O senhor Antonio José da Silva deve ter movido a compaixão interessante das damas, e talvez o desprêso dos briosos maridos, que, no logar d'elle, tinham pelo menos degolado suas mulheres, e lavado a sua nodoa em sangue.
Eu lhes digo: faziam uma solemne asneira, e arrependiam-se, depois, como o senhor Antonio (que não era menos brioso que v. exc.as e s.as) se arrependeu de ter superficialmente condemnado sua mulher.
D. Maria Elisa convenceu o candido marido de que effectivamente tinha um primo, filho d'uma irmã de sua mãe, que morrera pobre, e o deixára abandonado. Que esse infeliz primo se tinha dirigido á sua compaixão, pedindo-lhe alguns sobejos da sua fortuna para alimentar a penosa existencia. Que ella, como esposa e dona de casa, responsavel pelos cabedaes de seu marido, se negára, muito tempo, a dar-lhe os supplicados recursos; mas, por fim, taes foram as instancias, que a seu pesar, não pôde deixar de ceder aos impulsos do coração, que lhe mandavam soccorrer o infeliz com as migalhas da sua mesa.
O senhor Antonio chorava de piedosa ternura, quando sua mulher, cada vez mais eloquente e philantropa, continuou:
—Com o receio de que a vinda de meu primo a esta casa suscitasse suspeitas malevolas, disse-lhe que me esperasse algumas vezes na Ponte-da-Pedra, e eu, indo sósinha a passeio, lhe daria o que podésse esconder aos olhos de meu marido, sem que elle desse pela falta, que de certo era um crime...
—Pois não fizeste bem, Mariquinhas! É o que eu te digo, e perdôa... Se me contas o caso, era eu o primeiro a dizer-te que podias dispôr á tua vontade do que ha n'esta casa, porque o que é teu é meu, e o que é meu é teu.
—Pois sim; mas eu não tenho ainda um cabal conhecimento do seu caracter. Receei que me levasse a mal esta caridade com um meu infeliz parente, e não ousei manifestar-lhe um desejo, a que o meu bom marido annuiria mais por delicadeza, que por vontade do coração. Agora, que tudo se declarou, não quero que o senhor Silva se mortifique por me ter offendido com as suas imprudentes calumnias. Faça de conta que não houve entre nós a mais ligeira desintelligencia. Estamos quites: o senhor fez-me uma injustiça, reputando-me desleal; e eu fiz-lhe outra, julgando-o sôffrego da sua fortuna, e incapaz de estender a mão bemfeitora a meu desgraçado primo!...
—Ora, pois, não nos lembremos mais disso... Eu agora o que quero é saber onde mora esse teu primo, porque sou eu o mesmo que propriamente lhe quero ir levar os recursos necessarios para a sua subsistencia... Onde mora elle?
—Onde mora elle?... (Maria Elisa não esperava esta! O improviso não era o seu forte, e viu-se na mais embaraçosa atrapalhação). Eu, se quer que lhe diga a verdade, não sei bem onde elle mora... mas deixe passar alguns dias, e talvez que elle aqui mande algum recado...
—Pois então logo que elle appareça, farás favor de lhe dizer que eu quero fallar com elle... Mas tu não conheces ninguem (tornou o suspeitoso marido depois de reflectir um momento) que saiba onde elle mora?
—Não, senhor.
—Não?... Eu não sei o que me parece isto, a fallar-te a verdade!... Aqui anda dente de coelho!... Pois ninguem, ninguem?
—Talvez me lembre d'uma mulher que aqui veio trazer-me uma carta d'elle, e me disse onde elle morava... Deixe-me recordar, e depois lhe direi...
—Pois olha lá se te lembras... Eu sempre quero vêr os focinhos ao teu primo... Acho que a cousa assim não vai bem...
—Que é o que não vai bem?!
—Eu cá me entendo...
—Isso que quer dizer? Explique-se, senhor Silva... Nada de mais palavras... Não está ainda satisfeito com a explicação?...
—Podia estar mais, se queres que te diga cá o que tenho no meu interior...
—Pois não sei que lhe faça. Creia, se quizer, e, se não quizer não creia. Vai-me fazendo subir a mostarda ao nariz!... Eu não lhe dou direito a duvidar da minha palavra. Se cuida que lida com sua irmã, engana-se. Tenho uma face para o amor, e outra para o odio. Sei amar, e sei aborrecer... Entende-me, senhor?
—Mas a que vem todo esse farelorio? Que te disse eu para tanta arrenegação?
—Parece que duvida da explicação que lhe dei do meu comportamento?! Esse direito só o dou á minha consciencia!
—Tem a menina muita razão; mas, eu, sim, acho que... parecia-me que não sou mau homem, nem mau marido, se tenho cá minhas comichões de conhecer seu primo!...
—Se tem comichões, coce-se... é o que eu tenho a dizer-lhe... E de resto, se quer esperar que meu primo appareça, espere; e se não, procure-o até encontral-o.
D. Maria Elisa retirou-se enfronhada, e foi feliz n'esta lembrança, porque o senhor Antonio precisava de similhante reacção para entrar nos justos limites d'um marido exemplar, como todos os maridos que não tem pública-fórma.
Que é pública-fórma d'um marido? Eu sei cá... Lembrou-me isto; se me lembra, em logar de pública-fórma, dizer uma sandice mais compacta, creiam que não era homem de a deixar no tinteiro, porque, se ha inviolabilidade n'este mundo, é para todas as sandices que se escrevem. D'este peccado tenho eu a dar sérias contas a Deus; mas quem de certo não deu nenhumas, quando d'este mundo se partiu, foi aquella alma gentil do senhor Antonio, que nunca publicou asneira nenhuma, honra lhe seja feita! Se vivesse hoje tinha pelo menos escripto para os jornaes uma carta, renunciando a sua candidatura, ou qualquer outra trapalhice da barbara linguagem do systema representativo.
N'aquelles felizes tempos, as asneiras desciam á sepultura com o individuo; e d'essa grande sementeira creio eu que nasceram as muitas que hoje amadurecem no jornalismo, e entre as quaes peço ao publico imparcial que classifique a minha da «pública-fórma do marido» pelo que me declaro já summamente penhorado, como todos aquelles que se retiram d'um baile ás cinco horas da manhã.
Por não esgotar as frioleiras de que disponho, saberão, estimaveis leitoras (se me dão a honra de me dirigir a v. ex.as, como quem quer divertil-as da seriedade austera das suas cogitações) que D. Maria Elisa entrou no seu quarto, e escreveu uma longa carta ao senhor Fernandes, contando-lhe miudamente os infaustos successos.
Na manhã do seguinte dia, a anciosa esposa recebeu a seguinte resposta:
«Não te afflijas. Hoje de tarde ahi vai teu primo. Falla pouco, e deixa-o fallar a elle.»