II

Por esses dias chegou carta de Pernambuco, incluindo ordem, primeira via, 48$000 réis, dez moedas de ouro. Feliciano mandava 12$000 réis para as arrecadas da sobrinha, e o resto ao irmão. Dizia-lhe que estava a liquidar para vir, emfim, descançar de vez,—que já tinha para os feijões. Recommendava-lhe que fosse deitando o olho a uma ou duas quintas que se vendessem até trinta ou quarenta mil cruzados; que se ainda houvesse conventos á venda, os fosse apalavrando até elle chegar.

—Quarenta mil cruzados, com um raio de diabos!—exclamou o Simeão, e foi mostrar a carta ao padre-mestre Roque, ao Trêpa de Santo Thyrso e ao ex-capitão mór de Landim; e, como encontrasse na feira o dono do mosteiro dos benedictinos, o Pinto Soares, um deputado gordo—a rhetorica viva do silencio mais facundo que a lingua, d'uma grande pacificação somnolenta—perguntou-lhe se queria vender as quintas dos frades, que tinha comprador. O Pinto Soares, como um homem que acorda com espirito e um pouco de atheismo, respondeu-lhe que não vendia para não transmittir ao comprador a excommunhão que arranjára comprando bens das ordens religiosas. Mas o Simeão, em materia e raios do Vaticano, tinha na sua estupidez a invenção de Franklin. Continuava a perguntar a toda a gente se sabiam de conventos á venda, ou quintas ahi para quarenta mil cruzados.

O Zeferino das Lamellas, o pedreiro que se julgava noivo por ter o negocio fechado em um conto, quinhentos e pico, procurou o lavrador para se cuidar dos banhos. O velhaco, depois de o ouvir com ares de abstracção palerma, disse-lhe a mastigar as palavras:

—Home, o caso mudou muito de figura. Então você pelos modos ainda não sabe que vem ahi o meu irmão de Pernambuco comprar quintas e conventos?

E começou a desenrolar o nastro gorduroso de uma carteira de coiro em que tinha recibos da decima, um aviso da junta de parochia para pagar a congrua, uma conta de azeviche contra maus olhados, uma oração manuscripta contra as maleitas, um officio antigo que o nomeava regedor, de que fôra demittido pelos Cabraes, uma velha resalva de recrutamento, uns versos que elle recitara no natal, em um Auto do nascimento do Menino, onde elle fazia de rei mago, e finalmente o livrinho de Santa Barbara, muito cebaceo, com um lustro azulado de graxa e a carta do Feliciano tão suja que parecia ter estado em infusão de pingue.

—Você ainda não ouviu fallar d'esta carta!?—perguntou com sobranceria impertinente, dando saliva aos dedos para a desdobrar.—Não se falla n'outra causa. Toda a gente sabe que vem ahi do Brazil o meu Feliciano para comprar quintas.

—Já me constou—disse o pedreiro,—mas você roe a corda á conta d'isso, acho eu...—E como o lavrador hesitasse:—O negocio da rapariga está feito ou não está feito? Os homens conhecem-se pela palavra e os bois pelos cornos. Ponha p'ra'hi o que tem no interior.

O Simeão mascava, torcia-se, mettia com dois dedos a carta estafada na carteira e resmungava:

—Você, emfim, isto é um modo de fallar, como o outro que diz; você bem entende que ... sim...

—O que eu entendo physicamente fallando é que você não me dá a rapariga.

—Deixe vêr, deixe vêr o que diz o meu irmão—tartamudeava.

—Sabe você que mais?—volveu iracundo o architecto dando com o ôlho do machado n'um canhoto.—Você é de má casta. Não tem palavra nem vergonha n'essa cara estanhada. Você é da geração dos Travessas da Serra Negra, e basta... Não lhe digo mais nada...—Allusão pungente a um tio do Simeão, o Bernabé, capitão das maltas de salteadores que infestaram em 1835 aquella serra.

—Veja lá como falla...—interrompeu o lavrador ferido na sua linhagem.—Você não me deite a perder...

E o outro, n'um impeto de consciencia robusta:

—Você é um safado. É o que lh'eu digo. Não guarda palavra em contracto que faça. Eu já devia conhecêl-o. Faz para as matanças seis annos que você justou comigo uma porca por quatro moedas e foi depois vendel-a ao Antonio do Eido por mais um quartinho. Lembra-se, seu alma de cantaro?—E n'uma irritação crescente:—Se você não fosse um velho, dava-lhe com este machado na caveira.—É muito esbandalhado nos gestos, com sarcasmo:—Guarde a filha que eu hei de achar mulher muito melhor que ella pelo preço, ouviu você? que leve o diabo a burra e mais quem a tange, como o outro que diz. Livrei-me de boa espiga. De você não póde sahir cousa boa; e mais da mãe que ella teve, que já lá está a dar contas...

E o lavrador com extremada prudencia e na pacatez de um grande espirito de ordem e paz:

—Você não tem que desfazer na minha filha, ouviu?

—Ouvi, que não sou mouco. Ainda hontem a topei na bouça do Reguengo de palestra com o estudante de Villalva. Espere-lhe a volta. A songuinha, que não olha direita p'ra um home, que anda alli esmadrigada de cabeça ao lado, lá estava de mão na ilharga a dar treta ao estudante, aquelle páo de encher tripas, que ha-de ser mesmo um padre d'aquella casta! Olhe se elle lh'a quer para casar... Pois não quizeste?—e arregaçava a palpebra do olho esquerdo mostrando o interior inflammado com uns pontos amarellos, purulentos, indicativos de insufficiente lavagem, um tregeito de garotice.—E continuava:—Quem lhe déra dois pontapés, n'elle a mais n'ella!—e muito rubro de colera dava pancadaria nas pedras, nas raizes nodosas dos castanheiros, e mettia grande terror no animo do Simeão quando faiscava lume nos calhaos com a percussão do machado.

Esta situação promettia acabar pela fuga prudente do pai de Martha, se o estudante de Villalva não assomasse ao fundo do castanhal com uma matilha de coelheiras que ladravam a um porco muito erriçado, que as esperava com o focinho de esguelha, bufando e grunhindo. O caçador chamava os cães, assobiava, fazia uma bulha convencional para que a Martha o ouvisse.

Elle não tinha visto o pedreiro; os cães é que o viram e deixaram o porco destemido para atacarem o homem, com uma velha birra que lhe tinham. O Zeferino, n'outra occasião, segundo o seu costume, desprezaria a arremettida da matilha; mas, n'aquella conjunctura de odio ao caçador, esperou a canzoada com o machado em riste, empunhava o cabo com as mãos cabelludas, e fazia, com o corpo inclinado, avanços provocadores. José Dias chamava os cães obedientes; mas o Zeferino, muito azedo, engelhando na cara uns tregeitos de basofia, dizia sarcastico:

—Deixe-os vir, deixe-os vir, que o primeiro que chega faço-lhe saltar os miolos á cara de você.

Que se accommodasse, conciliava pacificamente o estudante—que os cães não tinham outra falla. E o pedreiro insistente, muito arrogante:—que venham para cá, e mais o dono, o caçador de borra! e dizia palavradas canalhas, muito damnado por que vira apparecer a Martha na varanda, a fazer meia com a cesta do novello no braço.

—Ó snr. Zeferino, falle bem, ponha côbro na lingua—advertiu o José Dias com uma serenidade de máo agouro—quando eu lhe ladrar então se fará com o machado para mim. Os cães ladraram-lhe, eu chamei-os, que mais quer você, homem? Siga o seu caminho.

—O meu caminho? o meu caminho é este—disse batendo com o machado na terra.—Quer você mandar-me embora d'aqui? Ora não seja tolo.

A presença da môça enfurecia-o; contra o seu costume, sentia-se valente. O amor, como um vinho indigesto, dava-lhe a coragem interina dos bebedos, e berrava:

—Se é homem, venha para cá! Você manda-me sahir d'aqui, seu pedaço d'asno?

E o estudante, já amarello:

—Eu não o mando sahir d'ahi, nem lhe consinto que me chame asno. Olhe que eu largo a espingarda, tiro-lhe das unhas o machado e dou-lhe com elle.

—Ó alma do diabo!—exclamou o pedreiro crescendo para o caçador.

N'isto, um dos cães, atravessado de cão de gado e cadella coelheira, que aprendêra a morder nas occasiões rezoaveis, atirou-se-lhe ao assento das calças de estopa e puxou até lhe descobrir a epiderme da nadega esquerda.

O pedreiro floreava debalde o machado; os golpes cortavam o ar, e nem de leve apanhavam o cão, que dava pulos de esconso, atacando-o pela nadega direita. A restante matilha fraternisára com o outro e juntavam os focinhos num complexo de dentuças minacissimas com os olhos sanguineos cravados nos movimentos do machado. José Dias, no entanto, espancava a cainçada, e Martha não sabia se havia de descer para ajudar o pai a accommodar a bulha, ou se havia de cahir na varanda a rir-se. Ella sentia-se envergonhada do espectaculo que exhibia a calça esfarrapada; mas não havia pudor que resistisse áquillo. O pedreiro sabia que o cão lhe chegara um pouco á calça; mas, no calor da lucta, não sentira esfriar-se-lhe a pelle descoberta, nem se lembrou que andava sem ceroulas. Depois, como sentisse uma frescura extraordinaria na cutis, exposta ao contacto da atmosphera, levou a mão conscienciosamente ao sitio, e achou em si aquelle specimen obsoleto do Adão primitivamente innocente. No entanto, Martha, não podendo já comsigo, entalada de riso, fugira da varanda e atirára-se de bruços sobre a cama, a rebolar-se, a espernear como se tivesse uma colica. O estudante retirou-se assobiando á matilha ainda refilada ás nadegas do homem. O Simeão coçava-se com as dez unhas e dizia velhacamente commovido:

—Mêtta-se ahi na córte da egua que eu vou-lhe buscar umas calças, seu Zeferino, ou dá-se-lhe ahi quatro pontos p'ra remediar. Dê cá as calças, e não se afflija...

O pedreiro respondeu-lhe porcamente e de modo tão trivial, que o outro lhe replicou:

—Vá você!

E metteu-se em casa como quem receava contra-replica menos suja e mais dura.

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