CAPITULO XVII

—Quem é aquelle peralvilho que bate á porta da D. Rosa?

Temos namoro, se dermos ouvidos á tia Bernarda Estanqueira, que mora na viella do Bomjardim, e que tem um ôlho na balança do simonte, e o outro, que por signal é vêsgo, na porta da filha do arcediago.

—Que berzabum de escanellado será aquelle, que parece que traz espartilhos! Valha-o a breca que tão tezo está! Aquillo não me parece homem cá do Porto! Parece mesmo um comediante d'aquelles que berram umas cantigas na casa das operas da Batalha... Ó tia Joaquina! (a tia Joaquina era uma visinha, que estava dobando ao sol) vmc.e não vê acolá aquelle ingarilho que já puxou duas vezes a sineta?

—Já vi.

—Conhece aquella avantesma que me parece mesmo o peccado?

—Conheço... ora se conheço!... Aquelle é o sobrinho do senhor Antonio da rua das Flores, que me tem dado muito pãosinho. Quando eu ia d'antes levar-lhe os novellos do algodão, aquelle menino era caixeirinho na casa; mas pelos modos elle agora estuda para doutor.

—Sim? pois olhe que d'aquelle magricellas não póde sahir grande doutor! Acho que um homem assim não tem boas as memorias, nem sustancias para saber lá aquellas cousas da justiça... Elle lá entrou... Quer vmc.e vêr que a delambida da rapariga anda de namoro com elle!...

—Agora!... Se fosse isso, elle não entrava assim ao pino do meio dia... acho eu!

—Boa vai ella!... Pois vmc.e pensa que as raparigas d'agora são como as do nosso tempo? Diz o fr. Manoel do Sancto Lenho, dos carmelitas, que já não ha vergonha nem temor das penas do inferno!... E quer que lhe diga, tia Joaquina? Quanto mais fidalgas, mais desavergonhadas!... Inda hontem a minha Euzebia, que está em casa d'uma certa fidalga que vmc.e sabe tão bem como eu, me contou que a sua ama estava com um inglez á janella a dar-lhe beijos, e que elle lhe dava beliscões nas pernas. A minha Euzebia deu fé d'esta pouca vergonha, sem querer; e a fidalga tambem viu que a rapariga deu fé; e disse-lhe depois: «Euzebia, nós cá as fidalgas podemos fazer isto que viste; e vós outras plebeas, não, porque não tendes nada senão a vossa honrasinha.» Ora que lhe parece isto? dá mesmo vontade de lhe responder: «Vá-se d'ahi, sua porca; se vossa excellencia tivesse o miolo no seu logar não consentia que lhe estivesse um herege lá do fim do mundo a beliscar as pernas, e a pôr-lhe os beiços no cachaço!» Fora com as libertinas!

—Tem razão, tia Bernarda... a religião é cá só para as pobres. As ricas o que querem é ir á igreja mostrar os aceios... Disse outro dia um prégador na Victoria, que a casa de Deus estava sendo uma feira, e que nosso Senhor pozera as pelicanas fóra do templo... As pelicanas são as fidalgas... Olhe lá... aquella sumelga, que alli mora, será fidalga?

—Acho que sim. O pae era o senhor arcediago de Barroso, e a mãe ouvi rosnar que era uma das taes pelicanas...

—Consta que tem muito de seu.

—Muitos bragaes, muita prata, não sei quantas moradas de casas, e uma quinta em Paranhos... Que comer não lhe falta; mas acho que a respeito disto (pondo o dêdo na testa) não regula lá grande cousa... Veio aqui ha dias á minha loja uma mulher de mantilha, ainda frescalhona, e perguntou-me muitas cousas a respeito da tal rapariga. Quem entrava, quem sahia, se ella andava pela rua, se tinha muitos aceios, em fim, eu fiquei com a pedra no sapato, e cá de mim para mim entendi que aquillo era uma refinada alcayota. Tambem hei de saber quem tu és—disse cá com os meus botões—e mandei, assim que ella sahiu, o meu galleguito atraz d'ella. Veio dizer-me que morava n'um baixo da rua Direita, e que se chamava Anna do Carmo...

—Eu sou da sua ideia... isso era de alcofeira, que vinha saber se lhe poderia entregar alguma cartinha d'aquelle fidalgo que mora á Victoria, e que tem o nariz apurado para as moças como gato para boches. Ha de ser isso...

—E olhe que não era outra cousa!...

—E eu até me parece que já o vi aqui passar uma noite.

—E eu tambem... Que signaes tem elle?

—É um pacabote baixo, com a carinha côr de cereja...

—É o mesmo, que eu vi, tem carinha côr de cereja, e os olhos a modo de...

—São azues...

—É verdade, os olhos são azues... Era o mesmo em carne e osso... E vmc.e viu-o entrar para lá?

—Não o juro; mas acho que entrou...

—Eu tambem não juro, mas parece-me que o vi entrar...

—Então é que entrou... Que horas eram?

—Meia noite, mais quarto, menos quarto.

—Era elle... foi ha de haver quinze dias... tia Bernarda...

—Ha quinze dias... é isso mesmo... por signal...

—Que estava vmc.e no hospital, tia Joaquina, e não podia vêr o que se passava na rua—interrompeu uma terceira, que estava fiando a um postigo.

—Quem a chama cá?—disse a velha desmentida.

—Não posso ouvir murmurar com mentira... nem me parece catholica!

—Ora metta lá a sua religião no pucaro e coma d'ella, ouviu, sua intromettida?

—Quem não quer ouvir não mente descaradamente.

—E que lhe importa a visinhança?

—E vmc.e que lhe importa aquella senhora que está mansa e quêda em sua casa?

—Se come por ella, ganhe a sua vida lá como podér, e deixe conversar quem conversa! Que lhe parece, tia Bernarda! sempre ha cada estafermo n'este mundo!...

—Isso ha!...—disse a tia Bernarda, retirando-se para o estanco a pesar dez reis de simonte.

—Estafermo será ella!—replicou a honesta fiadeira.

—Cale-se ahi, sua trapalhona!

—E vossê... sua lingua de trapos!

—Desavergonhada!

—Estupor!

—Bebeda!

—Pangaia!

—Feiticeira!

—Ladra!

—Ladra é vossê!

—E vossê come pela filha!

—E vossê quando casou já comia pelas suas, e tem quatro que não conhecem os paes!

—Ladra, ladra, ladra!

—Bebeda! bebeda! bebeda!

A tia Joaquina rematou a apóstrophe, erguendo-se, e corcovando-se um pouco com as costas para a visinha, e assentando tres palmadas que provocaram esta resposta do postigo:

—Fóra porca! regateira! vai vender sardinhas, grandississima beberrona!

Abriu-se uma janella de Rosa, e appareceu a cabeça do sobrinho do senhor Antonio da rua das Flores, como nol-o denunciou a desbocada Joaquina. Já não veio a tempo. O dialogo edificante emmudecera, e o observador correu a vidraça, dizendo:

—Não vi ninguem, minha senhora...

—É uma terrivel visinhança esta!—disse Rosa—estou anciosa pelo S. Miguel para occupar o meu predio da rua do Almada...

—Tem razão, minha senhora; o bêco é detestavel... Tornando á nossa conversação, disse-me v. s.ª que não conhecia meio nenhum de obstar ao casamento d'aquelle reloucado!

—Eu, pelo menos, ignoro os sortilegios que desmancham as loucuras d'um velho...

—Não ha meio de dissuadir a sua amiga?

—Já lhe disse que não, senhor Augusto, essa pessoa nem é minha amiga, nem é docil para ceder a instancias de ninguem. O que ella quer é ser rica, e a occasião que se lhe offerece agora, é a mais propicia ao complemento das suas ambições.

—É admiravel que ella, habituada com v. s.ª, não aprendesse a nobreza de caracter, e independencia com que a senhora D. Rosa repelliu a fortuna de meu louco tio!

—Bem vê v. s.ª que eu, se não sou rica, herdei a independencia, e Maria Elisa julgou pessimamente a minha alma. Suppoz-me capaz de lhe retirar a mão generosa que a tirára da servil condição de orphã... Quer tambem ser rica...

—V. s.ª desde creança mostrou um coração nobre. Lembra-se, ha quatro annos, quando pedia a meu tio que me deixasse ir para Coimbra estudar?

—Lembro, perfeitamente... e elle enganava-me, dizendo-me que sim, e por fim...

—Tinha-me traiçoeiramente preparado a minha ida para o Brazil, para se vêr livre das exigencias de minha pobre mãe, e irmã d'elle, que lhe pedia um subsidio para a minha formatura.

—E como pôde depois v. s.ª obter os meios para ir estudar, independente do subsidio de seu tio?

—Com o trabalho. Como sei francez, traduzo novellas, que vendo a um livreiro de Lisboa, e do escasso producto d'este trabalho fiz a minha independencia. Algumas dividas contrahi, na esperança de ser um dos herdeiros da riqueza de meu tio. Quando cheguei ao Porto, e me disseram que esse homem casava com uma orphã, pensei que era v. s.ª a feliz ou a infeliz destinada a essa gloria ou a esse sacrificio. Resolvi logo, em nome de minha mãe, e em nome da nossa amizade de infancia, vir supplicar-lhe que não tolhesse o nosso futuro, visto que v. s.ª era rica. E vinha cheio de esperança, na certeza de movel-a em nosso favor. Desgraçadamente enganei-me; mas, de todo o meu coração lhe digo que estimo vêl-a livre d'um perigo tal. Com a sua formosura, com a sua intelligencia, seria barbara a escravidão a tal velho, que o ouro, e só o ouro fez digno de vincular uma mulher nova áquelle quasi cadaver. Faz-me lembrar os supplicios de Mezencio!...

D'este arrazoado bem se vê que o senhor Augusto Leite, estudante do 2.º anno juridico, traduzia novellas, e conservava alguma cousa de memoria.

Rosa, tocada no sentimentalismo, respondeu:

—Commoveu-me a sua narração, senhor Augusto! Espero acredite que me amarguram os seus padecimentos, e déra quanto possuo para minorar-lh'os. Eu não me esqueço de que foi v. s.ª a unica pessoa de sua familia, que me não enjoava com os tregeitos, momices e impertinencias d'uma baixa educação. Sua mãe, que raras vezes vi, parecia-me uma celeste creatura. Muitas vezes me disse que tremia de me vêr n'aquella casa, porque eu era o instrumento com que seu irmão ameaçava destruir os planos de seus sobrinhos. Ella enganou-se, e elle tambem. Eu só posso ser escrava, quando a escravidão me fizer rainha. Olhei sempre com enjôo para esse velho, e por fim detestei-o... Hoje, porém, chego a lamental-o, porque vai ser um ludibrio de sua mulher. Quem ha de vingal-o, senhor Augusto, é Maria Elisa. A indole d'ella conheço-a eu perfeitamente. Seu tio vai ser a fabula do povo, e a sua nova tia ha de deixar nome; mas não deixará bens de fortuna que tirem da miseria os seus herdeiros...

—Quanto é suave ouvil-a fallar, senhora D. Rosa! Quem diria que o tenro botão abriria do seu seio uma linda flôr, com taes perfumes!...

—Muito agradecida, senhor Augusto... Eu tenho deixado fallar o coração, e creio que acreditará na extremosa vontade que tenho de ser prestavel...

—V. s.ª é uma divindade. Minha mãe virá abraçal-a como abraçaria... uma filha. Eu retiro-me com o coração embalsamado das suas palavras, e entrei com elle atravessado de agudos punhaes. As suas expressões são como a lyra do Orfeu, que adormecem as dôres, ou como a harpa de David que acalentava as tribulações de Saul! (extracto da LUIZA OU A CABANA DO DESERTO, pag. 26.) Ninguem diga que é verdadeiramente infeliz. Ha anjos, encarregados de cobrirem de flôres os espinhos que nascem sobre a carreira de alguns mortaes! (este é de pag. 31, de SOPHIA OU A DONZELLA HOUZARD, e não presta para nada hoje; mas n'aquelle tempo tinha novidade.) V. s.ª é um d'esses anjos, e eu sou o mortal que mereceu á Providencia Divina a benefica assistencia dos seus desvelos! (OS SYBARITAS OU OS SUBTERRANEOS DE PIOMBINO, pag. 41.) Se os meus labios não tem ardentes phrases, o meu coração arde em penas de serem frios os labios! (O HEROISMO DO AMOR, pag. 202.) Finalmente, não a importuno mais. Dê-me v. s.ª as suas ordens. (Isto agora é d'elle.)

—Espero que me faça muito recommendada a sua mãe, á qual offereço a minha casa; e v. s.ª, dignando-se honrar-me com a estima que outr'ora lhe mereci, muito me obsequeia vindo aqui passar alguns instantes de conversação.

—Eu tenho a honra de offerecer a v. s.ª as novellas que tenho publicado. Se fossem minhas, não me atreveria a tanto; mas, como são de bons authores, e apenas tem de meu a incorrecta versão...

—Penhora-me muito com a sua offerta, que acceito, grata á sua mimosa lembrança. Eu amo a leitura das novellas, e quando, nas que me offerece, estão vestigios da sua applicação, muito mais grata me será essa leitura.

—Serei eu o portador, se me der licença.

—Mais valiosa prenda devo reputal-a...

—Ás ordens de v. s.ª

—Muito boas tardes... Joaquim, acompanha este cavalheiro.

—Sem incómmodo, minha senhora.

—Permitta...

—Por quanto ha...

—Eu não consinto que vá só... não sabe as sahidas...

—Oh! minha senhora, é muito desvelo...

—É um dever... oh!...

—Ah! minha senhora... é muito...

—Não consinto...

—Por quem é...

—Muitos recados a sua mãe...

—Ha de presal-os infinitamente...

—Senhor Augusto...

—Senhora D. Rosa Guilhermina...

Emfim, despediram-se! Estavam bonitos! O tio e o sobrinho tocavam-se pelos extremos.

Rosa Guilhermina olhando-se a um espelho para ajuizar do merito da sua pessoa, momentos antes, dizia comsigo:

—Eis alli um perfeito mancebo! Ninguem dirá que é sobrinho d'aquelle bruto! Como é sublime! Aquella linguagem toca!...

Vamos vendo que a filha do arcediago dançava facilmente quando a linguagem tocava...

Faz ella muito bem. Está na flôr da sua idade, e Deus não lhe deu os talentos para escondel-os na terra. O seu coração anceia um confidente; o seu espirito ambiciona applausos, a sua alma não veio tão cheia de luz para se esconder debaixo do meio alqueire. N'esta especialidade, raras são as mulheres que não obedecem ao preceito do Evangelho. Se faltam a muitos outros, é porque o homem divino, que conhecia a fragilidade da creatura, dissera: «A carne do homem é fraca.» Ora, eu, pelos vastos conhecimentos que tenho de anatomia, affirmo que a carne da mulher não é mais forte.

E, por consequencia, se a senhora D. Rosa Guilhermina me dissesse:

—Vmc.e faz favor de me dizer se devo embalsamar com meus perfumes aquelle gentil moço, que me parece um genio?

—Embalsame-o, minha senhora; perfume-o á sua vontade (lhe responderia eu), e quando não tiver incenso, nem myrrha, sirva-se d'aquella offerta dos tres reis, que a historia do tempo pôz em primeiro logar...

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