CAPITULO XXV

O senhor Fernandes quando respondeu, em duas linhas, á carta que Maria Elisa lhe enviara, contando-lhe os successos occorridos desde a fatal surpreza da Ponte-da-Pedra, procurou um seu amigo, cadete de cavallaria, e convidou-o a representar de primo para poder salvar a sua amante do risco.

O cadete, mancebo de maus costumes, e votado engenhosamente a toda a casta de maroteira, acceitou o papel e estudou-o com muita habilidade. Era necessario que D. Maria Elisa o não visse para obviar aos embaraços muito naturaes em tal surpreza. Fernandes inventára o desafio, e o cadete inventára de improviso a historia genealogica dos Pesicatos e Bemóes, que encaminhou ás mil maravilhas a historia do duello.

O comico, retirando contentissimo do bom exito da sua travessura, antes de procurar Fernandes, fez obra por sua conta, divulgou a brincadeira aos seus camaradas, que eram o tenente e alferes da companhia, e achou n'elles dous optimos bargantes para continuarem a caricatura.

Quando a ultima scena se passava no Serio, o senhor Fernandes, na rua das Flores, estava desesperado, porque previra que Maria Elisa levaria a mal este excesso de escarneo a seu marido. Elle bem sabia que nenhuma mulher consente que a desgraçada condição do marido ultrajado seja um brinquedo para o ludibrio do homem, que fatalmente a levou a uma fraqueza de coração.

Era tarde para remediar a imprudencia. Esperou, inventando pretextos que o reconciliassem com Maria Elisa, no caso possivel de ter ella sido testemunha da zombaria feita a seu marido.

Não se enganára. O cadete fora o portador da resposta enviada pelos officiaes. Fernandes, reprovando o procedimento do seu amigo, que dava grandes gargalhadas, e promettia contar o caso a toda a gente, escreveu a Maria Elisa historiando o acontecimento. Era impossivel salvar-se! Embora não tivesse elle sido o inventor do escandalo, quem expozera Antonio José da Silva fôra de certo elle, e Maria Elisa leu a carta, rasgou-a, e devolveu-lh'a.

Seguiram-se novas remessas de cartas, que ella nunca abriu. Deixou de sahir de casa, para não ser encontrada. Soffreu quanto póde soffrer o amor proprio. Não sentiu, por isso, mais interesse por seu marido; todavia córava, muitas vezes, diante d'elle, lembrando-se que o fizera descer tanto. Comprehendam-na, se podem! A sua consciencia estivera tranquilla até ao momento em que foi surprendida na Ponte da Pedra! O que lhe pesava não era a infidelidade; era o ultraje, que lhe fizeram a ella, escarnecendo um traste de sua casa, uma cousa que a sociedade chamava o «seu marido»!

Eu, se fosse mulher, seria isto, pouco mais ou menos, e levaria o meu nobre resentimento ao extremo de abominar o vaidoso amante que estabelecesse termos de comparação com meu marido.

A situação de Maria Elisa era muito especial. O senhor Antonio estava assustado, e dava como certa a sua morte, logo que os officiaes de cavallaria o encontrassem a geito. Ao anoitecer mandou trancar as portas, e armar os criados, emquanto, confiado na coragem de sua mulher, consultava os meios, que devia empregar, para judicialmente defender da sua arriscada corpulencia os golpes de espada d'aquelle par de Damocles que o neto de D. Alarico Themudo Pesicato lhe enviava a casa.

Maria Elisa queria serenar os sustos de seu marido; mas de que modo? Se lhe dizia que tudo aquillo fôra uma phantasmagoria, ficava a sua honra muito duvidosa para seu marido. Se deixava medrar o terror do infeliz, o pobre homem succumbiria de medo, se visse em sonhos o lampejo da espada nas proximidades da barriga provocante.

Os palliativos não valiam nada para a cura. O senhor Antonio, no auge do medo, chegou a censurar sua mulher por ter usado palavras fortes de mais, quando deu ordem de despejo aos militares.

Maria Elisa quando viu, ao cabo de tres dias, que seu marido tinha febre e tremia ao menor ruido que se fazia nas escadas, sentiu escrupulos, e accusou-se de ter concorrido para os soffrimentos do pobre homem.

Fernandes teimava em escrever-lhe, e não conseguia que as suas cartas fossem, ao menos, abertas. O seu tormento inspirou-lhe um recurso extremo. Pediu ao cadete que se apresentasse humildemente em casa do negociante, pedindo-lhe perdão das asperezas do seu caracter, e affiançando-lhe que nada viria perturbar-lhe a sua tranquillidade.

Maria Elisa estimaria este acontecimento; mas não queria lembral-o ao seu indigno amante, porque jurára acabar taes relações.

O cadete foi representar, de boa vontade, a segunda parte da farça. O senhor Antonio não quiz ouvil-o, sem que sua mulher estivesse escondida no quarto proximo, para intervir, sendo necessario.

—Eu venho—disse o cadete—desarmar a sua justa indignação, senhor Silva. Foi de mais o meu brio. Minha prima é sua mulher, e v. s.ª não tem obrigação de responder-me pelo mau conceito que fez d'ella. Desafiei-o: fui imprudente; mas espero merecer-lhe um generoso perdão, visto que as minhas demasias são filhas do nobre sangue que me gira nas veias. Retiro-me na certeza de que v. s.ª, de hora em diante, não se lembrará mais do passado, e terá por mim a estima que se deve a qualquer individuo, que zela a honra de nossas mulheres, tanto como nós.

O senhor Antonio ouviu-o primeiro com sobresalto, e depois com satisfação. Tinham-lhe alliviado do coração o pêso de quatro quintaes. O sangue girava-lhe de novo em toda a extensão do systema circulatorio; e os frouxos, que lhe accommetteram as pernas, desappareciam, á maneira que o primo de sua mulher lhe garantia a inviolabilidade do seu abdomen.

O senhor Antonio tinha um excellente fundo. Não era valente, mas odiento tambem não. Deu um abraço no estroina, que recuou dous passos para o receber com todas as formalidades d'um habil comico, e pareceu-lhe até que o primo de sua mulher (valha a verdade) lhe déra um beijo na bochecha direita. Não affianço isto; mas o que posso, debaixo da palavra de honra dos meus amigos, affiançar, é que um beijo na face do senhor Antonio, se se deu, revela um gosto estragado, um paladar torpe, e alguma cousa de indecencia atroz na pessoa do cadete.

A verdade é que o tranquillo marido recobrou a felicidade inquietada, e restituiu a sua mulher a plena confiança retirada por uma fatal intermittente de ciume. Desfazia-se em satisfações, acarinhava-a a seu modo o melhor que podia e sabia, comprou-lhe duas pulseiras de grande custo, e uma fivela de cintura, cravejada de diamantes. Maria Elisa acceitava os carinhos, a fivela, e as pulseiras com a mesma indifferença.

Não era, porém, filho do estudo este desdem. A chistosa amiga de Rosa Guilhermina vivia triste, porque vivia só. Desde que se entregára apparentemente ao extremoso negociante, as suas horas unicas de passageira felicidade eram as da Ponte-da-Pedra. Fernandes era um homem de não sei que perverso talento que seduz, capacita; e chega a victimar as proprias mulheres que teem a consciencia de que são victimas. Talento e corrupção eram já n'aquelle tempo uma espada de dous gumes com que se cortam os nós gordios do coração de certas mulheres. E Maria Elisa era uma d'essas certas.

O que ella teve de mais, entre as da sua escóla, foi uma caprichosa dignidade, que a fez esquecer num momento o amor d'um anno. Recordava-se de Fernandes com pesar, e odio; saudade, nunca. Quando se deixara cahir nas astuciosas ciladas, que elle lhe preparara, com o animo frio da experiencia das Marcellinas (que pelos modos eram muitas n'esse tempo, apesar dos frades, e da suspirada virtude de outras eras) tirára ella, como condição, um eterno silencio a respeito de seu marido. Parece que o galhofeiro amante epigrammou, uma vez, o abdomen do senhor Antonio, e teve, em vez de sorriso approvador, um gesto de desprêso, que elle reconciliou lá como pôde. O caso é que nunca mais cahiu na leviandade de ferir a susceptibilidade de Elisa, lembrando-lhe a monstruosidade moral e physica de seu marido.

Foi pessima lembrança aquella de enviar o cadete a representar de primo! Maria Elisa quereria antes ser julgada, qual era, por seu marido, porque a deshonra seria um segredo domestico, e a hilaridade publica não viria aggravar a vergonha de ambos. Mas o remedio comico e inesperado, que o inconsiderado Fernandes deu ao mal, era exacerbar a ferida, expondo-se ao ar da publicidade, e ao fel do ridiculo, prompto sempre a flagellar os maridos da escóla do senhor Antonio, que não são muitos, mas satisfazem as necessidades de alguns celibatarios que vieram ao mundo para chronistas dos infortunios alheios. Eu, que sou um dos que se honram d'essa missão, não posso deixar de confessar publicamente a minha admiração por esta senhora, digna (a todos os respeitos não direi, mas a alguns, de certo) d'outro marido, ou d'outro amante. Qualquer que tenha sido o seu peccado, a gente de bom coração tem pena d'ella, vendo-a, depois dos tristes acontecimentos que historiei com sincero dó, sósinha, entregue á escuridão da sua vida sem amor, sem luz, sem ar, alli sempre na presença do senhor Antonio, carinhoso até á desesperação, terno até ao aborrecimento, desvelado em extremos de meiguice tôla até dar vontade de o mandar comer e dormir.

Isso foi que elle nunca deixou de fazer. O estomago era uma cousa á parte na sua organisação. Eram dous Antonios n'um. O Antonio do ciume morreria de paixão: mas o António do estomago só uma indigestão poderia matal-o.

Sempre ao lado de sua mulher, inerte, sedentario, bufando, arquejando, impando, o nosso amigo sentia-se cada vez mais pesado. A medicina mandava-o passear a pé, e elle sem Maria Elisa, não dava um passo. Já não eram suspeitas. Era a tenacidade do amor, a reloucura da velhice que o prendia áquella mulher, como se prende a creança timida ao seio de sua mãe.

Correram assim tres mezes. Maria Elisa, cada vez mais triste, cahiu n'uma especie de doloroso somnambulismo. As janellas do seu quarto não se abriam nunca. Passava as longas horas do dia e da noite, lendo sem reflexão, e escrevendo cousas que o seu marido não entendia, mas gostava d'ouvil-as. Eram «melancolias surdas» como ella intitulara os trinta cadernos de papel em que as escrevera. Disseram-me que essas paginas perdidas continham cousas bonitas, pensamentos que não pareciam de mulher, energia de phrase, conhecimento do coração, e toque real d'uma verdadeira dôr. O que não viram n'ellas as pessoas, que me informaram, foi o nome de Fernandes. Parece que a imagem d'este homem fôra para sempre banida das saudades de Maria Elisa.

Constrangida pela soledade, a antiga orphã de S. Lazaro lembrou-se com amor da sua amiga de infancia. Queria revocal-a ao seu coração, d'onde nunca sahira, mas seu marido odiava Rosa, fazia-se côr de carmim quando lhe fallavam n'ella, e repetira muitas vezes que, emquanto elle fosse vivo, a filha do arcediago não entraria em sua casa.

Maria Elisa não replicava a este odio inveterado. Tinha compaixão do pobre homem que, desde certo tempo, vaticinava a morte. Já não comia com o mesmo appetite. Já não accumulava com prazer as sopas na tigella do caldo de gallinha. Sentia precisão de sentar-se, apenas se erguia, e acordava muitas vezes de noite com os pés frios e a cabeça em braza.

A senhora Angelica, sempre a mesma devota, depois das desordens, por causa do neto dos Pesicatos, metteu-se no seu quarto, em oração permanente, e apenas sahia tres vezes em cada doze horas para comer, visto que era necessario dividir a sua extatica existencia entre o oratorio e a cosinha. Quiz, algumas vezes, intrometter-se na vida de seu irmão, censurando a frieza de sua cunhada; mas não obstante a seriedade do assumpto, a senhora Angelica, se fallava só dizia asneiras, o que não succede sómente á senhora Angelica.

Consta que ella fôra uma vez ainda consultar a senhora Escolastica, a Massarellos; mas esta mulher tinha morrido de fome, não obstante predizer o futuro, que, parece, á primeira vista, um bom modo de vida, depois de jornalista, que são as Escolasticas de calças e paletó do nosso tempo.

Eu vou dizer-vos cousas pungentissimas. É com pena, realmente vos digo, que me vejo obrigado a deixar morrer uma das creaturas mais notaveis d'este romance. Accuso a medicina d'aquelles tempos por não ter salvado d'um ataque apopletico o senhor Antonio José da Silva. Se fosse hoje, este homem não teria morrido, sem que ao menos o esfolassem com quatro duzias de ventosas, e cento e tantos causticos. Tel-o-iam salvado com alguma d'essas medicinas, que disputam entre si a vida dos cidadãos, ao passo que as camaras municipaes mandam alargar os cemiterios. Felizes os que morrem hoje, que, se morrem, é porque não podiam viver mais.

O senhor Antonio deitou-se uma tarde, queixando-se de dôres de cabeça. Metteu os pés n'um banho de mostarda; mandou pedir a sua mulher que viesse fazer-lhe companhia, e recebeu-a morto, quando ella entrou. O facultativo chamado sangrou-o. A veia verteu algumas gotas de sangue negro, e fechou-se, porque as valvulas do coração estavam fechadas para sempre.

Maria Elisa tomou a mão do cadaver, e beijou-a sem lagrimas. A senhora Angelica veio ao quarto de seu irmão, e chorou muito, grunhiu desentoadamente, e atordoou a visinhança com gritos. Feita esta berraria de duas horas, comeu alguma cousa sem appetite; mas podia dizer que tinha fome que ninguem duvidaria da sua palavra. Ao mesmo tempo, Maria Elisa, que não gritára, nem chorára, fugindo do quarto de seu marido, fechára-se no seu, escondera a face nas mãos, e murmurou: «Perdi um pae! Sou orphã outra vez!»

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