IV

Do alto Minho continuavam as noticias alegremente agitadoras. O Christovão Bezerra, ex-capitão mór de Santa Martha de Bouro, escreveu ao seu parente de Barrimáo. Dizia-lhe que constava que o snr. D. Miguel estava no seu reino, e—o que mais era—muito perto d'alli. Que não se podia explicar mais pelo claro sem ter a certeza de que seu primo entendia a cifra de communicação entre os membros da ordem de S. Miguel da Ala, instituida pelo snr. D. Affonso Henriques e renovada ultimamente pelo monarcha legitimo—explicava. O major Bezerra era commendador da ordem e conhecia a cifra:—que escrevesse francamente. E, desconfiando do correio, mandou a Santa Martha de Bouro o afilhado, o filho do alferes Gaspar, com uma carta muito importante. O pedreiro, a impar de soberba por tal mensagem, posto que não participasse do segrede do padrinho que era discreto, disse ao pai:

—Ou eu me engano, ou o snr. D. Miguel está por ahi, não tarda...

O alferes sentiu uma descarga electrica na columna vertebral e convulsionou-se extraordinariamente. Fazia lembrar phenomenos que se contam de movimento galvanico nos paralyticos, colhidos de improviso pelo terror ou pela exultação; mas o Gaspar, como só tinha o esophago desempedido, bebeu, com a escorrencia absorvente d'um olho-marinho, muita aguardente, e desatou a berrar o Rei-chegou.

O filho, com a discrição propria d'um agente secreto da restauração realista, zangou-se com o berreiro civico do pai e perguntou-lhe se estava bebedo. O velho enthusiasta, ferido no seu coração de vassalo e de progenitor, teve um honrado intervallo lucido, quando lhe replicou:

—Se eu não estivesse aqui tolhido, respondia-te, malandro!

Deitou o albardão á egua e partiu para terras de Bouro o Zeferino. Quando passava defronte da casa do Simeão, em Prazins, olhou de esguelha, por debaixo da aba do chapéu, para o lavrador que estava apondo os bois ao carro, e regougou um arrastado pigarro de goelas encatarrhoadas; e, dando de espora á andadeira, deixou cahir o pão ferrado ao longo da perna. «Qualquer dia, estou-te em cima!» dizia de si comsigo, ladeando a bêsta em corcovos chibantes. O Simeão, quando o perdeu de vista, murmurou:—Valha-te o diabo, banaboia!

O ex-capitão mór de Santa Martha respondeu ás perguntas do primo de Barrimáo; e, como o portador se recommendou na qualidade de afilhado do fidalgo e filho d'um alferes que commandára o ataque de 1838 sobre Santo Thyrso, o Christovão Bezerra tratou-o muito bem e pediu-lhe noticias d'esse ataque a Santo Thyrso que elle não conhecia. O pedreiro contou a façanha do pai, a nadar, com a espada nos dentes; e o fidalgo quando soube que elle estava entrevado, disse pungidamente: Mal empregado!—que um general romano fizera o mesmo e que o levasse ás caldas de Vizella á bomba quente.

Como estava conversando com o filho de tamanho realista, fez-lhe confidencias:—que D. Miguel estava perto d'alli; mas não recebia ninguem porque os malhados já o espreitavam em Portugal. Que a acclamação havia de começar em terras de Bouro, e estender-se até Lisboa; e que estivesse certo que el-rei nosso senhor lhe daria a patente do pai ou talvez mais. O pedreiro esfregava os joelhos com as mãos e bamboava-se hilariante na cadeira como um idiota. Tirou da algibeira da vestia uma saquita de missanga, onde tinha tres peças e sete pintos. Pôz o dinheiro com estrondo deante do Bezerra,—que o mandasse a el-rei para as suas despezas; que eu, accrescentou, ha quatro annos que lhe dou uma moeda d'oiro por anno; elle ha-de saber pelo rol quem é o Zeferino das Lamellas, por que o padre Luiz de Sousa Couto, do Porto, disse-me que el-rei conhece de nome todos os que lhe mandam dinheiro, O fidalgo recusou:—que não estava auctorisado a receber donativos, nem os julgava por em quanto necessarios, por que em poder do Dr. Candido, de Anêlhe, estavam cincoenta contos, dados pela senhora infanta D. Isabel Maria, para pôr a procissão na rua.

A carta de que Zeferino foi o ditoso portador era mais explicita. Contava que D. Miguel estava escondido na residencia do abbade de S. Gens de Calvos, no conselho da Povoa de Lanhoso, o reverendo Marcos Antonio de Faria Rebello.[2] Que pouquissimas pessoas o tinham visto, porque sua magestade só se mostraria aos seus amigos fieis quando entrassem pela Galliza os generaes estrangeiros que se esperavam, uns do antigo exercito carlista, outros de Inglaterra.

Esta noticia dos generaes estranhos beliscou a vaidade nacional do major Zeferino Bezerra. Parecia-lho impossivel que o principe proscripto não confiasse na pericia e lealdade do Santa Martha, do Victorino, do Povoas e Bernardino. Era uma ingratidão, dizia elle ao mano frade, que accrescentou:—e uma bestialidade. El-rei deve saber o que lhe valeram o Bourmont e o Pussieux e o Mac-Donnell, no fim da campanha. Sabes tu?—rematou o morgado—aqui anda marosca. O que tratam é de se abotoarem com os cincoenta contos da infanta D. Isabel Maria, e o primo Christovão é um asno chapado.

—Escreve-se ao Povoas e ao Bernardino—aconselhou o egresso—que digam alguma coisa.

Os militares realistas responderam que sem duvida estava a levedar alguma tentativa de restauração; que o Ribeiro Saraiva trabalhava devéras; que o snr. D. Miguel era esperado em Londres; mas que não estava ao reino, nem cá viria senão para se assentar de vez no seu throno usurpado.

—Deixa-te de asneiras, Zeferino—dizia o fidalgo ao afilhado com as cartas na mão—el-rei ha-de vir; mas não veio. Meu primo foi codilhado pelo abbade de Calvos, e eu vou-lhe escrever que não seja palerma, nem caia com uma de X para o alevantamento que é uma comedella.

O pedreiro, não obstante, apostava dobrado contra singelo que D. Miguel estava em Calvos, e puxava pela saquita de missanga com gestos de troquilha de burros em feira:

—Aposto! Aqui está dinheiro! O fidalgo de Quadros, o snr. tenente coronel Cerveira Lobo tambem diz que el-rei já por cá anda.

—O Cerveira Lobo! olha que borrachão!—disse o frade.

—Quem cá está é o rei dos bebedor no corpo d'elle—accrescentou o morgado.

—Mas diz que o snr. D. Miguel I gostava muito d'elle—objectou o pedreiro.—Ouvi-lh'o eu.

—Não duvido...—explicou o frade—que o snr. D. Miguel gostava de grandes patifes...

O primo Christovão redarguiu, magoado na sua esperteza, que era tão certo estar el-rei em Calvos como era certo ter-lhe beijado a regia mão em casa do abbade, na noite sempre memoravel de 16 de abril de 1845. Que só o tinha visto de relance em Braga em 32, mas que o conhecêra pelo retrato; que até manquejava um pouco, tal e qual, como se sabe, depois que sua magestade quebrou a perna em 28. Que el-rei nomeara o abbade de Calvos seu capellão-mór, que déra a mitra de Coimbra ao abbade de Priscos, e fizera chantre o padre Manoel das Agras, e a elle lhe fizera a mercê de duas commandas e o titulo de barão de Bouro, afora outras graças a diversos clerigos e leigos.

—Que te parece isto?—perguntou o morgado ao frade.

—Parece-me a notoria estupidez do primo Bezerra e mais dos padres; mas, se o homem que lá está é o D. Miguel, então o estupido é elle, e que me perdôe sua magestade fidelissima...

Escreveu-se novamente ao Povoas, ao Tavares de Fagilde e ao Pontes, um collaborador da Nação. Responderam-lhe que não havia tal D. Miguel em Calvos; mas que deixasse correr o marfim, por que era necessario uma agitação preparatoria, um simulacro, uma apalpadella...

—Quer dizer—reflexionou o frade—que o tal impostor é um Baptista, o precursor do verdadeiro Messias. Pois deixemos correr o marfim, e mais o simulacro ... que palpem,—e, pondo as duas mãos engalfinhadas sobre o umbigo proeminente, fazia girar um dedo pollegar á volta do outro. Que o que fosse soaria, e não cahisse o mano Zeferino na estulticia de se comprometter sem que os generaes portuguezes sahissem á rua.

Na correnteza d'estas coisas, o Zeferino das Lamellas não trabalhava de pedreiro; abandonou as obras de alvenaria aos officiaes, e andava n'uma dobadoira de casa do padrinho para casa do tenente-coronel realista, o Vasco Cerveira Leite, morgado de Quadros, um homem nascido illustremente, que, desde Evora Monte, não cortára as barbas nem sahira das minas da casa-solar em Vermuim.

Como a sua paixão era inconsolavel com o destino, deu-se á distracção do alcool; e, porque tinha a consciencia da sua miseria de bebedo, fechava-se no seu quarto, onde ás vezes cahia amodorrado sobre o vomito. Imbecilisára-se. Cerveira tinha soffrido um ataque cerebral quando o brigadeiro José Urbano de Carvalho infamemente se passara com alguns esquadrões de cavallaria para o centro da divisão do duque da Terceira, na Chamusca. Elle vira o seu coronel Antonio Cardoso de Albuquerque dar vivas á carta constitucional e a D. Maria II. Achou-se arrastado, illaqueado e prisioneiro, quando procurava abrir com a espada uma sepultura honrosa. Ali se extinguira coberto do opprobrio, n'aquella hora, o bravo e leal regimento de Chaves que nunca dera um desertor para as fileiras do inimigo. O tenente-coronel, desde esse dia, foi um desgraçado incomprehendido que se embriagava para esquecer o reviramento subito da sua carreira. Depois, a corrente travada das miserias. Tinha filhos que se emborrachavam como elle, e filhas que se namoravam dos engenheiros das estradas, e andavam pelas romarias de roupinhas escarlates, com botinas de ponteira de verniz e chapéus desabados de sêda preta com borlas e plumas. Sua mãe tinha sido açafata da apostolica D. Carlota Joaquina, fizera-se mulher no Ramalhão, e gabava-se de ter sido amada do conde de Villa Flôr. Quando entrou no vasto e velho casarão de Quadros, teve hysterismos formidaveis e acordava os eccos das montanhas com gritos que punham terrores sobrenaturaes na visinhança. O Cerveira Leite poderia viver abundantemente na côrte, por que os seus rendimentos e foros eram muito importantes: é o que D. Honorata lhe pedia com lagrimas; mas elle, colerico:—que não podia encarar os malhados, e não sahiria mais de casa sem as suas divisas de tenente coronel de dragões. E, apontando-lhe para os cinco filhos:

—Sê boa mãe, trata d'essas creanças que andam ahi porcas que fazem nojo!—Tinha estas equidades em jejum.

E ella:

—Mais nojo me fazem as borracheiras de você!

E o fidalgo então disciplinava-a militarmente. Quando lhe não dava alguns pontapés, desfechava-lhe um tiroteio de palavradas de tarimba, e perguntava-lhe se tinha saudades dos bordeis do Ramalhão, aquelles pagodes reaes. D'esta procacidade esqualida, derivou a um mutismo estupido. Não lhe respondia. Fechava-se no seu quarto, contiguo á garrafeira.

D. Honorata Guião teria vinte e oito annos, quando sahiu de Lisboa para o Minho em 34. Era formosa das finas graças aristocraticas. Uma elegancia nervosa, inquieta, mordiscada de desejos como uma flôr branca muito picada das abelhas. Acceitára o major Cerveira, porque era rico e estadeava na côrte as suas librés. Tinha trinta annos, e dizia-se que aos quarenta seria general, porque D. Miguel gostava muito d'elle. Rosnava-se que o Cerveira tinha sido um dos assassinos do marquez de Loulé.

Este rapaz de côrte e da intimidade do rei e das infantas, disputado pelas damas da rainha, era aquelle ebrio encanecido que, debruçado na janella do seu quarto, fortemente fincado no peitoril de ferro da sacada, revessava ao caminho publico golfos aziumados de vinhaça, e dizia garotices de lacaio ás raparigas que passavam medrosas e o saudavam;—Guarde Deus v. s.ª, snr. fidalgo!—Tenha v. s.ª muito boas tardes, snr. morgado!—E elle, almofaçando as barbas conspurcadas de vomito:—Ó brejeira, deixa lá vêr o patriotismo; que tal é a anca? Não respondes, catraia? Olha como aquella rebola os quadris, o grande coldre!—As cachopas não respondiam; safavam-se com um grande medo, porque eram suas caseiras; mas commentavam:—Que levasse o diabo o piteireiro do fidalgo!—que a fidalga fizera bem era se pisgar com o doutor dos Pombaes.—Quer não—contrariava uma lavradeira idosa—foi má mulher que deixou assim os filhos, cinco creanças! uma desgraça! Nem as cadellas faziam isso. Os mais velhos já se emborracham, e as meninas estão quasi mulheres e ainda não foram ao confêsso nem sabem a doutrina. Que uma d'ellas, a Therezinha, já se enfeitava para o estudante das Quintans que andava por lá feito caçador, e que o morgadinho, o snr. Heitor, namorava a filha do José Alho, e até se dizia que lhe fallára em casamento. Vêde vós que desgraça, ó môças! Um menino tão rico e tão fidalgo, vi-o aqui ha tempos na taberna de Villaverde que se não lambia, a pagar vinho ao Alho e mais á croia da filha, e a comerem todos iscas de bacalháo com as mãos! Ao que eu vi chegar um senhor dos fidalgos de Quadros! Quando eu era rapariguita, aquelles senhores nunca sahiam sem os seus mochillas fardados e tinham liteiras com as armas reaes pintadas. Faziam mesmo um respeito! O snr. Rodrigo, pai d'este morgado velho, era d'isto dos governos lá de Lisboa, e quando vinha vêr as suas quintas, ó senhores, cahia ahi o poder do mundo de Braga e Guimarães a visital-o! E as fidalgas? isso então a gente, quando as via, corria logo a beijar-lhe a mão, e ellas no dia de Paschoa mandavam as cachopas lenços para a cabeça e regueifas de pão podre. Aquella casa estava sempre cheia de frades das ordens ricas...

—Isso, isso ... eu logo vi que essas fidalgas haviam de estar cheias de frades de ordens ricas—dizia o José Dias de Villalva.—Muito cheias de frades aquellas fidalgas, hein?

—Ahi vens tu com as tuas alicantinas—retrucava, pronostica e solemne, a tia Rosa de Carude.—É o que tu estudas, meu valdevinos. Agora é melhor que então, pois não foste? As fidalgas d'hoje em dia presentemente fogem c'os doutores e deixam os filhos... Isto agora é que é bom ás direitas, pois não é? No tempo antigo, valha-me Deus, as fidalgas eram umas desavergonhadas que conheciam frades e creavam os seus filhos.

—Os filhos dos frades?—perguntava o Dias.

—Cala-te ahi, bôca damnada! Olha que padre havia de sahir de ti! Ainda bem que a Martha de Prazins te fez mudar de rumo.

A fuga da Honorata Guião com o Silveira dos Pombaes não amotinara a opinião publica escandalisada. A excepção da austera Rosa de Carude, toda a gente deu razão á fidalga. O Cerveira tinha amigas da ralé, que mettia em casa—uma diversão á embriaguez, quando não exercia as duas distracções em uma promiscuidade desaforada. D. Honorata visitava-se unicamente com a D. Andreza da Silveira, da casa dos Pombaes, irmã d'um bacharel delegado em Amarante. Chorava muito com ella e pedia-lhe que perguntasse ao mano doutor se poderia separar-se por justiça, antes de se atirar a uma cisterna. D. Andreza pediu ao irmão que viesse ouvir as tristes allegações da sua desgraçada amiga.

Estava Honorata nos trinta e tres annos, quando Silveira a encontrou nos Pombaes. O delegado era um romantico. Emigrára em 28, sendo estudante, quando alguns membros da sociedade dos Divodignos padeceram o supplicio da forca pelo homicidio dos lentes. Completára a formatura em 38 e fôra despachado. Muito lido em Schiller e Arlincourt. Fazia solaus em que havia abencerragens e infantas christãs apaixonadas que tocavam arrabis, banhadas de lua nos revelins dos castellos roqueiros. Tambem fazia prosa na Gazeta litteraria do Porto,—scenas dramaticas em que se jurava pela gorja e havia homens de prol que arrastavam mantos negros, cravavam laminas de Toledo ás portas de Dom Fuas, e, cruzando os braços, rugiam cavernosamente: «Ah! Dom ribaldo, Dom ribaldo!» E depois, os arrepios d'uma casquinada secca, d'um estridente grasnido de gaivotas que se espicaçam por sobre o mar banzeiro.

A Honorata, esposa deplorativa, dama da rainha, esbeltamente magra, d'uma elegancia de raça afinada nos salões da Bemposta, pallidez eburnea, esmaecida, airs évaporés, um sorriso nobre de ironia rebelde á desgraça, com a dupla poesia do martyrio e da belleza, ultrapassou a encarnação viva dos ideaes do bacharel. Ella tinha pejo de lhe contar os seus infortunios, a vida crapulosa do marido, a libertinagem de portas a dentro com as jornaleiras, e o abandono da educação dos filhos. Andreza é que contava tudo ao mano Adolpho na presença da martyr. Que o Cerveira se embriagava todas as tardes e tinha amasias da ultima gentalha que punham e dispunham em casa. Que os meninos eram creados brutamente; que o mais velho, o Heitor, nem lêr sabia; porque o pai tambem fazia mal o seu nome. Que tiveram um padre de dentro para os ensinar, mas que o padre, em vez de lhes dar lição, trabalhava de carpinteiro em remendar os sobrados, e quando era a hora do estudo largava a enxó e vinha em mangas de camisa, sem gravata e de socos para a sala. Que os meninos não lhe tinham respeito nenhum, por isso o Heitor, quando elle o ameaçou com a palmatoria, respondeu que lhe dava uma navalhada. O pai achou-lhe graça, e o padre foi-se embora. Depois, entrou um velho que dava escóla em Guimarães, e os quizera ensinar com muita paciencia; mas o Heitor e mais o Egas taes arrelias lhe faziam que o pobre homem fugiu. Que D. Honorata soffria aquelle flagello desde a queda da realeza, como se fosse a culpada da Victoria de D. Pedro. Era da familia dos Guiões, muito intimos do snr. D. Miguel e do conde de Basto; mas todos os seus parentes foram perseguidos, roubados, de modo que ella, ainda que quizesse fugir ao marido, não tinha em Lisboa familia que a pudesse sustentar;—que, se não fosse isso, já teria acabado o seu suplicio, e que muitas vezes pensára em se matar, mas...

—Os filhinhos...—atalhou Adolpho sentimentalmente.

—Não, snr.—acudiu a dama de Carlota Joaquina—não são os filhos. O coração de mãe só se enche do amor aos filhos quando se evapora o amor aos pais. Eu nunca amei este homem. Imposeram-me o casamento, aproveitaram-se do despeito que eu sentia pelas ingratidões d'um conde que eu amava, e casaram-me á pressa. O caracter d'este homem não peorou com a desgraça da politica; elle é o que sempre foi, com a differença de que na côrte embriagava-se com os fidalgos, no Alfeite e em Queluz, e por lá dormia. As mulheres que corrompia ou o corrompiam não eram minhas creadas nem minhas conhecidas; e, se o eram, eu apenas tinha a convicção de que elle era um devasso. Tenho cinco filhos d este homem; mas basta que eu lhe diga, snr. doutor Adolpho, que são d'elle, são os productos amaldiçoados de uma obrigação estupida—a aviltadora obrigação de ser mãe quando se é esposa.

Tinha dito. O bacharel nunca ouvira coisa assim, nem se lembrava de ler achado nos romances uma razão tão philosophica e concludente da Justiça com que a mãe pôde aborrecer os filhos.

—Sentia vontade de me ajoelhar diante d'ella!—dizia Adolpho á irmã.—Que formosura e que talento, Andreza! Ó mana, eu viajei cinco annos, vi as mulheres mais encantadoras da Europa, estive no Pardo, no Bois de Boulogne, no Hyde-Park, e nunca vi mulher que tanto me penetrasse os intimos seios d'alma! Nunca, por estranha fatalidade, nunca! Como é que eu sinto aos vinte e oito annos as palpitações d'um coração que nasce? Que faisca de amor é esta que me lavra um incendio devastador das alegrias d'alma que ainda hontem me douravam a existencia?

Era o estylo hydropico de Arlincourt; mas é de crêr que exprimisse garrafalmente a singela e natural commoção que lhe fez a gentileza, a poesia elegiaca, a magestade inflexa d'aquella mulher a quem a desgraça dera uma critica moderna e revolucionaria na religião das mães.

D. Andreza, escandalisada, cortava-lhe os voadouros perguntando-lhe se a separação judicial poderia dar meios de subsistencia a Honorata. O bacharel, muito abstracto, parecia esquecido do codigo. O estado da sua alma não lhe consentia folhear a infame prosa com mão jurisperita.

—Que havia de estudar a questão; mas que lhe parecia que ella, requerendo o divorcio, apenas tinha alimentos por não ter trazido nada ao casal.—Estas phrases eram mastigadas com um tedio, um engulho, como se, depois de declamar uma Contemplação de Lamartine, tivesse de recitar dois paragraphos da lei da emphyteuse.

D. Andreza era senhora ajuizada, muito séria, educada no convento de Vairão; tinha missa em casa, e escrevia cartas a diversas freiras, pondo sempre no alto do papel: Jesus, Maria, José. Andava nos trinta a cinco annos, muito lymphatica e um grande horror aos vicios da carne. O mano Adolpho conhecia-lhe a indole. Não podia esperar d'ella applauso, nem sequer condescendencia, e muito menos auxilio á sua affeição a mulher casada. Andreza concordava com o irmão na formosura de Honorata; mas observava com um risinho malicioso que o não chamára para saber se a sua amiga era bonita ou feia; mas sim para aconselhal-a e dirigil-a na separação do marido por justiça.

O doutor Adolpho absteve-se de enthusiasmos, e poz-se a estudar a questão, em conferencias com o Bento Cardoso, de Guimarães, e o Torres e Almeida, o Rasqueja de Braga, dois chavões. Mas o que elle queria era córar as delongas nos Pombaes, ganhar tempo, a salvo das suspeitas da mana e do seu capellão, um realista finorio que sabia da poda, e trazia a pedra no sapato, dizia, cacarejando uma risada velhaca—e conhecia até onde podia chegar a fragilidade de um homem sem solidos principios de religião, estragado por essas nações.

D. Andreza andava assustada, porque o mano nem ia para Amarante nem dava começo ao processo. A Honorata apparecia-lhe radiosa, com um grande esmero no trajar, vestidos fóra da moda, mas elegantes, ricos, de mangas perdidas, com uns decotes que punham nos olhos do capellão luzernas exquisitas, escrupulos. Adolpho era discreto na presença da mana. Contava as suas viagens, durante a emigração, citava nomes de litteratos desconhecidos á fidalga, seus amigos intimos em Pariz; ai! Pariz!—exclamava—Se eu então me passaria pela mente que havia de vir de Pariz para Amarante!

—Elle porta-se muito serio—dizia D. Andreza ao padre Rocha. Ella é que me parece mais levantada, muito azevieira, não acha?

—Acho, acho...—confirmava o capellão.—D'aqui rebenta coisa, minha senhora; rebenta, v. ex.ª verá...

E, com effeito, estava a rebentar, na phrase explosiva do padre Rocha. O delegado tinha correspondencia diaria com Honorata, mediante uma caseira de sua mana, irmã d'uma criada do Cerveira Lobo. Cartas incendiarias escriptas durante a noite trocavam-se de manhã, quando o Adolpho sahia a respirar os balsamos das ribanceiras orvalhadas. Ás vezes, subia a encosta até á crista do monte do castello de Vermuim. D'aqui, avistava-se por sobre as selvas verdes de carvalheiras e pinhaes a vasta casaria pardacenta de Quadros, com dous torreões denticulados. No andaime de um dos torreões via-se um vulto branco, com o braço amparado em uma das ameias, e a cabeça encostada á mão como nas baladas de Baour Lormian. Era Honorata, com o binoculo assestado na fraga onde estava Adolpho, alaranjado pela primeira resplandecencia do sol nascente.

Ao cabo de duas semanas, sahiram dos dominios da bailada. Uma noite, partiram de Guimarães, caminho do Porto, dous cavallos do Gaitas, e pararam na Ponte de Brito. Um dos cavallos era arreiado com selim de senhora. Por volta da meia noite, Adolpho e Honorata, n'um passo miudo, com uma anciedade, mixto de exultação e de susto, chegaram á Ponte de Brito. Elle ajudou-a a sentar-se na sella; cavalgou, disse aos dois arrieiros o seu destino, e partiram a trote largo.

[2]Como seria de máo gosto inventar este episodio, imponho-me o dever de affirmar que estas noticias me foram transmittidas por um illustrado cavalheiro da Povoa de Lanhoso, o snr. José Joaquim Ferreira de Mello e Andrade, da casa nobillissima das Argas, fallecido, com mais de oitenta annos de idade, em 1881. Comquanto a imprensa contemporanea, que eu saiba, não fallasse no pseudo—D. Miguel, as revelações do ancião de Lanhoso merecem-me e são dignas de toda a confiança.

Além d'isso, consultei o reverendo Casimiro José Vieira, tão celebrado quando dirigia com mão armada a revolução do Minho, que se chamou Maria da Fonte. Hoje, com 66 annos de idade, vive na sua casa da Alegria, no concelho de Felgueiras, ao sopé do monte de Santa Quiteria, preparando as suas Memorias, que devem esclarecer as obscuridades originaes da insurreição de duas provincias. Este padre que, aos trinta annos, foi conclamado general pelo povo, e parlamentou face a face com o conde das Antas, respondeu assim á minha consulta: Eu apenas posso dizer a v. que foi verdade ter estado o tal impostor occulto em casa do abbade, por que elle mesmo m'o disse; mas nada lhe perguntei a tal respeito, por me lembrar que elle teria vergonha de se deixar enganar, depois de lhe ter beijado a mão muitas vezes, no tempo de estudante e seminarista, quando o snr. D. Miguel esteve em Braga, a ponto de se ter tomado saliente para o mesmo snr. D. Miguel, como o mesmo abbade me contou tambem, mas por isso mesmo nada mais posso accrescentar...[3]

[3]Carta de 11 de novembro de 1882.

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