A seu tempo saberemos até que ponto o senhor Antonio podia ser civilisado por sua mulher.
Agora vamos procurar Rosa Guilhermina.
Antes de entrarmos, reparemos n'esta mulher que bateu á porta primeiro que nós.
—Quem é?—perguntou da janella uma criada.
—Faz favor de dizer á senhora D. Rosa que está aqui uma mulher, que lhe quer fallar.
—Que lhe quer?
—A vmc.e não lhe quero nada, é a sua ama.
—Quer pedir-lhe alguma esmola?
—Sim, senhora, queria pedir-lhe uma esmola.
—Pois para isso escusa de fallar á senhora: pegue lá... Então não levanta do chão os dez reis?!
—Não levanto, porque lhe não pedi nada a vmc.e Já lhe disse que quero fallar com a senhora D. Rosa.
—A senhora D. Rosa não falla a mulheres de mantilha rôta... Se quer, queira, se não quer, ande sempre...
A janella fechou-se e a mulher da mantilha rôta sentou-se no degrau da porta.
Pouco depois, abre-se outra vez a janella, e apparece D. Rosa!
Vêde-a, já não é a rosa purpurina d'outro tempo!... A pallidez d'aquellas faces não é natural!... Alli, ha muita saudade do que foi, ou muito receio do que será! Aquelle desalinho não era d'antes assim... Rosa tinha tanto brio nos seus longos cabellos negros!... Enfeitava-os tanto de fitas e flôres!... E agora?... Aquelle lenço branco, que lhe apanha as tranças desgrenhadas, é tão desairoso!... Aquelle chaile, que lhe esconde as fórmas do pescoço mais lindo ao pé dos hombros mais artisticamente torneados, dá-lhe um aspecto tão triste de enfermeira do hospital... Que mudança!... faz pena!... Cahiu tão depressa da haste aquella flôr, que tinha tanta vaidade das suas petalas avelludadas, e da fragancia dos seus aromas!... Minha pobre Rosa, que é da tua philosophia!... De que te valeram os teus romances, se te devias amoldar aos typos dolorosos que lá encontraste!... Ai!... porque cheguei eu a interessar-me na tua sorte, se nunca te conheci!... Porque ha de esta phantasia pintar-me realidades, que me fazem dôres no coração, quando as vejo sahirem infelizes dos bicos da minha penna!... Tenho cousas de muito creança, leitores!... Desculpai-me estas imbecilidades...
Para que vieste tu á janella, Rosa, se quasi me obrigaste com a tua pallidez a discorrer com ternura sobre cousas que me fazem lembrar mil outras, e tão tristes são ellas, que nem eu sei se era mais feliz não vindo ao mundo para recordal-as, ou, ao menos, vêl-as, e esquecel-as para sempre... Forte puerilidade!... Se me não chamam para jantar, n'este momento, eu reduzia-me á situação piegas de verter uma lagrima... por quem?
Uma lagrima!...
Sabeis o que é uma lagrima d'um homem!... É a perdida essencia do sangue que nos alimentaria a existencia longos annos!...
A mendiga, ouvindo abrir-se a janella, ergueu-se, voltou a face macilenta para cima, e cortejou D. Rosa.
—Quer alguma cousa, mulher?
—Queria-lhe dar duas palavras, minha senhora.
—Então diga d'ahi.
—Eu bem queria dizer-lh'as de perto.
Rosa voltou-se para dentro, e mandou abrir a porta. A mulher subiu, e encontrou a senhora no topo da escada, perguntando-lhe o que queria.
—Venho pedir-lhe uma esmola.
—E para isso era necessario subir? Dissesse-o da rua, que eu mandava-lh'a lá dar.
—Uma teima assim!...—atalhou a colerica criada—Eu já lhe tinha deitado á rua dez reis, e ella não levantou do chão a esmola... O que vossê merecia sei eu...
—Não se zangue tanto, menina... Bem me basta a minha pobreza. Lembre-se que não está livre de chegar ao estado em que me vê... Outras mais ricas, e com bem melhores principios que os seus, teem tido este fim...
—De mais a mais quer dar leis!—interrompeu a cosinheira, animada pelo silencio approvador de sua ama—Sabe que mais, minha senhora? mande-a pôr no ôlho da rua, que, emquanto a mim, essa mulher não vem para fazer boa obra... Eu cá vou queimar arruda...
—Tome lá...—disse Rosa Guilhermina, offerecendo-lhe um pataco.
—Seja pelo divino amor de Deus...—disse a mendiga, beijando a esmola.
—Então não se vai embora?
—Ainda não, senhora D. Rosa Guilhermina... Tenho duas palavras a dizer-lhe muito em particular...
—Que negocios poderei eu ter comsigo?!
—Negocios nenhuns; mas Deus não deu lingua á gente para fallar só em negocios.
—Diga o que quer mesmo ahi.
—Aqui não, porque a sua criada está ouvindo o que nós dizemos.
—E que tem isso? Eu não tenho segredos de que me esconda á minha criada.
—Mas vai tel-os agora, e bom é que ella não saiba o que vou communicar-lhe.
—Fóra com a alcoviteira!—exclamou a criada lá do interior—Má mez para ella!... Olha o estafermo que me apparece em jejum!...
—Esta sua criada, minha senhora, é bem pouco caritativa com os desgraçados, e v. s.ª não é melhor que ella, pelo que vejo...
—Está bom!—atalhou irada D. Rosa—Eu não admitto reflexões! Saia, que quero mandar fechar a porta.
—Pois devéras não me quer ouvir?
—Não, já lh'o disse.
—Pois ha de ouvir-me, digo-lh'o eu.
—Se cá tivesse o criado, mandava-a pôr no meio da rua.
—E a senhora para isso precisa d'um criado? Eu sou uma pobre velha sem forças... qualquer sôpro me faz cahir, e a menina mesma póde empurrar-me por esta escada abaixo...
—E esta? já se viu um descaramento assim? Vossê parece-me uma mulher sem vergonha!...
—Pois tenho muita, e principalmente agora. Sabe Deus com quanta vergonha eu vim pedir-lhe uma esmola.
—Mas, se eu lhe dei a esmola, porque se não retira?
—Não me retiro, porque os desgraçados não se satisfazem só com pão... precisam d'outras consolações, que a menina póde dar-me.
—Pois que quer?
—Queria que me deixasse sentar um bocadinho nas suas cadeiras... Estou muito fatigada, falta-me já a força n'estas velhas pernas, que tanto andam, e tão pouco caminham... Tudo me falta... até a vista; nem já a menina me parece o que era aqui ha um anno!... Deve ter feito uma grande mudança a sua vida!... Vejo-a tão coadinha... A menina soffre do corpo, ou da alma?
—Que lhe importa do que eu soffro? Não soffro d'uma nem d'outra cousa...
—Pois louvado seja Nosso Senhor!... Felizes aquelles que assim o podem dizer... Pois veja que differença... Eu soffro de tudo...
—E que culpa tenho eu disso?
—Nenhuma, nem eu a culpo, senhora D. Rosa Guilhermina...
—Faz favor de sahir, que quero recolher-me?
—Está o almoço na mesa—disse a criada.
—Se a menina consentisse que eu tomasse uma chavena de chá comsigo...
—Comigo?... essa é boa!
—Envergonha-se d'isso? Pois olhe que não descia de quem é, porque os pobres foram sempre os amigos, com quem Jesus Christo repartiu o seu pão, e os seus peixes.
—Parece-me esperta de mais para pobre...
—Pois é de obrigação que todos os pobres sejam brutos! Então dá uma chavena de chá... a sua mãe?...
—A...
—A sua mãe!
—A minha mãe!... Quem é minha mãe?
—Falle baixo que a não ouça a sua criada!... Não lhe tinha eu dito que era bem melhor ouvir-me em particular!... Espanta-se de mais, menina? Pois não sabia que tinha mãe? Não soube ha um anno, que ella precisava de recorrer á sua generosidade? Não calculou, que, mais hoje ou mais ámanhã, a sua desamparada mãe devia cobrir esta mantilha esfarrapada para vir receber dez reis da mão de sua criada?
—Eu não a reconheço como minha mãe... Eu já colhi informações de que minha mãe não existia... Meu pae nunca me disse que eu tivesse mãe viva!
—Deus perdôe á alma de seu pae... Não lhe quero por isso amaldiçoar a memoria... Pois, quer me acredite, quer não, esta desgraçada mulher, que não conhece, esta velha, que ainda não tem quarenta e quatro annos, é sua mãe.
—Não acredito, já lh'o disse... Prove-me que é minha mãe, e eu lhe farei aquillo que já lhe quiz fazer, se vmc.e é uma tal Anna do Carmo, que morou na rua Direita.
—Sou uma tal Anna do Carmo, que morou na rua Direita, e agora mora no pateo dos conventos, esperando a tigella de caldo da caridade. Bem vê que soffri muito antes que viesse importunal-a. Não disse a ninguem que a menina era minha filha para a não envergonhar. Lembrei-me de que sendo eu moça e rica do muito que seu pae me dava, não gostei de que minha pobre mãe viesse um dia procurar-me para me pedir doze vintens para comprar uma gallinha para minha pobre irmã, que morreu de miseria depois d'um parto... Lembrou-me o quanto eu me vexei então, e quiz poupar minha filha a similhantes vergonhas, que só sabe o que ellas são quem passa por ellas. Agora, se aqui vim, é porque de todo em todo já não podia levantar-me das palhas para ir de manhã procurar a bemdita esmola no pateo de S. Bento e de Sancta Clara. Sinto-me quasi sem vida, tenho um aneurisma no coração, e queria vêr se morria descansada para me reconciliar com a misericordia divina... Se não fosse isto, minha filha, eu não vinha de certo aqui, de mais a mais, tão rota, tão magra, indigna de me chamar sua mãe...
Rosa Guilhermina tinha soffrido um abalo, e parece que as lagrimas iam saltar-lhe involuntariamente dos olhos. Mas a criada, que viera collocar-se, sem ser vista, na alcova proxima da sala, adivinhando a commoção de sua ama, resolveu salval-a das arteirices da velha, e tomou a palavra, saltando para o meio da sala, com a mão na cintura:
—Pois v. s.ª acredita o que lhe está dizendo essa onzeneira?
—Não... eu não acredito, mas tenho pena d'ella... Coitadinha... é a necessidade que lhe ensina estas mentiras... Quer vmc.e uma chicara de chá?
—Não, menina, eu já não quero a sua chicara de chá. Deus Nosso Senhor dá-me forças para que eu possa viver sem a sua esmola. O que eu queria era morrer, abraçando-a ao meu coração, e chamando-lhe filha...
—Será ella douda!—atalhou a criada.
—Não sou douda, não... Não receie que eu lhe quebre as suas jarras... Estou no meu perfeito juizo... Estejam descansadas que não farei doudice nenhuma. Se fosse ha um anno, poderia fazel-as... Hoje, já não... A desgraça enfraquece a gente, e apura o entendimento... Conheço muito bem minha filha...
—E ella a dar-lhe com o minha filha!...—interrompeu a criada.
—Ouça-me emquanto ella se ri, menina, que o que eu vou dizer-lhe ha de fazel-a chorar. Conheço muito bem que não tenho direito nenhum a pedir-lhe o amor, que se deve a uma mãe... Eu quasi que a não reconheci minha filha. Dei-a ao mundo, e o mundo assim como a fez feliz podia fazel-a muito mais desgraçada que eu sou... N'este mesmo momento, em que venho aqui expiar as minhas culpas, confessando-lhe que fui tão desnaturada mãe, olhe que lhe não tenho amor, nem me offendo com o seu desprêso. Por força assim devia ser... Se não fosse assim, eu não acreditava na justiça de Deus!... Se a minha filha me tivesse atirado com um pontapé á rua, eu havia de levantar-me, se podésse, para lhe dizer: «eu te perdôo, filha de Leonardo Taveira!» Veja que bom coração eu poderia ter-lhe dado, se tivesse, quando a expulsei de meus braços, um presentimento de que viria uma hora em que eu precisava das suas consolações...
D. Rosa chorava, e a propria criada sentia-se amollecer no coração.
—Entre para esta sala—disse a filha do arcediago commovida.
—Não entro, minha filha, eu vou retirar-me; disse-lhe tudo, levo o coração mais desabafado, e creio que a não offendi... Se a magoei, diga-m'o, que lhe quero pedir perdão.
—Entre...—balbuciou Rosa, offerecendo-lhe a mão..
—Não... já lh'o disse... aqui tem os seus dous vintens, molhados de lagrimas, que são a usura d'este emprestimo... Dentro d'essa sala não posso entrar como mendiga: se eu podésse visital-a, como senhora, viria muitas vezes aqui, e talvez lhe podésse fazer serviços que a poupassem a muitas desgraças no futuro... Assim... adeus!...
—Não consinto que se retire; quero informar-me de quem a senhora é. Se fôr minha mãe, hei de tratal-a como quem é...
—Por ser sua mãe, não sou ninguem, minha filha... A menina não me honra, nem me deshonra. Não tenho senão remorsos de a ter dado ao mundo, como posso eu ter vaidade de ser sua mãe!... Fique com Maria Sanctissima, e diga á sua criada que não é do agrado de Deus insultar assim as pessoas infelizes... Chame-a aqui, menina, que me quero despedir d'ella...
A criada veio, instada por D. Rosa.
—Não se afflija, moça!—disse Anna do Carmo—Não tenha pesar de me ter offendido, que eu perdôo-lhe de todo o meu coração... Tire d'aqui uma experiencia para todas as pessoas necessitadas... O seu zêlo por sua ama é demasiado... Receava que eu lhe pedisse algum vestidinho velho dos que vmc.e espera que sejam seus? Não vim a isso... E para que se lembre do que esta velha da mantilha rôta lhe disse, quero deixar-lhe uma lembrança de mim... Pegue lá...
—O quê?—perguntou a criada, recuando a mão.
—É uma peça de quatro mil reis, com que vmc.e póde comprar umas arrecadas... Acceite que lh'a dá a pobre mãe de sua ama!... Não quer?... Ora pois, Deus lhe dê muito que dar...
A ama e a criada ficaram perplexas, encarando-se estupidamente, emquanto Anna do Carmo sahia. Quando vieram á janella para vêl-a, ia já na extremidade do bêcco, mas á porta de D. Rosa estavam dous homens, que conversavam apontando para a mulher da mantilha rôta.
—Não a conheceste?—dizia um.
—Eu não, nem tenho pena—respondeu o outro com desprêso.
—Pois não conheces aquella mulher?
—Não... já t'o disse...
—Pois não conheceste a fidalga, que ha tres mezes comprou a quinta dos Engenhos, na ponte de Ramalde!
—É aquella?
—É... dou-te a minha palavra d'honra que fui eu o tabellião que lavrei a escriptura, e contei os doze mil cruzados.
—Mas então que historia é esta!... Ella vai assim rôta!
—Eu sei cá o que é! É o que tu vês...! Eu, logo que a avistei aqui n'este sitio, conheci-a, e ella puxou para o nariz a côca da mantilha...
—Que celebreira!... eu ainda hontem a encontrei a passear n'um jumento, com lacaio ao lado; e até me disseram que o fidalgo das Laranjeiras queria casar com ella.
—Tu não sabes a historia d'esta mulher?
—Eu não... ouvi dizer que fôra casada com um livreiro, aqui no Porto, e que depois ficára rica...
—É verdade... foi casada com um livreiro; mas o livreiro não deixou fazer o ninho atraz da orelha, e foi-se embora para a França, onde morreu. A tal senhora parece que lhe não foi fiel, e, na ausencia do marido, menos o foi ainda. Viveu na companhia do celebre arcediago de Barroso, que foi mandado sahir pelo bispo, e morreu na Hespanha. O padre era muito rico, e por muito tempo ninguem soube que fim levou o grosso cabedal que elle lá trazia comsigo. A final, ha de haver seis mezes, morre lá uma freira, que, á hora da morte, declarou que o tal arcediago lhe deixára em seu poder quarenta mil cruzados em ouro, para ella fazer entregar a Anna do Carmo, moradora não sei aonde. A freirinha, só á hora da morte se lembrou de cumprir o legado, e o caso é que não se lembrou mal, porque a pobre amante do arcediago estava vivendo miseravelmente ahi na rua Direita, e quando a procuraram para lhe dizer que se habilitasse para receber a herança, a pobre mulher já se não levantava da cama com fome. Ora aqui tens a historia da tal riqueza...
—Mas por ahi dizem que ella é fidalga...
—Isso é uma historia á parte. Apenas a mulher appareceu rica, soube que era fidalga, porque a fizeram fidalga á força, uns taes que moram ahi atraz da Sé, dizendo que ella era filha bastarda da casa. Começaram a visital-a, a hospedal-a, a chamar-lhe prima, e tem querido leval-a para a sua companhia... Ora, ahi tens a historia da mulher da mantilha... Quem me déra saber o que ella andaria a fazer por aqui... Eu parece-me que ella sahiu d'esta casa...
O tabellião olhou machinalmente para a janella, e viu esconderem-se duas cabeças: eram D. Rosa e a sua criada, que se retiravam espantadas do que tinham ouvido. E tinham razão. Eu, por mim, tenho-me espantado com cousas muito mais pequenas. Mas o que devéras me espantou, foi dizerem-me que Anna do Carmo, quinze dias depois, estava casada com o ex.mo snr. ***, fidalgo, morador atraz da Sé, e fôra, ipso facto, reconhecida prima de todas as familias illustres do norte desde os Leites até aos Albuquerques, desde os Cogominhos até aos Malafaias!