CAPITULO IV

O salpicão fumegava na mesa, rodeado de ervilhas ensopadas. Ao lado, as tigelas do bem adubado caldo, opulento de gorda ôlha, ressumavam um cheiro appetitoso, que ludibriava o paladar dos rapazes da loja, aos quaes era só permittido o cheiro.

Angelica fôra chamar Rosinha para a mesa, emquanto seu irmão espostejava as talhadas pingues do paio de Lamego. A arrufada menina não quiz cear, e, para esquivar-se ás instancias da velha pertinaz, declarou-se incommodada da cabeça, cobrindo-a com o lençol.

O negociante engatilhava a cara em ar de despeito, e ensaiava as palpebras roliças n'uma postura sombria, que desse da sua dôr a alta ideia, que os queixos desmentiam, cevando-se na carne de porco, e nas ervilhas aromaticas.

Certo de que a ingrata filha do arcediago não vinha á mesa, o senhor Silva inutilisou a cara funebre, deu largas á testa franzida tyrannamente, e mascou, rugindo como os deuses d'Homero, a ceia substanciosa.

Angelica, da sua parte, comeu bem, e revesou no caldo, que, segundo ella, podiam comel-o os anjos. Deu graças a Deus, e a todos os sanctos do seu conhecimento, que eram todos, e alguns duvidosos, emquanto seu irmão, a cada padre-nosso, desafogava um arrôto, que podéra, sem hyperbole, chamar-se um urro.

O ultimo, e mais estridulo, soltou-o no seu quarto, onde, emfim, aquella alma atormentada, e o estomago revolto deviam dar-se rendez-vous em grato somno de sete horas.

A senhora Angelica, reservando para o dia seguinte um novo ataque á incredulidade de seu irmão, entrou, no seu quarto, a rezar a novena das almas, que lhe fôra imposta pela devota Escolastica, e que não acabou conscienciosamente porque adormeceu no meio da reza, enxotando, com palavras de esconjuro, o demonio do somno, seu tentador implacavel. A ultima apostrophe confundiu-se com o resonar profundo de seu irmão. O resonar de ambos, dueto horrivel, acordava os eccos funebres da casa. Dormiam todos, excepto Rosa.

Rosa não dormia, porque apurava o ouvido a cada quarto, que badalava o relogio de S. Domingos.

Faltava o ultimo para as dez, quando a promettida esposa do negociante enfiou o vestido, saltou fóra da cama, abriu cautelosamente a janella, em que batia o luar, traiçoeiro confidente dos amantes nocturnos, que apenas podem sorrir de dia, e só nas trevas, deixam voar o coração-morcego.

Na janella fronteira estava um vulto, e na rua solitaria não se viam os malditos grupos; innovação inutil da guarda municipal, que nos dá a entender que os ladrões augmentaram com a civilisação, posto que os jornaes diariamente nos aturdam com o catalogo dos roubos.

Em 1815 podia-se namorar honestamente d'uma janella para a outra, na rua das Flores, sem que uma patrulha insolente parasse debaixo para testemunhar a vida intima dos que lhe pagam. Podia cochichar delicias a donzella recatada da trapeira para a rua, sem que o amador extatico ao som maviosissimo d'aquella voz, receasse o retire-se! brutal do janizaro. Podia, finalmente, segurar-se o gancho d'uma escada de corda no terceiro andar, subir impavidamente, conversar duas horas sobre varios assumptos honestos, e descer, sem o receio de encontrar cortada a rectaguarda por um selvagem armado á nossa custa, que nos conduz ao corpo da guarda a digerir a substancia da deliciosa entrevista.

Bemaventurados, pois, os que namoraram em 1815.

Mas não tenham a impiedade, leitoras honestas, de suppôr que a mencionada escada de corda engatou o gancho na reputação de Rosa. Não, senhoras. A filha do beneficiado ignorava esse invento da intelligencia humana, essa corrente electrica, que aproxima dous corações, a escada de corda, emfim, que nunca ninguem imaginou tivesse electricidade, mas que eu, amante da minha patria e das glorias d'esta terra, declaro á academia real das sciencias, que a tem, e lhe offereço a descoberta como digna das suas ponderosas lucubrações.

Mais ponderosos ainda eram os motivos porque a virtuosa Rosinha déra signal ao José Bento, filho do retrozeiro, para fallar-lhe áquella hora, acto que, publicado, faria jejuar a senhora Angelica dous annos, a pão e agua, e faria crescer a agua, sem o pão, na bôca de muitos caixeiros das lojas visinhas, que a essas horas resonavam como conegos em matinas.

Era a segunda vez que a predestinada mulher do senhor Silva se abalançava ao crime infando de tagarellar da janella, a horas mortas, para a janella fronteira.

José Bento era um moço de quinze annos, muito envergonhado, e tão inutil, na opinião publica, que sua familia resolveu fazel-o frade loio. Tinha dezeseis annos, e estudava latim, com grande pasmo do mestre, que durante quatro annos, não podéra conseguir ensinar-lhe os rudimentos da arte, sem que elle discipulo lhe désse quatro asneiras em troca de cada regra. No seu genero era um prodigio! Não obstante, para loio o que lhe faltava era a idade, que sciencia tinha elle de sobejo para repartir na communidade.

O que elle tinha, além da sciencia, era uma melancolia sympathica, contemplativa, e romanesca. José Bento, se fosse dos nossos amigos de botequim, passaria hoje por um espirito atormentado, um mancebo devorado por illusões, um sceptico de coração crivado de angustias, e conseguiria, não fallando, pertencer á seita dos Szafis da feira da ladra.

Não lhe faltava a testa espaçosa da tarifa. Um todo-nada de navalha nas raizes capilares da fronte seria bastante para nos dar uma testa artistica, em que os sectarios de Spurzen, veriam o genio, e o respeitavel publico a toleima.

Ora aqui está quem era o namoro da senhora Rosa Guilhermina, que vai fallar com a voz commovida, vibrante, e melodiosa.

—Senhor José...

—Aqui estou, senhora Rosinha... Não me vê?

—Vejo... agora vejo...

—Como passou?

—Bem; e vmc.e passou bem?

—Tenho estado hoje muito doente.

—Sim? de quê, senhor José?

—Tem-me doído muito a barriga.

—Será do calor...

—Acho que sim; veio cá o cirurgião, e mandou-me tomar banhos semicuplos...

—Deus queira que lhe façam bem. Então já sabe que me vou embora d'esta casa?

—Vai? para onde vai, senhora Rosinha?

—Para o recolhimento de S. Lazaro.

—Pr'amor de quê?

—Porque meu pae teima em querer casar-me com o senhor Antonio, e eu...

—Valha-o a maleita! Pois elle quer casal-a á força com um velho assim?

—Ora ahi está; e eu não quero...

—Faz vmc.e muito bem. Eu tambem, ainda que a filha d'um rei quizesse casar comigo, emquanto vmc.e me lembrasse, mais facil seria atirar-me d'esta janella para baixo á rua, que casar com ella.

—Forte teima de homem! Ainda hoje lhe disse que era capaz de metter o fuso da senhora Angelica por um ouvido, se me quizessem obrigar a tal casamento...

—Então vmc.e decerto vai para o recolhimento?

—Antes quero isso, antes quero ser freira.

—Então, sempre lhe digo, que vou para os Loios, se a menina se mette freira...

—Eu não sei o que acontecerá... Póde ser que meu pae, em vendo que eu não mudo de vontade, me tire do recolhimento.

—Isso é verdade, e, se assim fôr, n'esse caso não quero ser frade, nem que meu pae me desherde.

—O peor é que nos não tornamos a vêr...

—Não? E é verdade que não. Lá nas orphãs diz que não ha janellas.

—Não ha, não; mas, se podéssemos escrever-nos...

—Isso sim; se podéssemos escrever-nos era bem bom; mas vmc.e, em se pilhando lá a brincar com as outras raparigas, esquece-se de mim.

—Não esqueço, não. Estou affeita a vêl-o ha mais d'um anno, e tarde me esquecerá...

—Se vmc.e soubesse o amor que lhe tenho!... Ha quatro noites a fio, que sonho comsigo, e nem posso estudar a lição, nem tenho vontade de comer. Já minha mãe hoje disse: este rapaz teve alguma olhadella má. Mal diria eu que vmc.e sahia d'essa casa!... Pois olhe... a senhora Rosinha a sahir, e eu tambem.

—Para onde vai?

—Vou para o Passos estudar latim. Meu pae quer que eu esteja dentro do collegio para aprender mais depressa, e eu até aqui dizia que não, porque tinha saudades de si, mas agora não se me importa de deixar esta casa.

—E onde mora o mestre?

—Na viella da Cancella Velha.

—Pois se eu arranjar por quem lhe escreva, lá mando.

—Então não se esqueça.

—Adeusinho.

—Adeusinho, estimarei que tenha saude.

As janellas fecharam-se, e a lua no céo velou o rosto de negro, como contristada da agonia lacerante d'estes dous infelizes! Essas phrases plangentes traziam o quilate d'uma lucta atormentada que lá ia dentro nos dous corações! A leitora sensivel, com as lagrimas nos olhos, e a palpitação accelerada, espera, anciosa, o desfecho d'este lance, que ficará aqui insculpido para modelo eterno das paixões impetuosas.

José Bento prostrou-se no leito do soffrimento, gemendo... com dôres de barriga, e variam as opiniões ácerca de uma lagrima que lhe tremia n'um ôlho, emquanto o outro conjugava o verbo Laudo, as, are, que lhe custára, no dia anterior, um elastico puxão d'orelhas.

A minha opinião é que a lagrima era de pura saudade. Sériamente fallando, não sejamos injustos, expondo á irrisão a phrase singela do pobre rapaz. O que elle sentia então, se eu podésse sentil-o agora, escreveria tres volumes em quarto, que o leitor me compraria, e a minha reputação de piegas amoroso estava feita.

O filho do senhor João Retrozeiro, que Deus haja, era grosso de casca, mas tinha dentro de si bellas cousas, exceptuando a dôr de barriga, que o incommodou a ponto de levantar-se, e pedir á mãe que lhe mandasse dar o semicuplo, receitado pelo cirurgião.

A extremosa mãe saltou em fralda do leito conjugal, rezando o responso de Sancto Antonio, applicado aos banhos, accendeu o lume, aqueceu a agua, e agasalhou seu filho na bacia, que, á parte, a posição que não era bonita, lamentou ahi de cócoras profundamente a sua sorte.

E Rosa?

Rosa, coitadinha, perguntava á sua consciencia se o amor era aquillo que José Bento lhe dissera. Parecida com a mãe, segundo o pae dizia, o instincto segredava-lhe cousas novas, que o visinho não sabia decifrar-lhe. A seu pesar, porém, a pequena chorava com saudades do rapaz.

Felizmente adormeceu, pedindo a Sancta Barbara, sua advogada, que a livrasse do velho, assim como, pela sua muita virtude, se podéra livrar do impio Diocleciano (reminiscencias do ultimo sermão, que prégara fr. Miguel dos Antoninhos, na Misericordia, dias antes).

Em virtude do que, dormiu pacificamente, viu em sonhos o José Bento, queixando-se da barriga, e acordou de madrugada, quando a magra mão de Angelica a chamava para o oratorio, em que se rezava tudo que havia escripto sobre a materia.

Ao almoço, o senhor Antonio José da Silva aproveitava a edição de cara que não pôde dar á luz na ceia, por falta de concorrencia da parte interessada no espectaculo hediondo. Estava, portanto, mais feio que nunca o senhor Antonio. Durante o almoço de café com leite, e biscoutos de Avintes, nem uma palavra trovejou das belfas tumidas o desditoso amante. Rosa comia sem vontade, e Angelica sopeteava deliciosamente as suas sôpas, aboboradas em leite quente, porque os seus quatro dentes não eram para graças.

Findo o almoço, appareceu o arcediago Leonardo Taveira, que comeu tres biscoutos, indispensavel lastro para um copo de vinho, e pequena refeição para quem vinha de rezar quatro psalmos, em lingua barbara, no côro da Sé.

Reanimado de eloquencia propria do pae e do levita, o arcediago chamou sua filha á parte, e recapitulou, á ultima hora, as admoestações do dia anterior. Recalcitrou a desobediente rapariga. Fumegaram as pandas ventas do sacerdote. Volitaram-lhe das ditas caroços de rapé, como as frechas dos thracios contra Jupiter, e sacudiu da profana lingua um feixe de raios de maldição: Vibrata jaculatur fulmine lingua, como depois dizia o guardião dos gracianos, fr. Antonio do Menino Deus, a quem elle contava o accesso.

O seu discurso, que não vale a pena de especial menção, terminou por intimar a Rosa a immediata sahida d'aquella casa. Entretanto, o padre Leonardo foi buscar a ordem de entrada no recolhimento. Quando veio, Angelica pendurou-se-lhe ao pescoço, em risco de lhe enterrar o fio cortante da barba no queixo d'elle. Supplicava-lhe a piedosa mulher que lhe deixasse a filha mais nove dias, e, ao cabo d'elles, promettia dar-lh'a alliviada.

—Alliviada!—exclamou o pae, arfando as azas do nariz—minha filha alliviada!...

—Pois então...? quer que lhe diga uma cousa ao ouvido?... venha cá...

O padre media Rosa da cabeça aos pés, mas o ponto fixo d'esse olhar não era de certo nos pés nem na cabeça... Angelica acenava-lhe, e elle não podia attendel-a, porque parece que a cara da filha denunciava um crime inaudito... Era precisa coragem. O arcediago deu o ouvido direito á velha:

—O senhor reverendo arcediago não sabe o que aconteceu a sua filha?

—Não!... diga, depressa, que arrebento...

—Tenha paciencia... Todo o mal que Deus permitte é para desconto de nossos peccados...

—Diga, senhora Angelica, que me faz doudo...

—Não se afflija, senhor arcediago... o mal é do demonio, e o bem de Deus...

—Oh mulher, por quem é não me demore n'esta horrivel suspeita...

—Pois ainda não adivinhou?

—Não, com mil pragas...

—Credo! vossa reverendissima está atrigado!...

—Sancto nome de Deus, que mulher!... Que tem minha filha?... responda, senão vou arrebental-a...

—Arrebental-a! Deus nos acuda... Sua filha não tem culpa... a culpa é d'aquelle seductor do inferno, Deus me perdôe...

—Seductor!... um seductor!... quem foi o infame?... que é o que me diz, senhora Angelica?!

—Que é o que lhe digo? É que sua filha tem o esprito ruim no corpo! O seductor é o demonio.

Padre Leonardo Taveira, com quanto pacifico, sentiu vontade de partir d'um murro o craneo, quasi nú, da senhora Angelica. Depois, soltou um frouxo de riso que borrifou a face da velha. A gargalhada foi tão longa e estridorosa, que Angelica julgou o arcediago possesso d'outro demonio.

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