CAPITULO XXVI

A viuva do honrado negociante, que passou da terra sem um necrologio, escreveu a Rosa Guilhermina uma carta que era um grito supplicante á sua amiga d'outro tempo. Pedia-lhe que viesse, porque a chamava de ao pé d'um cadaver. Só, sem amigos, e rodeada de riquezas inuteis, appellava para a unica pessoa capaz de avaliar a sua orphandade.

Rosa Guilhermina entrou com o portador da carta. Abraçaram-se, chorando. Fecharam-se, para se furtarem ás formalidades estupidas das visitas funebres, que nos vem dizer: «sinto muito» e nos obrigam a responder: «muito obrigado.» Dous dias e duas noites quasi não tiveram um intervallo de silencio. Soffriam ambas, soffriam muito, e já não sabiam adubar as conversações d'aquella fina especiaria de risos, que tanto promettiam, e em tantas lagrimas deviam converter-se depois.

—Já não somos as mesmas, Maria Elisa!—disse Rosa, abraçando a sua amiga, que lhe inclinava o rosto pallido no hombro.

—Já não... A nossa mocidade foi um dia... Parece-me que vivo ha muito... Tem-me lembrado a morte, como o maior beneficio que posso esperar do céo...

—E eu tenho-a pedido tantas vezes!...

—Tambem soffres, Rosa?! Não tens um esposo amado?

—Não.

—Como não? pois não casaste por paixão?

—Casei... e depois, vi que me tinha perdido...

—Pois que? elle não te estima?

—Não... arrasta-me na sua desgraça... Meu marido é um homem perdido... um ente sem honra, nem futuro, nem presente.

—Pois teu marido não está a formar-se em Coimbra?

—Já não trata d'isso... Meu marido é um jogador.

—Jogador!

—Sim, jogador de profissão... Gastou quanto podia gastar do meu patrimonio... O pouco que possuo para a minha subsistencia e de minha filha, tira-m'o com violencia. Foi riscado da universidade, veio ao Porto vender aquella prata, que tu déste a minha filha, depois de a comprares a meu marido, e foi para Lisboa, sempre acompanhado d'uma mulher ordinaria, que viveu na minha companhia quinze dias, e ousou dar ordens das minhas portas a dentro. Ha cinco mezes que não tenho, noticias d'elle. Nem ao menos me pergunta por sua filha. Sei que vive, porque, no fim de cada mez, se apresenta em minha casa uma ordem assignada por elle para eu pagar quasi tudo que o juiz dos orphãos arbitrou para o sustento da minha familia... Aqui tens a minha vida... Estou pobre... Maria Elisa!...

—Tu não estás pobre, Rosa! Não me falles assim, que me fazes chorar! Tu não estás pobre... Eu preciso que te esqueças de todo o nosso passado, para entrares de novo no coração de Elisa... Queres ser minha? Eu estou viuva, e viuva tambem tu estás... O teu coração não é já d'esse homem... É da tua filha, e meu; a tua filha é minha e tua, sim?... Não chores... Troquemos entre tres as nossas affeições todas... Vivamos n'uma só vontade... Foge para os meus braços, que não tem no mundo ninguem que os queira, a não seres tu... Faz-me outra vez sorrir para a vida, que n'estes ultimos dous annos me tem sido tão negra... tão negra... Rosa! Faz que a minha riqueza me seja uma cousa agradavel... Dá-lhe algum prestimo... Só tu podes, se vieres ser outra vez minha irmã, explicar-me a razão por que eu queria ser rica... Era para isto, era, minha querida amiga, era para nos fazermos felizes tres creaturas... eu, tu, e a nossa menina... Vai buscal-a... Vai... Não me digas que não... que me matas... Essa mesada que tens dá-a a teu marido... Que jogue, que se deshonre, mas foge-lhe tu, que não tens ainda uma nódoa na tua vida... Vem ensinar-me a ser boa, e honrada, porque eu tenho sido...

—O quê?... que tens tu sido?...

—Uma desgraçada...

—Tambem eu... que culpa temos nós?!

—Eu?... muita!... Calemo-nos, Rosa... Olha aquelles sinos pezam-me sobre o coração... Tenho mêdo d'aquelles sons... Se meu marido tivesse sido n'esta vida um homem, como eu deveria ter encontrado um, eu pensaria que aquelle dobre era a voz d'elle que me accusava da eternidade... Ai!... tu ignoras a minha vida? Parece impossivel!... Nunca ouviste fallar de mim como se falla d'uma infame mulher?

—Nunca...

—Pois pergunta ao mundo o que eu fui... Não, não perguntes nada... Ignora tudo. O meu coração para ti está puro... Restituo-t'o como t'o roubei, ou tu o lançaste de ti para fóra... Não te importem os meus defeitos... Foi um sonho horrivel! Acordei nos teus braços... quero aqui viver... Deixas-me esquecer aqui do muito que tenho soffrido?...

Rosa Guilhermina recebia com lagrimas as meias confidencias de D. Maria Elisa, quando lhe disseram que seu marido a procurava, por saber que ella estava alli.

A surpreza brutificou-a.

Maria Elisa mandou subir Augusto Leite, e reanimou a sua amiga do lethargo em que a deixou esta apparição tão pouco desejada. Fôra preciso muito para que a pobre senhora aborrecesse seu marido.

Não bastariam para isso as dissipações que elle fizera do seu patrimonio. A mulher perdôa sempre os desperdicios de seu marido, com tanto que elles não envolvam uma affronta ao seu amor proprio, servindo de preço aos amores alheios que se vendem.

Não fôra, pois, o jogo que arruinara a felicidade de Rosa. Foi o descaro insultuoso com que Augusto, na sua penultima vinda ao Porto, lhe introduzira em casa a tricana das chinelas amarellas, mulher insolente que, authorisada pelo amante, ousara esbulhar os bragaes da casa, deixando a sua dona só os indispensaveis.

Estes vexames nunca se perdôam. A esposa, assim ultrajada, póde soffrel-os calada como martyr, mas não poderá nunca reservar um resto de affeição ao homem, que a humilhou assim.

Rosa entrou na sala em que era esperada. Quando deu de face com seu marido, que não vira nos ultimos seis mezes, desconheceu-o e recuou. Trazia a barba toda, que lhe augmentava a magreza cadaverica do rosto. Vestia uma velha sobre-casaca, de panno desbotado, encodeada na golla, e farpáda na botoadura. Os seus olhos pisados, mas ainda penetrantes do brilho da desesperação, fixavam Rosa com ar ameaçador.

Cruzando os braços com a importancia tragica d'um marido de tragedia, que vem, de longes terras, pedir contas a sua mulher, Augusto Leite disse, aproximando-se:

—Parece que me não conheces, Rosa?

—Vens tão mudado do que eras!... não admira que te não conhecesse, Augusto!

—Pois sou eu mesmo... Vejo que não sentes grande prazer com a minha visita...

—Não te esperava... Como ha seis mezes me não escreves...

—Entendeste que não havia nada commum entre nós... Pois, minha amiga, sou teu marido, apesar de ambos nós...

—Sinto muito que o sejas a teu pesar... Eramos ambos bem mais felizes, se o não fosses.

—Parece-te? a mim tambem; mas já agora o remedio é seres minha mulher, e eu teu marido...

—Fallas-me d'um modo que me fazes gelar o coração!... Que te fiz eu para me tratares assim?

—Eu sei cá o que me fizeste!... não me fizeste nada... Penso que me tornaste mais desgraçado do que eu era...

—Vejo que sim; mas não era essa a minha intenção.. Eu quiz fazer-te feliz; se o não consegui, é porque não pude, nem tu me disseste o que eu devia fazer para a tua felicidade...

—O que me perdeu foi o teu dinheiro...

—Não tive culpa, Augusto...

—Eu, se fosse sempre pobre, não me illudia com as esperanças do teu patrimonio, e trabalharia, estudaria para chegar a ser homem...

—Que hei de eu fazer-te, Augusto!... Eu nunca te aconselhei que arruinasses o que te dei; se soubesse que o meu dinheiro te fazia infeliz, lançal-o-ia ao mar para me casar pobre comtigo... Mas, se eu fosse pobre, de certo me não quererias...

—Não sei, não me importa saber, todas as conjecturas agora são estupidas...

—Perdôa as minhas conjecturas... Eu d'antes era espirituosa, segundo tu dizias, que eu nunca o acreditei... Agora sou estupida, é porque a desgraça embrutece...

—Nada de ironias... Sabes que estou pobrissimo?

—Não sabia; mas acredito que o estás.

—Pódes avaliar a minha situação?

—Posso; porque eu tambem estou pobrissima.

—Menos que eu...

—Mais que tu... Tenho uma filha que sustento, e cheguei á extrema dôr de querer comprar-lhe um vestido, e tive de vender um meu, para que a minha filha te não envergonhasse... Avalias tu agora a minha situação?

—Diz ao teu tutor que te entregue o que tens, e tu administrarás...

—Já lh'o suppliquei muitas vezes. Não me concede cinco reis além da mesada que me arbitraram... Não posso conseguir nada... Emprega tu os meios, que eu concedo-te tudo; e, se não podéres alcançar mais do que eu, desde já te cedo toda a minha mesada, e eu e minha filha recorreremos á caridade da minha amiga Maria Elisa.

—Não quero caridades de ninguem: quero aquillo que é meu, quando não enterro uma faca no coração do tutor...

—Cala-te, Augusto, que me pareces demente!

—É porque eu realmente estou louco... Preciso sahir d'esta desgraçada vida em que me vejo... Quero dinheiro, Rosa, quando não vou com um bacamarte para as estradas...

—Augusto!—exclamou ella, tirando-lhe a mão do cabo do punhal, que empunhára instinctivamente no bolso interior do casaco.

—Tu não sabes onde a desgraça é capaz de me levar... A sociedade fez-me assim... Se perdi muito dinheiro, perdi o que era meu; não roubei nada a ninguem; e a sociedade infame despresou-me, chamou-me homem perdido, e cuspiu-me na cara, porque eu empobreci... Vi-me abandonado, e tornei-me criminoso... Estou cumplice n'um roubo, e, se dentro de tres dias, não dér um conto de reis, sou prêso, e degradado, ou pendurado n'uma forca.

—Oh meu Deus, que vergonha!...—disse Rosa, cahindo n'uma cadeira, e escondendo o rosto entre as mãos.

—Nada de exclamações... Esse remedio não me presta de nada... Visto que tens uma amiga rica do que era de meu tio, pede-lhe este dinheiro, se me queres salvar... Não me respondes?

—Augusto!... eu não posso responder-te já... Deixa-me possuir bastante do meu infortunio, para perder a vergonha...

—Isto não soffre delongas... Quero a resposta já...

—A resposta dou-lh'a eu—disse Maria Elisa, que apparecera de improviso.

Augusto cortejou-a ligeiramente, e Rosa ergueu-se tremula, e sentou-se logo, porque lhe faltavam forças para acolher-se ao seio da sua amiga.

Maria Elisa veio ter com ella, abraçou-a, deu-lhe um beijo, e levou-a comsigo para dentro. Voltando-se para Augusto, disse:

—Queira demorar-se, que eu volto já.

Augusto Leite sentiu um abalo que faria parecel-o louco a alguem que o visse. Não era loucura. Era o contentamento de se vêr possuidor d'um conto de reis, com o qual contava já. Era a esperança de transportar-se com elle a Hespanha a tentar a fortuna, visto que não poderia tornar a Lisboa, onde o perseguiam por crime de roubo de uns brilhantes, cujo valor perdera em menos de tres horas. Esta ideia salvadora produziu-lhe uma febre de loucura passageira. Encarou-se n'um espelho, e viu-se como um idiota, penteando as barbas com os dedos. Retesou os braços, espreguiçando-se, e murmurou por entre os dentes quasi cerrados: «ha um demonio, que me protege! Respeito-o mais que os sanctos, e hei de mostrar-lhe que sou agradecido...»

Maria Elisa voltou. Sentou-se no canapé, e fez signal a Augusto, offerecendo-lhe uma cadeira:

—Senhor Augusto, v. s.ª vai receber da minha mão uma quantia de dinheiro, que me não pertence, nem a sua mulher. É uma generosidade de sua filha, de que eu sou interprete...

—De minha filha?!

—Sim, senhor. Eu dei a quantia que vou confiar-lhe a sua filha, e fiquei sendo sua administradora. Quando ella estiver em estado de recebel-a, v. s.ª lh'a entregará. São tres contos de reis em notas. É um deposito sagrado que lhe confio. Espero que v. s.ª procure reconquistar a sua honra, e não lhe faltarão recursos para um dia entregar a sua filha esta quantia augmentada...

Augusto, balbuciante de prazer, não avistando d'um relance toda a extensão do seu futuro, murmurou:

—Eu farei por ser um digno depositario do dinheiro de minha familia.

—Agora, senhor, tenho a pedir-lhe um favor em nome d'ella.

—Qual?... a viuva de meu tio manda, não pede...

—A viuva de seu tio nem manda, nem pede nada. Repito-lhe que sou absolutamente estranha a esta troca de favores que faz o pae com sua filha. O que em nome d'essa menina lhe peço, é que consinta que ella e sua mãe vivam na minha companhia.

—É muita honra para mim, minha senhora. Eu vou fazer uma pequena viagem por causa de certos interesses, e durante a minha ausencia não posso confiar a mais valiosa protecção minha mulher e minha filha.

—Vai viajar?... Sua senhora já o sabe?

—Ainda lh'o não disse.

—Pois então... não lh'o diga... Salvo se tem motivos fortes para dizer-lh'o...

—Não tenho alguns... Era simplesmente despedir-me...

—N'esse caso, eu encarrego-me de fazel-a sciente do seu adeus, e v. s.ª de qualquer paiz lhe escreverá...

—Minha senhora... dispõe do meu quasi inutil prestimo?

—Empregue-o, que tem muito, em ser um digno marido da minha amiga, e um digno pae da menina que adopto como minha sobrinha. Além dos vinculos de parentesco que o prendiam a meu marido, ha outros mais consistentes que são os da amizade, que consagro a sua mãe.

Augusto Leite retirou-se. Maria Elisa, com o coração alvoroçado de prazer, foi abraçar Rosa, e exclamou, com quanto amor podia empregar na soffreguidão d'um beijo: «És minha para toda a vida!»

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