Na tão indecente como attribulada situação, em que deixamos o senhor Antonio, veio encontral-o o padre Leonardo Taveira, que voltava de resar vesperas no côro da Cathedral.
O cálido negociante resfollegava como um tubarão, e improvisava uma ventoinha de meia fralda da camisa. Cada vez mais indecente! Valha-nos Deus, leitores, que muito amargo é o dizer a verdade inteira! Ha momentos em que o escriptor publico se vê forçado a córar. Se me visseis, n'este instante, julgar-me-ieis d'uma candura infantil.
O arcediago, porém, não se mostrou surprendido da attitude tragicamente afflictiva do seu amigo. Cálido tambem, despiu a loba, arremessou o cabeção, descalçou os sapatos de fivela, e refocillou os amplos pés vermelhos nos propicios chinelos do escarlate mercador de pannos.
—Fostes a minha desgraça!-regougou o senhor Antonio, abanando o ventilador com a mão esquerda, e enxugando com a toalha de mãos os humidos torcicollos do pescoço.
—Fui a tua desgraça! Pois que é?-replicou o beneficiado, tapando com o indicador da mão direita uma das ventas, para chilrear na esquerda uma solemne pitada.
—Que é? ainda m'o perguntas? É a tua filha que me faz de fel e vinagre! É uma ingrata que se me ri nas barbas, quando eu lhe faço meiguices!
—Ora deixa estar, que o remedio não está em Roma. Eu já te disse que sou pae, e tenho direitos sobre minha filha. Queres ou não queres casar com ella, Antonio?
—Perguntas-m'o agora que já não sei por onde me anda a cabeça!... Dava trinta mil cruzados, e queria que a tua filha gostasse de mim! Isto parece que foi inguiço, que me fizeram!...
—Eu te quebrarei o inguiço...
—Não sei como. A pequena, seja lá pelo que fôr, não me póde vêr, ha um anno para cá. Aqui anda dente de coelho... Não sei, mas desconfio que ella namora o filho do João Retrozeiro, que me está sempre a lêr por detraz dos vidros.
—Devéras?
—Parece-me que sim. A minha Angelica já o desconfiou, e ralhou-lhe. A senhora Rosinha levantou a cabeça, e disse que não dava satisfações a ninguem.
—Ah! ella disse isso? Ora deixa-me com ella...
—Ouviste, Leonardo? não quero que lhe ralhes. É muito creança, e póde ser que minha irmã se enganasse. Serão escrupulos de Angelica, que me defumou com herva sancta e trevo nove vezes para me quebrar o feitiço em que me tinha a criada Thereza. É uma pateta mulher. Não lhe digas nada por ora a tal respeito. Aconselha-a que case comigo, e que me tenha amor, que eu prometto dar-lhe todo o ouro e vestidos que ella quizer. Hei de até leval-a ás comedias italianas, e não haverá fidalga que lhe bote a barra adiante em aceios.
Já vêem, pela energia da expressão, que dôr tão sublime não devia ser a que assim se exprimia por jactos de calorosa eloquencia! O senhor Antonio José da Silva, superior á sua classe, sentia-se arrojadamente grande pela angustia d'uma repulsa. Trinta mil cruzados déra elle pelo amor de Rosa Guilhermina! Promettia leval-a ás comedias! Galardoava o seu amor com vestidos que fizessem morder de inveja as fidalgas do Porto! Eu quizera que Rosa lhe exigisse uma carruagem. Se o senhor Antonio accedesse ao extravagante pedido, então, leitores seria eu o primeiro a pedir uma data gloriosa, um cantinho, na historia da civilisação da rua das Flores, para o senhor Antonio José.
A nada, porém, se movera a esquiva donzella.
O arcediago, commovido pela exclamação do seu futuro genro, subiu ao segundo andar, e procurou, meio-colerico, a filha rebelde, que ensinava o papagaio a dizer: é o rei que vai á caça.
—Á caça andava eu de ti...—disse affavelmente o pae, chegando uma cadeira para junto de sua filha tambem risonha, que lhe beijava a mão.
—Ah! eu não sabia... Tenho estado aqui toda a tarde a trabalhar, sósinha.
—A senhora Angelica não tem estado ao pé de ti?
—Não, meu pae. Creio que foi visitar o SS. Sacramento.
—Mas ella ainda é tua amiga como sempre foi...
—Eu sei cá... parece-me que não.
—Algum motivo lhe déste, Rosa...
—Eu? nenhum.
—Que disseste hoje ao senhor Antonio?
—Não me lembro... A que respeito?
—A respeito do teu casamento.
—Não fallemos n'isso, meu pae... Sou muito nova, não quero casar.
—Não quero! isso é cousa que se diga a um pae?
—Vmc.e não ha de querer a minha desgraça... Eu não posso ser feliz casando com o senhor Antonio... Antes quero ser criada de servir, ou trabalhar para viver...
—Rosa, não sejas creança. Olha que tu, casada com este homem, és muito rica, satisfazes todas as tuas vontades.
—Antes quero ser pobre... Tenho repugnancia em chamar meu marido a um homem que eu poderia estimar como avô... Não posso, é impossivel, meu pae. Mais facil me será morrer, que casar com elle.
—Visto isso, resistes á vontade de teu pae!
—Bem me custa; mas o pae ha de ter pena de mim; não ha de querer que eu seja desgraçada toda a minha vida.
—Não quero, não; e por isso mesmo é que te mando casar com o senhor Antonio José da Silva.
—Mate-me, se quizer; mas obrigar-me a casar, isso não.
—Das duas uma: ou casar, ou entrar já no recolhimento das orphãs em S. Lazaro.
—Entrarei no recolhimento, vou para onde o pae quizer que eu vá, até serei carmelita, se fôr da sua vontade.
Esta pertinaz resolução espantou o arcediago, e convenceu-o de que sua filha estava innocente das suspeitas de Angelica, beata crendeira em encantamentos, inguiços, e lobishomens. Se a pequena tivesse namoro com o filho do João Retrozeiro, de certo não acceitaria com tanta presença de espirito a condicional do recolhimento. Assim o pensava o licenciado, que tinha muita experiencia do mundo, e essa muito cara, a julgar pelas cifras que accumulou o negociante, orçando as despezas do casamento da mãe de Rosa.
Teimoso, e esperançado nas boas maneiras, entrou em negociações amigaveis com a menina. Pintou-lhe o melhor que pôde a vantagem de ser brevemente uma viuva rica, e a liberdade que teria então de escolher um marido mais galhardo. Repetiu a seducção dos vestidos, e dos diamantes; encareceu as delicias do theatro; soprou-lhe a vaidade, imaginando-a invejada pelas mulheres de todos os negociantes do Porto; emfim, por não fechar o discurso sem uma immoralidade, com palavras equivocas, dissertou pouco christãmente ácerca dos deveres da mulher casada.
Rosa insistiu na recusa. O padre irou-se outra vez; deixou cahir a caixa, no excesso da indignação; verteu no peito da camisa quatro pingas de rapé; escumou pelos cantos da bôca; pizou uma perna ao papagaio; entalou o rabo da gata, que saltou, bufando, para o peitoril da varanda; e acabou por dizer, em voz cavernosa, que Rosa, no dia seguinte, sem mais delongas, seria fechada no recolhimento de S. Lazaro, para não vêr sol nem lua.
O senhor Silva ouvira os ultimos berros, e zangou-se contra o padre. O seu amor não lhe consentia um ultraje a Rosa, apesar de ingrata. Em cuecas, e com a camisa em ventilador subia a escada; mas, a meio caminho, olhou para si, e viu, na sua consciencia, que não estava decente. Tornou atraz a enfiar as pantalonas de linho, quando o arcediago descia com a cara côr de lagosta, e os olhos turgidos e encarniçados como dois medronhos bravos.
—Não fazes senão asneiras, Leonardo—disse o negociante, impando com a difficuldade de enfiar a côxa roliça nas pantalonas, que queria vestir ás avessas, no auge da atrapalhação.
—Eu não faço asneiras. Sou pae, e quero ser obedecido.
—Que vaes tu fazer?
—Ámanhã ha de entrar no recolhimento por força.
—Deixa-te d'isso; não afflijas a rapariga por minha causa. Eu não consinto...
—Não preciso do teu consentimento. O caso agora é comigo, não é comtigo. Veremos quem vence.
—Então não ha outro remedio, Leonardo?
—Nenhum. Está de pedra e cal. Não quer casar por bem nem por mal. Diz que tem repugnancia em ser tua mulher.
—Sim?!-atalhou o senhor Silva atrozmente ferido na sua vaidade—pois, n'esse caso, faz o que quizeres, e tira-m'a quanto antes de casa.
—Olha cá, Antonio... Eu parece-me que a pequena, em se vendo fechada no recolhimento, onde não conhece ninguem, nem tem janella para a rua, mudará de vontade, e quererá casar...
—Comigo? Isso nunca! Deus me livre! Má mez para ella! Lembras-te do chinó do meu visinho?
—Ora deixa-te d'isso, meu amigo. Nem todos os maridos são calvos... nem todas as mulheres fazem marrafas. Dá tempo ao tempo. Quem lida com mulheres, lida com o diabo. É preciso atural-as. Sabes lá o que eu tenho soffrido com ellas?
—Eu é que não estou para brincadeiras... Estava muito socegado, ha tres annos; para que vieste tu inquietar-me com o negocio, que me propozeste em Campanhã? Guarda a tua filha, que eu morrerei solteiro.
O senhor Antonio José da Silva, dizendo isto, melhor avisado, bebia uma limonada, e o arcediago de Barroso calçava os sapatos de fivela.
N'este momento entrava a senhora Angelica, de mantilha, e camandulas de pau preto pendentes nas mãos, que trazia sobre o seio em postura beatifica.
—D'onde vens, Angelica?-perguntou o irmão.
A beata resmungou, e subiu para o segundo andar.
Espionemos d'onde vinha a senhora Angelica.