III

O Zeferino era afilhado do morgado de Barrimáo, um major de cavallaria, convencionado em Evora-monte, miguelista intransigente, mas cordato. Vivia no seu escalavrado solar com um irmão egresso benedictino. Fr. Gervasio, muito cevado e inerte, continuava em casa a sua missão monastica. Era um contemplativo. Não lia senão no livro da Natureza. Se não dormia, estrumava o seu vegetalismo com muitos adubos crassos de toicinho e capoeira, com um grande farfalhar de mastigação, porque dispunha de dentadura insufficiente. Tinha outro signal ruidoso de vida—era um pigarro de catarrhal chronica, arrancado dos gorgomilos com tamanho estrupido que parecia ao longe o grito rouco de um estrangulado, no 5.° acto de um drama de costumes. A velha creada da cozinha, muito flatulenta, nunca pudéra affazer-se ás explosões d'aquella garganta escabrosa de mucos empedrados. Quando o grasnido asperrimo de pavão lhe feria os ouvidos, reboando nos concavos tectos dos salões, a mulher estremecia e raras vezes deixava de resmungar:—Que mêdo! credo! diabos leve a esgana do home, Deus me perdôe!

De dois em dois mezes appareciam em Barrimáo dous egressos de Cabeceiras de Basto, companheiros de noviciado de fr. Gervasio. Juntavam-se os tres amigos em uma intimidade de palestras saudosas. Com intercadencias mudas de poetica tristeza, commemoravam os seus conventuaes fallecidos, rezavam juntos pelos seus breviarios benedictinos; depois, a passo cadencioso, claustral, iam para a mesa com o recolhimento prescripto pela Regra do patriarcha. Ahi, pegava de puxar por elles a natureza objectiva, e dava-lhe horas de salutar esquecimento do passado irreparavel. Gorgolejavam copiosamente os vinhos engarrafados, traiçoeiros, da companhia, em que fr. Gervasio derretia a prestação; porque, de resto, a mesa do mano morgado era farta e a sua bolsa generosa para as moderadas necessidades do egresso.

O major Zeferino Bezerra de Castro não tinha grande casa; mas, como era solteiro e quinquagenario, fazia de conta que os bens lhe haviam de sobejar á vida, vendendo os allodiaes e empenhando, se necessario fosse, o morgadio, que era insignificante. Concorria com vinte moedas para as miseraveis 1000 libras que o snr. D. Miguel recebia annualmente de donativos de monarchas e dos seus partidarios portuguezes.[1] Festejava dispendiosamente os natalicios do rei, convidando a jantar os realistas notaveis da comarca; e, contando os annos da proscripção, ia calculando a patente que lhe competia quando o soberano legitimo se restaurasse. Correspondia-se com alguns camaradas, esquecidos e atrophiados nas aldeias, o general Povoas, o Bernardino, o Magessi, o Montalegre, o José Marcellino. Mas as cartas quem lh'as redigia era o mano frade, recheando-as de trechos de politica de pulpito—resultado das suas digestões morosas, contemplativas—que serviram de ornamento nas columnas do Portugal velho, periodico miguelista da época.

N'aquelle anno, por meado de 1845, espalhára-se no ambiente dos realistas, como um aroma de jardins floridos, o boato de que vinha o snr. D. Miguel. O seu enorme partido sentia-se palpitar no anceio d'aquelles vagos anhelos que estremeciam as nações pagans ao visinhar-se o prophetisado apparecimento do Messias. Affirmam-no os Santos Padres, e os padres do Minho asseveravam o mesmo a respeito do principe proscripto. Fr. Gervasio recebia do alto da provincia cartas mysteriosas d'uns padres que parochiavam na Povoa de Lanhoso e Vieira. Era alli o foco latente do apostolado. N'aquelles estabulos de ignorancia supersticiosa é que devia apparecer, pelos modos, o presepio do novo redemptor. Citavam-se prophecias apocalypticas de frades que estavam inteiros sob as lages das claustras. Convergiam áquelle ponto missionarios de aspectos seraphicos, olhando para as estrellas como os magos e os pastores da Palestina. O frade mostrava as cartas ao irmão e dizia-lhe: «Elle ha coisa...»

—Mas muito grande!—corroborava o major com cabeçadas affirmativas muito exageradas.

—A Russia move-se, é o que é—affirmou fr. Gervasio, correlacionando a iniciativa de Lanhoso com a propaganda autocratica da Russia.

Em um d'estes dialogos, em que havia desabafos, exuberancias de jubilo, interveio o Zeferino das Lamellas, o pedreiro afilhado do major. Vinha contar o caso do Simeão de Prazins e a péga que teve com os cães do Dias de Villalva. Mostrava a calça remendada—que por pouco lhe não entravam no coiro os cães—dizia, e protestava vingar-se. O egresso pacificava-o; que deixasse lá a rapariga e mais o estudante; que se fosse preparando para desembainhar a espada de seu pai em defeza do throno e do altar. E o major:

—Estamos chegados a ellas, Zeferino.

E o pedreiro, esfregando as mãos coreaceas, que ringiam como duas lixas friccionadas:

—A elles, snr. padrinho! A espada vai-se amolar... Vou pedil-a ao velho!

O pai de Zeferino, o Gaspar das Lamellas, tinha sido alferes do 17 de linha; e, em 1834, como o perseguissem os liberaes do concelho por pancadaria e testemunhos falsos nas devassas de 28, andou foragido alguns mezes. Sequestraram-lhe os bens; e o filho que já era muito barbado e não tinha modo de vida, fez-se pedreiro. Depois, applacadas as furias dos vencedores e restabelecida a justiça, restituiram ao Zeferino as terras devastadas. O ex-alferes sahiu do seu esconderijo, e recolheu-se a casa com a espada muito cheia de verdete, dizendo que havia de laval-a no sangue dos malhados. Em 1838, dia de natal, embebedou-se despropositadamente e sahiu para a rua a dar vivas ao snr. D. Miguel. Outros piteireiros, do mesmo credo, e affectos ás velhas instituições, responderam aos vivas com um enthusiasmo homicida. O Gaspar foi buscar a espada, cingiu a banda sobre a niza de saragoça, poz a barretina com os amarellos muito oxidados, e, á frente d'um grupo de jornaleiros e garotos, caminhou para a cabeça do concelho afim de offerecer batalha campal ás auctoridades. Além da espada do caudilho, havia na jolda tres espingardas reiunas; o restante eram foices de gancho encavadas em grossas varas. Um porqueiro colossal floreava uma lamina brunida da faca de matar os cevados. A guerrilha, já engrossada por outros bebedos encontrados nas tavernas do transito, chegou â porta do morgado de Barrimáo, e a clamorosos brados elegeram-o general. Já se ouvia tocar a rebate em diversas torres, á discrição dos garotos destacados. O morgado mandou-lhes dar vinho, e que debandassem, que recolhessem a suas casas, porque iam levar grande tareia inutilmente. O egresso veio a uma janella que abria sobre o atrio, e tentou dissuadil-os do desvario que mais parecia um excesso de vinho que de patriotismo—dizia. Não fez nada. Cada vez mais picado, o alferes, faminto de vingança, bradava que estivera quinze mezes escondido, que lhe tinham estragado a sua casa, e que ia pedir contas aos Trêpas e aos Andrades de Santo Thyrso, uns malhados, cujas cabeças havia de deixar espetadas em pinheiros.

Na villa ouvia-se o toque a rebate. Dizia-se que era incendio. Alguns vadios atravessaram a ponte muito açodados em direcção ás freguezias d'onde soavam as primeiras badaladas. O regedor de Villalva, o pai do José Dias, descia esbaforido do monte do Barreiro a dar parte á auctoridade. Assim que se espalhou a nova em Santo Thyrso, já se ouvia alarido de vozes. A garotagem dava vivas, e guinchava uns apupos prolongados que punham eccos nas margens tortuosas do rio Ave. Os liberaes de Santo Thyrso rodearam o administrador, armados, com os seus criados. Os negociantes com medo de saque tambem sahiram de clavinas. As familias nas janellas faziam clamores, n'uma grande desolação. N'aquella villa lembrava ainda a mortandade do tempo do cerco do Porto, e havia velhos que presencearam outra semelhante no tempo dos francezes. O regedor de Villalva dissera que o commandante da guerrilha era o morgado de Barrimáo. Esta noticia fez augmentar o pavor, porque, se o morgado, serio, prudente e bravo, acceitára o commando dos populares é porque a cousa era séria. Os homens de negocio depuzeram as armas, enfardelaram os valores e fugiram, caminho do Porto. Os proprietarios, os empregados publicos, os officiaes de justiça, alguns que haviam militado e emigrado, desceram á ponte armados em numero de oitenta. Outros seguiram vereda differente para passar o rio. A guerrilha cuja vozeada se aproximava, no trajecto de uma legua, pegou a sua febre a mais de trezentos homens. Era um domingo de festa solemne, consagrado á descida do Filho de Deus, para applacar os barbaros odios do genero humano:—uma grande alegria que passaria despercebida, se o vinho não preparasse as almas a comprehendel-a e sentil-a. Depois, muito communicativa, como se vê. Gaspar das Lamellas emborracha-se ao jantar e faz brindes ao Menino Jesus e ao snr. D. Miguel I. Pica-lhe na caneca, pungem-o saudades do rei, e sahe para o terreiro a dar-lhe vivas. Outros vinhos em ebulição respondem-lhe n'um grito de sinceridade compacta. Trava da espada, que se tingira no sangue de tres batalhas á volta do Porto; entra com elle a convicção em delirio acrisolada pela allucinação da embriaguez. E o arrojo temerario dos grandes guerreiros o que ó senão uma embriaguez de gloria, quando não é uma embriaguez de genebra? Nas guerras civis portuguezas houve ahi um bravo soldado de fortuna que, no vigor dos annos, ganhára as charlateiras de general e uma corôa de conde. Os seus camaradas, mais retardados na carreira por causa da abstinencia, diziam que elle nunca sahira victorioso de campanha onde não entrasse bebedo. Este general, ao declinar da vida, casado e abstemio, não deu uma pagina gloriosa á sua historia, presidiu sem iniciativa, militar nem politica á Junta Suprema do Porto, e fechou o cyclo das suas façanhas a parlamentar em Vieira com o padre Casimiro, o General Defensor das cinco chagas.

Também no cerebro vinolento do alferes das Lamellas rutilavam os relampagos da gloria quando, a brandir o gladio ferruginoso, descia, na vanguarda da guerrilha, o outeiro sobre jacente á Ponte de Santo Thyrso. Á entrada da ponte de páo havia taverna, com as prateleiras alinhadas de garrafas da Companhia, com rotulos.

A multidão parou, avistando gente armada que descia a calçada d'além, ao nivel da quinta do mosteiro de S. Bento. O taverneiro, muito caloteado d'essa vez, disse ao commandante, ao Gaspar, que não cahisse em se metter á ponte.

—Vocês vão cahir ahi n'essa ponte como tordos, o os que não cahirem tem de largar os sócos a fugir—avisava, porque sabia que os de lá eram têzos, e vinham todos armados.

O cabecilha tinha o seu vinho quasi digerido; a bravura começava a ceder ás reflexões sensatas do taverneiro; mas o seu estado maior, uns facinoras da quadrilha que tres annos antes infestara as encruzilhadas da Terra Negra e Travagem, não transigiam, e forçavam-o a beber copos de aguardente.—Que o primeiro que mostrasse os calcanhares ia malhar da ponto abaixo!—protestavam os velhos salteadores do Minho, batendo com as cronhas no balcão.

Entretanto, o administrador do concelho com dous empregados inermes atravessava a ponte. A guerrilha, estupefacta da audacia, esperava-o n'uma attitude pacifica, estupida, um retrahimento de covardia, olhando-se uns para os outros e todos para o alferes. Elle, empurrado pelos valentes, collocou-se á frente, na bocca da ponte, com a espada nua. O administrador chegou muito de passo e perguntou se estava alli o snr. morgado de Barrimáo, que desejava fallar-lhe.

—Que não estava; eu sou o chefe—disse o Gaspar.

—Logo me pareceu que um homem sério, como o morgado, não estaria á frente d'este bom povo enganado—ponderou a auctoridade.—E vocemecê quem é?—perguntou ao chefe.

—Que era o alferes das Lamellas, bem conhecido em toda a parte; que perguntasse aos malhados de Santo Thyrso, a esses ladrões que o perseguiram e lhe roubaram os seus bens.

O administrador, um bacharel, de cabelleira á Saint-Simon, era discursivo e não perdia lanço de eloquencia em casos d'um romanesco medonho. A torrente do rio rugia quebrada pelo triangulo dos pegões. Uma rica e funebre paysagem, cortada de um lado pelos cataventos que ringiam nas cristas das torres do mosteiro, e do outro pela matta verde-negra, erriçada de pinheiros gementes. Um pittoresco cheio de suggestões, d'uma palpitação cyclopica. Depois o enorme auditorio, trezentas cabeças, fluctuando com as boccas muito escancaradas n'uma bestialidade feramente spasmodica de lobos espantados por um archote acceso. O meio era demosthenico, inspirativo. Borbotou-lhe a gôlfos um palavriado discreto, aconselhando a turba a retirar-se aos seus apriscos, á honrada labutação dos seus mesteres, e a não perturbarem com demagogias a pacificação dos animos e a sacratissima inviolabilidade das instituições. Quando o funccionario fechou a parlenda, um dos mais bebedos, quer por chalaça, quer por insufficiente comprehensão dos principios politicos da auctoridade, atirou o chapéu ao ar e exclamou: «Viva o snr. D. Miguel I, rei de Portugal!»

A auctoridade ia replicar; mas a gritaria abafou-o. Elle voltou as costas á canalha, e foi-se com bons exemplos de oradores antigos. Os liberaes, logo que o viram retroceder, entraram na ponte de madeira com um sonoro estrondo de marcha cadenciada.

Capitaneava-os um escrivão de direito, dos 7500, cavalleiro da Torre e Espada, o Lobato, que pedira baixa de tenente no fim da campanha.

Outro bravo, o ex-sargento Lopes, que era guarda-chefe dos tabacos, tinha pedido vinte homens, e atravessára com elles o Ave, na revolta do rio, sem ser visto, na bateira do José Pinto Soares. Elle não podia levar a bem que aquelles patêgos se retirassem sem uma sova pela retaguarda e outra pela frente. Contava com a debandada pela ladeira das mattas, e promettia, lá do alto, escorraçal-os de modo que elles se espetassem entre dois fogos. Os seus vinte homens eram soldados com baixa, guardas do tabaco, e socios aposentados das quadrilhas de 1834—um mixto de politicos, de ladrões e martyres das enxovias.

Os quatro facinoras da horda do alferes, quando viram a marcha firme e solemne dos de Santo Thyrso,—é agora, rapazes!—exclamaram, desfechando as espingardas. Os populares que as tinham, descarregaram as suas, e avançaram, ponte dentro, n'uma arremettida impetuosamente esbandalhada, de rodilhão. Uma das balas prostrára um arrieiro da primeira fila dos liberaes; havia mais alguns feridos que se amparavam gementes ás guardas da ponte. O bravo do Mindello viu cahir morto o seu homem, e, contendo a furia das fileiras n'uma disciplina rigorosa, deu a voz da descarga á primeira, e mandou abrir passagem á immediata, que sustentava o fogo em quanto a outra carregava as armas.

Os pelouros cortavam fundo pelas carnes da populaça. Viam-se homens que fugiam a coxearem, atiravam-se ás ribanceiras, escabujando em arrancos de morte. Os que não tinham espingardas e ainda os que as tinham sem cartuchame, pegavam dos tamancos e galgavam socalcos, buscando o refugio dos pinhaes e carvalheiras.

O alferes sentiu um choque duro de coisa que lhe contundia as costas e lhe apertava o pescoço. Era o Retrinca de S. Thiago d'Antas, o mais feroz da sua malta, que se amparava n'elle, quando cahia varado por um pelouro. Este espectaculo trivial não aterrava o soldado de Ponte Ferreira, das Antas e da Asseiceira; mas dava-lhe as antigas pernas que o serviram n'essas gloriosas batalhas. Tinha cincoenta annos, e fugia ganhando a dianteira aos garotos do seu bando destroçado. Porém, quando elle escalava a ladeira barrenta que se precipita ao sopé do monte, desciam em saltos de bezerros mordidos por vespereiros os seus homens, n'um turbilhão, acossados pelo tiroteio da companhia do ex-sargento Lopes—uns barbaçudos que pareciam gigantes no tôpo da collina, e davam uns berros clangorosos imitantes a mugidos de bois. O dia de juizo!

O Gaspar arripiou carreira e desfilou por uma varzea alagada que ia esbeiçar com o rio. Como a banda do alferes vermelhava ao longe, e a espada a prumo no punho lhe dava uma caracterisação geitosa e provocante para alvejar as espingardas, as balas sibilavam-lhe por perto, chofrando nos pantanos. Alguns homens perseguiam-o chapinando no lameiral, porque o chefe dos tabacos, o Lopes, dizia-lhes: «Ó rapazes, vêde se mataides aquelle diabo que é o cabecilha!» Os mais velleitos levavam-o esfalfado, cambaleando, atortemelado, quando o viram desapparecer de subito entre uma espessa moita de platanos. D'ahi a instantes, abeirando-se á ourela do rio, viram a barretina e a niza de saragoça sobre uns comoros hervecidos; e, a distancia de dez varas, aquelle bebedo immortal atravessava o rio a nado, n'uma tarde de dezembro, com a espada nos dentes, e a banda a tiracollo.

—Ó alma do diabo!—dizia o Patarro de Monte Cordova, cevando a arma com zagalotes para lhe atirar.—Vou matar aquelle pato bravo!

E o mais novo dos quatro, um imberbe que tinha pai:

—Não lhe atire, ó tio Patarro! É um velho, coitado! Não lhe vê os cabellos brancos? Aquelle homem não se deve matar. Elle vai morrer afogado antes de chegar á outra banda. Verá. Que raio de amizade elle tem á espada! Aquillo é que é!

A meio do rio, onde a veia d'agua resvalava mais impetuosa, deixou-se derivar sem esforço de natação. Mal bracejava. Depois, o Ave espraiava-se em murmurios de lago dormente, muito barrento, e deixava-se apégar. O alferes, com agua pela cinta, desatascou-se dos lamaçaes d'além; e, horas depois, repassando o Ave na Ponte da Lagoncinha, e, vencidas duas leguas de chafurdeiros e barrocas, entrava na sua casa das Lamellas, bebia um grande trago de genebra, e, floreando a espada, bradava: «Viva o snr. D. Miguel I!»

Depois, sobreveio-lhe um rheumatismo articular, e ficou tolhido.

Sete annos passados, quando todas as aldeias do Minho conclamavam D. Miguel, elle ainda vivia, mas entrevado n'um carrinho, e chorava, em impotentes arquejos do corpo paralytico, porque não podia amolar a lamina da espada nos ossos dos malhados.

Tinha-a diante dos olhos pendurada n'uma escapula com o boldrié e a banda. Ás vezes, depois de beber, punha-se a olhar para ella com os olhos envidraçados de lagrimas, e pedia que a mettessem na sua sepultura, que o enterrassem com ella. E enterraram. Espera-se que o esqueleto d'este legitimista, com as phalanges esburgadas e recurvas no punho azevrado da espada, resuscite, ao ulular da trombeta, na resurreição geral das Legitimidades. Ponto é que a Russia se môva—como dizia o frade de Barrimáo.

[1]Um historiador moderno disse que D. Miguel em 1855 recebia setenta contos annuaes de donativos. Provavelmente deu causa a esta liberalidade de cifras um lapso do snr. Joaquim Martins de Carvalho que a pag. 254-255 dos seus Apontamentos para a Historia contemporanea, transcreveu de uma carta de Lourenço Viegas o seguinte periodo:... "Os rendimentos de el-rei compõem-se das 600 libras que vem de Lisboa da commissão alimenticia, 1.000 francos mensaes que com toda a exactidão lhe manda o conde de Chambord. 5.000 francos que annualmente lhe manda o duque de Modena e 6.000 francos do imperador Fernando d'Austria, tambem annuaes, mas sem época fixa, junto a alguns extraordinarios da provincia do Minho, fazem subir a renda annual a 400.000 francos, e esta chega apenas para a despeza e economia domestica." Chegando apenas para a despeza domestica de D. Miguel, 72:000$000, quanto lhe seria necessario para as despezas de fóra? Um dos zeros do snr. Martins de Carvalho deve passar para a direita do 4, e reduzir a annuidade do principe a 7.200$000 réis ou 40.000 francos.

Share on Twitter Share on Facebook