Seis annos depois, em 1845, quando o Zeferino das Lamellas andava em roda viva de Barrimáo para Quadros, o Cerveira não tinha alterado sensivelmente os seus habitos. Estava muito gordo, saude de ferro—um desmentido triumphante aos follicularios que desacreditam as virtudes hygienicas, nutrientes do alcool. Os vomitorios quotidianos explicavam a depurada e sadia carnadura do tenente-coronel. Orçava pelos cincoenta annos, com um arrogante aspecto marcial, de intensas barbas grisalhas,—olhos rutilantes afogueados pela calcinação cerebral. As filhas não mostravam vestigios alguns de educação senhoril. Aquella Therezinha, que a Rosa de Carude denunciára, fugira para casar com o minorista das Quintans. As outras duas, muito boçaes e alavradeiradas, tinham amantes—uns engenheiros e empreiteiros do conde de Clarange Lucotte, que andava fazendo as estradas entre Braga, Porto e Guimarães. Ninguem decente as queria para casar porque, além do descredito, o pai não dava dote; e, desde que a mãe fugira, convenceu-se de que não eram suas filhas. Heitor e Egas, dous galhardos moços, de jaqueta de alamares de prata, faixa vermelha, e sapatos de prateleira com ilhozes amarellos, tinham eguas travadas que entravam pelas feiras n'um arranque de rópia e pimponice, que ia tudo razo. De resto, valentes e bebedos, possantes garanhões de femeaço reles, e muito esquivos a tratarem com senhoras—canhestros e bestiaes. Roubavam o milho e o vinho; vendiam, nas mattas distantes, ao desbarato, córtes de madeira e roças de matto; além d'isso tinham umas pequenas mezadas que o pai lhes dava. Ainda assim, a casa de Quadros não estava empenhada, prosperava, e era das primeiras do concelho. O luxo do fidalgo era a garrafeira. Mais nada. As filhas de Honorata quando, entre si, fallavam da mãe, chamavam-lhe «aquella desavergonhada»; os rapazes com um desapego desleixado que poderia fingir dignidade, nem se lembravam que tinham mãe. Quanto ao pai, esse antes de jantar, era taciturno, casmurro, como quem se esforça por sacudir um pesadello; e, de tarde, sumia-se para recomeçar as suas visões luminosas interceptadas pelas trevas momentaneas da razão. Não se sabe o que elle pensava da mulher.
Admittia pouca gente em sua casa e pouquissima á sua presença. Além dos caseiros que lhe pagavam as grossas rendas de Villa do Conde, de Esmoriz e S. Cosme do Valle, apenas recebia o pedreiro das Lamellas que lhe fizera os canastros e reconstruira algumas paredes desabadas. Conhecia-lhe o pai, o alferes, desde a batalha de Ponte Ferreira. Mandava-lhe botijas de genebra e massos de cigarros;—que bebesse, que se embebedasse, que os tempos não iam para outra coisa. E o alferes com vaidade de fino:
—A quem elle o vem dizer!
Ultimamente, fallavam muito da chegada do snr. D. Miguel—«o meu velho amigo,» dizia o Cerveira, pondo as mãos no peito e os olhos ao tecto.
—Venha elle, e vêr-me-has, Zeferino, á frente dos meus dragões de Chaves:—Relampagueavam-lhe então as pupillas e fazia largos gestos marciaes, com o braço tremulo como se brandisse a espada, rompendo um quadrado; montado na phantasia, arqueava as pernas, descahia o tronco sobre um imaginario cavallo empinado e bufava com tregeitos ferozes. Era d'um ridiculo lacrymavel. O Zeferino dizia ao pai que ás vezes lhe tinha medo quando elle fazia aquellas partes.
—O vinho do Porto é o diabo!—dizia o alferes com uma grande experiencia d'essas façanhas incruentas—é o diabo!
O Zeferino, na volta de Santa Martha de Bouro, contou-lhe o que soubera em casa do capitão-mór. O tenente-coronel quiz immediatamente partir para Lanhoso; mas não tinha roupa decente para se apresentar a el-rei. As fardas estavam traçadas, podres com um bafio de rodilhas no fundo de uma arca; dos galões restava um tecido esbranquiçado com laivos verdoengos; o casco das dragonas esfarinhou-se-lhe nas mãos roido pelos ratos. Não tinha casaca. Desde a convenção d'Evora Monte, mandava fazer a Guimarães uns ferragoules de mescla á laia de capote de soldado para o inverno; de verão, para equilibrar o calor artificial interno com o da atmosphera, andava em ceroulas e fazia leque da fralda. Por decencia, fechava-se nos seus aposentos. Mandou chamar um alfaiate a Braga, o Cambraia da rua do Souto, para se vestir á militar e á paizana.
Entretanto o Zeferino, um pouco desanimado, contou-lhe que o seu padrinho de Barrimáo e mais o frade não acreditavam que el-rei estivesse em Calvos; que era uma comedella do dr. Candido d'Anêlhe e dos padres para apanharem cincoenta contos á D. Isabel Maria; que os generaes do snr. D. Miguel não sabiam de nada.
O Cerveira Lobo esfriou. Tambem me parece, dizia, que se o meu velho amigo D. Miguel ahi estivesse, já me tinha mandado chamar.
Mas, depois que o Bezerra de Bouro asseverou que beijára a mão d'el-rei, o pedreiro e o tenente-coronel já não podiam duvidar. Combinou o fidalgo com Zeferino que partisse elle para Lanhoso, e dissesse ao capitão-mór que o levasse a Calvos, e o abbade que participasse a el-rei que estava alli um proprio com uma carta de Vasco da Cerveira Lobo, tenente-coronel de dragões.
—Assim que el-rei ouvir o meu nome, entras logo, immediatamente, n'um prompto. Depois, põe-te de joelhos, e entrega-lhe a carta, percebeste? Tu vais e trazes-me resposta. Por estes oito dias, o mais tardar, tenho cá o fardamento. No caso que sua magestade me mande ir vou, se não, trato de chamar ás armas cinco ou seis mil homens com que posso contar.
Zeferino, para evitar questões atrasadoras, não disse nada ao padrinho nem ao pai, receando as expansões usuaes da carraspana.
O Cerveira dizia ao padre Rocha, capellão de D. Andreza:—Idéas não me faltam; mas esqueci aquillo que se chama ... sim aquillo com que se escreve, quero dizer...
—Ortographia?
—É como diz, padre Rocha, ortographia.
Era o exordio para lhe dar parte que o seu amigo e rei D. Miguel estava no concelho da Povoa de Lanhoso; que lhe queria escrever; mas que não se mettia n'isso; e accrescentava:—elle, o rei, aqui ha treze annos sabia tanta ortographia como eu; mas agora dizem as gazetas que elle estudou coisas e coisas e tal. Pedia, portanto, ao padre Rocha que lhe escrevesse a carta para elle a copiar de seu vagar. E, pondo-lhe a mão no hombro:—E ouviu, padre? Vá pensando no que quer; uma boa abbadia, S. Thiago d'Antas, hein? serve-lhe? ou antes quereria ser conego? Emfim, pense lá... Nós cá estamos ás ordens.
O padre era a fina flôr do clero realista. Sensato, intelligente e honesto. Primeiro, quando o Cerveira lhe revelou a meia-voz a chegada do seu amigo e rei D. Miguel, imaginou-o no seu estado normal de bebedeira. Depois, reparando mais nas attitudes firmes e desempeno da lingua, julgou-o sandeu, amollecimento cerebral pela alcoolisação;—por fim convenceu-se de que o pobre homem era enganado e escarnecido por alguns disfructadores. O padre tinha muita compaixão do fidalgo que a mulher e as filhas enlameavam torpemente. Elle avisára D. Andreza que, no dia em que o snr. doutor Adolpho entrasse nos Pombaes pela porta principal, elle sahiria pela porta travessa; e a fidalga levára tão a mal o proceder do irmão que pensava em fazer testamento para que os filhos d'elle e de Honorata lhe não herdassem as quintas. Sabia-se n'esse tempo que o doutor Adolpho da Silveira era juiz de direito nos Açores e tinha comsigo uma formosa amante com tres meninos.
A unica idéa com que o Cerveira contribuiu para a redacção da carta foi que escrevesse:—«se vossa magestade precisa de dinheiro, diga o que quer que eu até onde chegarem as minhas posses está tudo ás ordens del-rei meu senhor.»
O padre Rocha não sé esquivou a collaborar na indromina, dizia elle a D. Andreza,—porque «eu, pela resposta da carta, hei-de seguir o fio da esparrela que querem armar ao parvo do homem.»
A carta ia pomposa, a ponto de Cerveira pedir commentarios, explicações. Que estava uma obra profunda—dizia o fidalgo instruido em fim nas obscuresas do estylo.
E, tirando seis pintos do bolso do colete:
—Ahi tem para o seu rapé, merece-os.
O capellão não acceitou; pediu que os applicasse por sua intenção ás necessidades do snr. D. Miguel.
—É um realista ás direitas, padre, um grande realista!—E, guardando os seis pintos, abraçou-o effusivamente e offereceu-lhe um calice de 1817.
—Eu desejaria muito vêr a resposta de sua magestade—dizia o padre Rocha.
—Isso é logo que ella chegar, padre! pois então? Cá entre nós não ha segredos; e, se o amigo quizer, no caso que el-rei me mande ir, vai commigo, e póde logo vir despachado. Pois então?
—Está dito!—e o padre com um regosijo muito comico, e o calice aromatico de baixo do nariz:—Quem sabe se eu ainda serei arcebispo, ó snr. tenente-coronel!
—Ora! como dous e dous são quatro! Ha-de ser arcebispo, não tenha duvida. Isto vai tudo mudar!—E carregava-lhe forte no 1817.—Arre! estou aqui mettido ha doze annos n'estes montes, que me tem levado os diabos! Tenho 49 annos: mas este punho ainda póde com a espada! Ha-de haver pancadaria de criar bicho! Olé! Eu dizia ás vezes ao meu amigo D. Miguel quando o Sedvem, e o Matta e o Miguel Alcaide davam cacetada nos malhados que aquillo não era bonito. Pois agora, padre Rocha, hei-de dizer-lhe: «É p'ra baixo, real senhor! môcada de metter os tampos dentro a esses malhados! E acabar com elles por uma vez! uma forca em cada concelho, real senhor, muitas forcas! Ah! meu camarada Telles Jordão! tu é que a sabias toda!»
O Cerveira começava a gaguejar, a cambalear, e entornava o calice. O padre despediu-se.