulher perdeu-se... Foi amante de S*** C***, que deu escandalo no Porto, e perturbou a tranquillidade da sua casa, e da casa das suas amantes, que eram quasi todas casadas. Depois, como elle morresse, Maria Elisa, que vivera na companhia de Rosa, reagiu contra os conselhos de José Bento, e abandonou a amiga para entregar-se a uma vida dissipada sem ao menos a colorir com as variadas tinturas da hypocrisia. Tocou o extremo grau de miseria; mas d'esta miseria prosaica e villã, e que não póde ser historiada n'um romance. Não era fome nem nudez. Era a negação para todos os sentimentos d'honra. Quando desceu tão abaixo recebeu uma boa mesada de Rosa; mas dissipou-a com amantes. Por fim envelheceu. Rosa tinha morrido, e o visconde de ***, que a soccorrera estimulado por sua mulher, abandonou-a inteiramente.
«—E ainda vive?
«—Morreu já depois que o senhor principiou o seu romance. Foi justamente no dia em que sahiu o quinto folhetim na Concordia.
«—Morreu miseravelmente?
«—Não, senhor. Quem lhe prestou os ultimos soccorros fui eu. Não lhe faltou uma cama, um medico, uma enfermeira, e um padre até ao seu ultimo momento.
«—Devia ser terrivel, nos ultimos dias, o olhar d'essa mulher para o passado!...
«—Creio que não... A desgraça desmemoria... Por não sei que favor da Providencia, a mulher que se degrada não tem já o senso intimo da sua dignidade perdida. Cahiu, do leito á sepultura, impassivel como a pedra que tomba insensivelmente do alto da serra ao fundo do abysmo...
«—Esqueceu-me perguntar-lhe como viveu Rosa com José Bento...
«—Honradamente, e parece que feliz.
«—Deixou filhos?
«—Do segundo marido nenhum.
«—E aquella Assucena, que tão linda me pintaram? Deve hoje ter trinta annos...
«—Morreu ha dous... Quer saber a vida d'essa mulher?
«—Desejava...
«—Mas tem de fazer outro volume.
«—Pois a vida de Assucena dá para tanto?
«—É um triste romance... Ha de escrevel-o, e intitulal-o: A NETA DO ARCEDIAGO.
FIM
1 Foi assim chamada a assembleia de illustrações scientificas na França, em que avultavam a marqueza de Lafayette, Lacralpenede, M.me de Sevigné, Jullie de Angennes, e outras que se davam o titulo de preciosas, baptisando-se com nomenclaturas gregas, e praticando em linguagem privativa d'ellas. Molière, o grande espirito, que espancou da França o ridiculo com o ridiculo, pôz esta gente em scena, nas comedias—As Preciosas Ridiculas, e As Mulheres Sabias. O hotel de Rembouillet não resistiu a Molière.
2 O já morto Joseph Gregorio Lopes da Camara Sinval.
(Nota da 2.ª edição.)
3 No Porto, onde nasceu Garrett, invocaram-se todos os Antonios Josés coevos para idearem um monumento a Garrett!... Não se fez o monumento; mas ficou um de vergonha na memoria dos vivos, e bom é que passe além. (Nota da 2.ª edição.)
4 A Neta do Arcediago, já publicada. (Nota da 2.ª edição.)
5 Não interessam no romance algumas cartas, que se não publicam. Escriptas de Lisboa, Cadiz, Barcellona, Paris, Genova, e Milão, quasi todas são descripções locaes. Vê-se que Paulo, em todas ellas, só muito de relance, falla em, cousas passadas. Se é acinte, se naturalidade, não o sabemos nós. A sua amiga do Porto, diz-nos que tambem muito de proposito, se lhe escrevia, nem ligeiramente lhe fallava de Rosa. A carta, que publicamos, é a vigesima da collecção, escripta, segundo se vê da data, cinco mezes depois da sahida de Paulo.
*** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK A FILHA DO ARCEDIAGO ***
Updated editions will replace the previous one—the old editions will be renamed.
Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright law means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to copying and distributing Project Gutenberg™ electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG™ concept and trademark. Project Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you charge for an eBook, except by following the terms of the trademark license, including paying royalties for use of the Project Gutenberg trademark. If you do not charge anything for copies of this eBook, complying with the trademark license is very easy. You may use this eBook for nearly any purpose such as creation of derivative works, reports, performances and research. Project Gutenberg eBooks may be modified and printed and given away—you may do practically ANYTHING in the United States with eBooks not protected by U.S. copyright law. Redistribution is subject to the trademark license, especially commercial redistribution.
START: FULL LICENSE