Se eu bem lh'o dissesse, ella melhor o faria.
A indignação contra Elisa, n'essa tarde, cedeu o logar a novas sensações. A litterata punha a mão sobre o peito, e dizia: «Eu tenho aqui alguma cousa nova!»
E parece que tinha!
Lembrava-se de cinco situações, em varios romances, similhantes á sua. Encontrava-se a cada passo com a imagem de Augusto Leite. Achava extraordinaria a coincidencia de dous espiritos sublimes. Divinisava aquelle encontro, lançando ás largas costas da Providencia a predestinação de se verem creanças, e encontrarem-se na idade em que os corações não resistem ao superior destino da sua união. Não ha nada como a mulher espirituosa!
O futuro bacharel da sua parte não era tão metaphysico. Quando procurou Rosa já trazia na carteira um calculo aproximado do patrimonio da sua companheira de infancia. E depois que a ouviu, indagou as cousas de modo que o calculo não lhe falhava em 3$200. Era um poeta da força de quatro dromedarios em prosa villã. Tirem-lhe o francez, e ponham-lhe dezoito arrobas de carne, terão o seu digno tio Antonio José da Silva.
Na manhã immediata a senhora D. Custodia Hermenegilda da Silva, acompanhada de seu filho, e tres novellas vieram visitar a filha do arcediago. O academico depôz respeitoso a offerta nas mãos (que não chamo lindas, porque não minto) da agradecida menina.
As mil cousas da conversação, particularmente ácerca de Elisa, resumil-as-hemos na ultima pergunta, que D. Custodia, passeando no jardim a sós com D. Rosa, lhe fez emquanto seu filho, de proposito, folheava os romances da poetisa.
—Porque se não casa, menina? Precisa quem administre a sua riqueza, quem lhe sirva de companhia, e lhe mereça o seu bom coração. Casar pobre é uma desgraça; mas na sua situação, o casamento deve ser a felicidade de toda a vida. A tal não a aconselho eu com um homem estragado. Eu sou um triste exemplo d'essa leviandade. Meu marido era um letrado, muito sabio, o melhor advogado do Porto, mas o mais extravagante homem que imaginar-se póde. Casei contra vontade de minha familia, e por isso, quando meu marido dissipou a minha legitima e a d'elle, deixando-me por herança este filho que tanto me tem custado a educar, meu avarento irmão negou-me um subsidio para ajudar a formatura de seu sobrinho. Nasci em casa rica, e tenho sempre vivido pobre. Minha irmã Angelica é uma beata estupida, que nem irmã me quer chamar. Estas e mil outras infelicidades me tem obrigado a amaldiçoar a hora em que casei: mas... se me lembro de meu marido, que era um doudo infeliz, não lhe amaldiçôo a memoria.
—E se eu deparasse um homem como seu marido?
—Não dê esse passo cegamente, menina. Estude bem o caracter dos homens, e, quando encontrar um como meu filho, case-se, que é venturosa, e dá a ventura a um mancebo digno d'ella... Vejo-a pensativa!... Eu não lhe fiz pergunta nenhuma, senhora D. Rosa, a que a menina deva responder com a côr na face... Estou certa que v. s.ª, conhecendo a fundo as virtudes de meu filho, seria a primeira a chamar-me mãe... e, se as circumstancias a privaram de conhecer a sua, acharia em mim... Que sobresalto é esse?! Sente-se opprimida? Foi por lhe fallar em sua mãe?... desculpe-me, que eu não cuidei que a magoava...
—Não me magôa... Isto são reminiscencias da infancia...
—Conheceu a mãesinha?
—Mal me lembro... vi-a, sendo eu creança de seis ou sete annos...
—Ella já morreu?
—Penso... que sim...
—Que prazer não teria ella em conhecel-a tão linda, tão esperta...
—Talvez me odiasse, como me odiou...
—Pois ella...
—Não vê que me abandonou?
—Talvez violentada por circumstancias...
—Muito por sua livre vontade...
—Sim?! então era uma indigna mãe... e desculpe-me...
—De certo era... uma indigna mãe... meu pae nunca me fallou d'ella...
—Tal era a differença que elle conhecera entre mãe e filha... Ora, pois; não soffra por tal motivo, minha menina... Quer-me para sua mãe?...
—De certo... queria.
—Eu estou-me a rir... Esta pergunta não devia fazer-lh'a, sem que a menina tivesse do caracter do meu Augusto um seguro conhecimento... Isso ha de vir com o tempo; e, se o coração lhe não repugnar, acceite-o como marido... Não é rico; mas o seu patrimonio é o amor que elle tem ao trabalho, e o seu talento que lhe promette creditos similhantes aos de seu pae, que tratava pouco dos seus interesses. De pae a filho vai grande differença. Um pensava no dia presente; o outro pensa no dia futuro... Tem sido bem grande a minha impertinencia, não é verdade?
—Pelo contrario, deleita-me a sua conversação, e captivo-me dos carinhosos desvelos que emprega na minha ventura... Oxalá que eu nunca desmereça no conceito da minha amiga...
—Espero que assim seja... Diz-me o coração que teremos de ser muito, muito amigas, que viveremos unidas muitos annos, e que fallaremos com prazer do bello dia que temos passado... Ahi vem o Augusto!... sempre com os livros de volta...
—São as Cartas a Sophia por Mirabeau... Não pensei que a senhora D. Rosa conheceria esta obra...
—Porquê?
—Não é muito propria para leitura de meninas.
—Que tem? Se eu entendo as ideias d'esses livros, é que elles não me dizem nada novo; e se as não entendo, nada perco da minha innocencia.
—Acaba v. s.ª de apresentar uma ideia que opéra uma completa revolução na minha maneira de encarar as novellas! Tem razão!... Vejo que é não só sublime, mas até rasoavel no seu systema!
—Creia que disse a verdade; e, senão, despersuada-me que eu serei docil...
—Não a contradigo, minha senhora. Pelo contrario, sou da sua opinião. Minha mãe, esta menina é um anjo, e tem um talento extraordinario...
—Não o creia, minha senhora.
—Não preciso que m'o diga. Meu marido soube dar-me o gosto para apreciar o merito das pessoas. Se fiquei pobre de bens, posso afoutamente dizer que o não fiquei de intelligencia. A senhora D. Rosa Guilhermina é um portento. Ninguem dirá o que aqui está, sem se lhe importar com o mundo, onde as tôlas, com algum palavriado, recebem acclamações de espertas.
—Ai! eu não ambiciono lisonjas do mundo!... Gosto de saber, porque o meu espirito precisa d'este alimento.
—E o seu coração?—perguntou Augusto.
Rosa baixou os olhos, e a sua linda face, côr de cereja, fez-se mais linda.
—São horas de nos retirarmos—atalhou a irmã do negociante, que resumia em si a finura que a natureza caprichosa não quiz regularmente distribuir na sua numerosa e estupida familia.—Menina, dê-me um abraço.
Augusto apertou a mão de Rosa, que hesitava, não obstante as Cartas a Sophia... Despediram-se com requebros e olhaduras de varios modos, e feitiços, de parte a parte.
Seguiram-se as visitas regularmente. D. Custodia Hermenegilda acompanhava sempre seu filho. (Seja dito para socego da opinião publica.) A estanqueira reformou a sua opinião a favor de Rosa, e vingou-se em pedir trinta reis de divida de simonte, que a fiadeira intromettida lhe devia. A outra, que dobava, e cujo nome não me lembra, vingou-se da visinha, batendo-lhe á porta alta noite. Tantas vezes repetiu a graça, que se constipou, e constipação foi esta que a pobre mulher morreu no hospital, declarando, á hora da morte, que nunca vira entrar de noite homem nenhum em casa de Rosa, e que fôra a estanqueira que a mettera n'aquella alhada: declaração que fazia para que Deus não condemnasse a sua alma, traste, realmente, de que Deus, de bom grado, se dispensaria, e nós tambem.
As mulheres dos meus romances quasi todas são honestas pessoas, que se casam. Só quando de todo em todo não posso falsificar a tradição em honra das minhas heroinas é que as sacrifico ao nariz-torto das mães de familia, que, quasi sempre, exprimem com o nariz a sua justa indignação contra os romances em que os amantes não casam por fim.
Benignas senhoras, exultai, que a moral triumpha em todas as minhas obras. D. Rosa Guilhermina resolve casar-se na fórma do sagrado concilio tridentino e constituição d'este bispado com o senhor Augusto Leite. O juiz dos orphãos concedeu a licença, e o senhor Antonio José da Silva, embriagado da ventura propria, estimou que seu sobrinho arranjasse mulher com dinheiro, unica esperança, que elle negociante tinha de evitar as mendicantes perseguições de sua irmã.
Se imaginam que os noivos deviam dizer muito bonitas phrases, enganam-se. Namoraram-se pelas novellas, e liam ambos a pergunta e a resposta dos dialogos mais apaixonados. A senhora D. Custodia assistia a estas leituras, e lagrimejava de ternura.
A constante presença d'esta senhora ao lado d'elles, authorisa-me a dizer-vos que nunca as duas creaturinhas do Senhor tiveram occasião de adiantar-se um beijo por conta do matrimonio. Eu não sei que se tenha feito um namoro mais honesto que aquelle! É um gosto a gente encarregar-se de archivar estes casamentos que fazem honra ao genero humano! A intelligencia gosa, o coração consola-se, a virtude dança a polka, e o vicio envolve a cara hedionda no seu cache-nez!
Oh! Bemaventurados, em duplicado, aquelles que me lerem! O futuro fará justiça á candura das minhas intenções!