CAPITULO III

Que Rosa Guilhermina estava, mais ou menos, possessa de feitiços, era um evangelho para a senhora Angelica. Que a filha do peccado, como a beata lhe chamava, seduzida pelo demonio, namorasse o filho do retrozeiro, isso é que não era liquido.

Para os feitiços deixára Deus na terra pessoas virtuosas, mulheres sabias, que os desmanchavam; e para adivinhar o coração da pequena bem sabia a irmã do senhor Antonio que o remedio não estava longe.

A senhora Angelica ouvira a conversação do seu Antonio com Rosa Guilhermina, na manhã do dia em que se passaram as scenas ridiculamente funebres do capitulo anterior. Cousas ouviu ella que a obrigaram a benzer-se tres vezes, e queimar arruda no seu quarto, e no da pequena. Parece que a timida sexagenaria receava que o espirito mau, que vexava Rosa, viesse, por variar, entreter-se com o seu corpo immaculado.

Feitas as abluções, e comido o jantar, que benzeu tres vezes, e devorou com as pernas em cruz, receosa d'um ataque subterraneo do demonio, compoz a coca da mantilha, armou-se do rosario abençoado por Gregorio XVI, prendeu duas figas e um chispo de veado na alça do collête, e sahiu.

Da rua das Flores a Miragaya dava saltinhos como uma franga com as azas cortadas. Ao pé da antiga casa da Companhia, n'uma porta baixa de casa terrea, bateu a senhora Angelica. A porta foi aberta por uma velha inqualificavel, indefinivel, mistura de todos os animaes repulsivos desde a santopeia até á cegonha. Era a senhora Escolastica, benzedeira, adivinha, mulher sabia, que praticava com o invisivel por meio da peneira e das cartas.

—Venha com Deus, devota de Nosso Senhor. Já sei ao que vem.

—Já? Louvado seja Deus!

—A Rosinha não quer casar.

—Nem á mão de Deus padre... Aqui anda feitiço. Queria que vmc.e me dissesse se o filho do retrozeiro, que se chama José, será o manfarrico que faz doudejar a cabeça da rapariga.

—Vamos a isso—disse a senhora Escolastica, carregando duas vezes de simonte a venta esquerda, que parecia um mexilhão aberto, e folheando um surrado baralho de cartas.

A senhora Escolastica benzeu-se, e pronunciou a seguinte oração, pondo as cartas em quatro montes, benzidas tambem:

«S. Cypriano, bispo e arcebispo fostes, sete annos no mar andastes, na vossa divina graça vos sustentastes, sete sortes pela vossa divina esposa botastes, no fim vos declarastes. Declarai-me aqui se a Rosinha anda de namoro com o José, filho do retrozeiro.»

E, depois, voltando-se, com ar sibillyno e tragico, para Angelica:

—Rosa é a dama de ouros; o José é o rei de ouros. Aqui sahe Rosa com o sete de espadas, que é uma paixão d'alma. Aqui está o José voltado para ella de corpo e pensamento, que é o valete de ouros. Sahe-lhe aqui outro homem, que é seu irmão; mas ella vira-lhe as costas, e dá-lhe más palavras, que é o cinco de espadas. No meio disto sahe-lhe aqui lagrimas, que é o cinco de copas, e a espadilha o affirma. Seu irmão aqui está com o sete de copas, que quer dizer comidas e bebidas, e ella vira-se para o sete de paus, que é um gosto grande, e o seis de paus pela porta da rua. Aqui está a dama de espadas, que é uma mulher de má língua por causa d'uns dinheiros grandes, que é o dous d'ouros, vê? ella ámanhã sahe por caminhos; aqui está o dous de espadas, e aqui está o az d'ouros, que é a igreja, e o quatro de paus que é a tumba... valha-me Deus!...

A senhora Angelica, côr de cidra, benzeu-se. Dito isto, a senhora Escolastica repetiu a miraculosa operação, e descobriu uma novidade. Novidade é uma carreira de cartas sem figuras. A novidade era a confirmação do quatro de paus, e um certo az de copas, cuja significação a benzedeira disse ao ouvido de Angelica, que fez uma carêta, e persignou-se. Carêta aquella, discreta leitora, que eu tambem fiz quando me contaram esta pavorosa historia.

Feito isto, as cartas foram substituidas pela peneira.

A senhora Escolastica, versada nos dous ramos de sortilegio, pôz de perfil a peneira, e metteu-lhe um Senhor crucificado, umas contas, e tres vintens em prata. Depois cravou em um dos lados os bicos de uma thesoura fechada, e outra thesoura do outro lado. Feito isto, com grandes tregeitos, e grave attenção da senhora Angelica, que murmurava o credo em cruz, disse a benzedeira:

«Peneira, tu que peneiras? Pão para toda a christandade. Pelo poder de Deus peço-te que me digas se a Rosinha ha de casar com o senhor Antonio; se tiver de casar, vira-te para a direita, e senão vira-te para a esquerda.»—A peneira oscillou alguns segundos, e ficou voltada para a esquerda.

A pobre Angelica deixou pender o beiço inferior, que, ha quatro annos, lhe tocava na ponta do nariz! Estava profundamente triste e aterrada! O seu ôlho esquerdo fallou da abundancia do coração. Uma lagrima, côr de agua-pé, rolou-lhe perguiçosa nas verrugas da face.

—Sabe o que mais, senhora Angelica?—disse Escolastica, commovida, e atufando a pitada na fossa anfractuosa da venta direita—sabe que mais?... vamos prender a rapariga.

—Isso será cousa de escrupulo, e eu tenho medo que Deus me castigue.

—Agora castiga... Ha de ensinar ao seu irmão esta oração: «S. Marcos te marque, S. Manso te amanse, os quatro Evangelistas te batam á porta do teu coração, Sanctissima Trindade te confirme na minha vontade, para que nem na cama, nem na mesa, nem no lar, sem mim, não possas estar, rir e fallar, e já, e já, e já com todo o pacto.»—Esta oração ha de seu irmão dizel-a, e quando disser com todo o pacto ha de dar tres vezes com o pé direito no chão. Passados nove dias, em que eu hei de rezar a novena das almas, e ouvir as vozes, appareça vmc.e por cá, e veremos se é preciso trazer roupa d'ella para a defumarmos nos quatro cantos com o fogareiro de S. Cypriano.

A senhora Angelica deu por bem empregados os seus dous patacões, e passou o resto da tarde a rezar os versos de S. Gregorio, e a novena de Sancta Apolinaria, em S. João, onde estava, n'esse dia, que era sexta feira, exposto o Sanctissimo.

Ora aqui está d'onde vinha a irmã do senhor Antonio José da Silva.

Dobrada a mantilha, e a saia de durante, a senhora Angelica desceu a procurar seu irmão, e, farejando os cantos da sala, viu que ninguem lhe testemunhava a tremenda revelação, que ia fazer-lhe.

—Então já sabes o que acontece?-perguntou elle, emborcando o segundo pucaro de limonada.

—Que foi, meu Antoninho?

—A Rosa vai-se, ámanhã, embora.

—Vai! Louvado seja Deus!... bem m'o disse a Escolastica!...

—Quem é a Escolastica?!

—É cá uma mulher, muito temente a Deus, que vê o que se passa na alma...

—Deixa-te de crendices... não creias em maranhões...

—Credo! não digas tal, Antonio, que não vá Deus castigar-te, e ella sabel-o... Se tu soubesses o que ella me disse...

—Não sei, nem quero saber... Has de sempre ter essa mania! Pergunta ao padre Leonardo por isso, e verás a rizada que elle te dá...

—Bem me importa a mim a risada do padre Leonardo!... Não... aquelle não é cá dos meus!... Padres com filhas... não quero ir com elles nem para o céo... Sabes tu que o tal arcediago me parece jacobino!... Deus me valha, se pecco... Cala-te, bôca...

A devota mulher, incapaz de infamar, dava uma sonora palmada nos labios, quando apostrophou a bôca falladora, e lhe impôz silencio, que mais eloquente que a bôca, segundo diz o poeta latino, fallou assim:

—Tenho cá minhas aquellas com este padre!... Elle não diz missa, nem préga a quaresma, nem vai ás via-sacras, como o padre Aniceto, meu confessor, e o padre Benedicto dos Carmelitas, que reza os exorcismos. Deus me acuda—continuou ella em voz alta—mas não tenho fé com padres que tem filhas, e casam as mães com outros, de mais a mais com um pelitrão da França, que é hereje, e jacobino na alma e no corpo...

—Cala-te lá, que estás ahi a dizer parvoíces. O padre Leonardo é um homem honrado, que não vai ás via-sacras, mas tem temor de Deus. Lá, se deu a sua escorregadella, em bom panno cahe uma nodoa. E, se elle não fosse um bom pae, não obrigava a filha a entrar, ámanhã, no recolhimento de S. Lazaro.

—Que me dizes, Antonio da minha alma? Pois a Rosa vai para o recolhimento?

—Vai, podéra não!...

—Bem o disse a serva de Deus! Ai! que tudo nos vai sahindo como a benzedeira o disse... O az d'ouros, lá estava o az d'ouros, Antonio! Não tornes a fazer pouco dos adivinhamentos. Tudo m'o disse ella, e muitas cousas mais... Abençoados dois patacões!

—Ó mulher, tu pareces-me tôla! A impostora da velha podia lá saber isto! Botou-se a adivinhar!

—Ó Antonio, tu não me pareces catholico!... Sancto nome de Jesus! Pois, sem aquella de Deus, sabe lá ninguem futurar o que te ha de acontecer? Não sejas assim, meu bom irmão. Lembra-te dos inguiços que te fez Thereza (Deus lhe perdôe, se já morreu), aquella desavergonhada que tinha levado as tuas cuecas da roupa suja para as benzer uma feiticeira da rua Chã, e se não fosse a devotinha Escolastica ainda hoje terias o demonio á perna, Deus me perdôe!...

—Vai-te d'ahi, que a Thereza não tinha demonio nenhum...

—Não tinha não... Pois não lhe viste a abstrucção de ventre, que ella trouxe, e só com as rezas da Escolastica é que o berzebum a deixou a ella, e a ti? Valha-te o Senhor!... Diz-me com quem andas, dir-te-hei as manhas, que tens.

—Está bom... Vamos tratar de cear, que são nove horas.

—Está a Anna a segar o caldo... Antes d'isso quero dizer-te duas palavras.

—Diz lá.

—Mas não has de fazer modos de incredulo. Tu queres que a Rosinha case comtigo?

—Eu não.

—Não!... Minha mãe Maria Sanctissima!... Se eu te entendo...

—Quero que ella tenha por mim affeição de dentro... Contra vontade, não quero ninguem.

—Pois se eu te ensinar o modo de fazeres com que ella te tenha affeição de dentro?

—Vai bugiar! Tu cada vez estás mais tonta!

—Estou! pois olha que não é de velha.

—Isso não; mas já podias saber mais do mundo com sessenta e nove annos... És mais velha que eu quatorze.

—Então? achas que estou tonta como a velhinha tia Brizida, que já fez noventa e dous?

—Não sei... Sabes que mais? Mette um salpicão no pucaro, e leve berzebum as paixões, e quem com ellas engorda.

—Olha cá, Antonio... Não te quero assim... Pareces-me mesmo nos modos com os chichisbeos que vão ao theatro, e á missa das dez a S. Bento, por causa das freiras, que, Deus me perdôe, podem bem com a sanctidade que teem!... Andam sempre alli pelas grades aquellas namoradeiras, que nem me parecem religiosas, e esposas do Cordeiro immaculado, e fallam da vida do proximo!... Valham-me as cinco chagas, e a benta cruz.

—Vai pôr a mesa, mulher, e olha lá o que essa rapariga está a fazer, que eu vejo d'aqui o filho do retrozeiro á janella...

—Ah! vês? Não que ella faz-lhe amor de cá...

—Tu viste?

—Disse-m'o a Escolastica.

—Que leve a breca a tua Escolastica, que o meu gosto era dar-lhe com o covado no costado...

—Sancto nome! Tu que dizes, homem? Aqui cahe raio. Pede perdão á servinha de Deus, senão as palavras não te aproveitam...

—Que palavras?

—As palavras que hão de fazer com que a Rosa ande atraz de ti como a linha atraz da agulha. O caso é ter fé. Se as disseres, tu verás, Antonio!...

—São palavras para lhe dizer a ella?

—Não... Assim que a vires, has de dizer no teu coração...

—Cala-te ahi...

—Não me calo... tenho até escrupulo de me calar... Hei-de dizer-t'as. Ouve lá: «S. Marcos te marque, S. Manso te amanse, os quatro Evangelistas te batam á porta do teu coração, a Sanctissima Trindade te confirme na minha vontade... e... espera lá... deixa vêr se me lembra... ah! já sei... para que nem na cama, nem no lar, sem mim, não possas estar, rir e fallar, e já, e já, e já com todo o pacto.» Quando disseres isto, deves assim bater com o pé no chão uma, duas e tres vezes...

Á terceira, a senhora Angelica pilhou debaixo do pé o rabo desgraçado da gata, que soltou um doloroso grito, e vingou a affronta enterrando a unha no joanete esquerdo de sua ama. Angelica soltou um brado fremente de angustia. A gata rosnava, com o pello hirto, n'um canto da sala, e o senhor Antonio bascolejava com as nedias mandibulas uma gargalhada sincera.

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