CAPITULO V

O senhor Antonio, emquanto Rosa se vestia, sumiu-se para esconder a commoção da despedida aos olhos insensiveis da ingrata. Angelica procurou-o para convencel-o de pronunciar á ultima hora, o esconjuro de Escolastica. Não o viu, e teve de acompanhar lagrimosa a menina ao recolhimento, onde seu pae fôra adiante lêr o programma, que devia executar-se na reclusão da pensionista D. Rosa Guilhermina Taveira. Onde se tinha sumido o noivo despresado? Estava defronte, na loja de João Retrozeiro, que tivera medo do aspecto, raivosamente opilado, do seu visinho, quando entrára.

—Senhor João—disse elle, arquejando, e revirando nas orbitas os olhos, que o ciume arrancara á sua estupida immobilidade—senhor João! eu gosto de viver bem com os meus visinhos; moro, ha cincoenta annos, n'esta rua, sou um honrado homem, que nunca deu desgosto aos seus visinhos...

—Diga-m'o a mim, senhor Antonio! pois que é que lhe aconteceu?—disse o pavido retrozeiro, tirando as cangalhas, e depondo uma borla de torçal em que o imaginoso artista phantasiava uns berloques, que deviam distinguil-o na especialidade das borlas—Acaso, senhor Antonio, se desaveio com alguem?

—Eu nunca fiz tagatés ás filhas, nem ás irmãs dos meus visinhos. Ninguem dirá que me viu espetar os olhos nas familias alheias. Sou um homem honrado.

—Quem nega tudo isso, senhor Antonio?

—Tanto se me dá que vmc.e tenha cá uma mulher como duas...

—Isso não é verdade, e perdoará, visinho. Eu não tenha cá em casa senão a minha mulher... Quem lhe disse que eu tinha cá duas mulheres?

—Não sei se tem duas, nem quatro. O que sei é que vmc.e tem um filho muito mariola.

—Vmc.e está enganado! O meu filho é um rapaz muito accommodado que estuda para loio, e não tem nada que lhe digam.

—O seu filho é um mariola, já lh'o disse.

—Pois o meu José que lhe fez?

—O seu José anda-me cá a fazer gatimanhos á filha do senhor arcediago, que por amor d'elle vai ser posta fóra da minha casa. Não quero poucas vergonhas de portas a dentro, é o meu systema.

—Que me diz, senhor Antonio? Pois o meu José...

—É o que lhe digo, senhor João. Eu sou um homem honrado, e dos annos que tenho ninguem me viu desinquietar as minhas visinhas. Vmc.e não é bom pae. Um logista que tem filhos, fal-os ir trabalhar na loja.

—O meu José estuda para frade, por isso é que não vem para aqui...

—Qual frade, nem meio frade!... Deixemo-nos de frades. Ponha-o a sapateiro, ou alfaiate, que é o mais proprio. Eu tenho sobrinhos, e não os mando aprender latim; e vcm.e, que tem aqui dous arrateis de retroz, e quatro varas de mastro, já quer ordenar um filho...

—Que lhe importa a vmc.e a minha vida?

—E o seu filho que lhe importa as pessoas de minha casa? Se eu fosse outro homem, mandava-lhe estender as orelhas por um caixeiro...

—Isso lá mais devagar, senhor Antonio! Quem castiga o meu rapaz sou eu... Se o seu caixeiro lhe puxasse as orelhas, não havia de ter frio nas d'elle. É o que lhe digo! Eu sou pacifico, e cortez com quem é cortez. Eu chamo o meu filho, e veremos como é essa pendencia, que vmc.e traz.

O senhor João, já com a mostarda no nariz, chamou José, que vinha descendo, e resmungando: imperativo do verbo laudo, as, are, laudabundum, ou laudatote. Presente do indicativo, Laudaturus.

Contentíssimo das suas reminiscencias, e livre da dôr de barriga, José Bento ficou surprezo na presença do rival, e enfiou de susto. A edição da cara paterna não era mais nitida que a do negociante.

—Vem cá, José. O senhor Antonio queixa-se de que tu fazes tregeitos para a menina do senhor arcediago, isto é verdade?

José, chofrado pelo improviso, gaguejou a resposta, que mais tarde sahiu energica, e eloquente.

—É verdade, ou não?—replicou o pae.

—Ágora é...

—É, sim, senhor. Não me desminta, seu estudante de borra!—trovejou o negociante, formando instinctivamente com as mãos dous gordos murros.

—Não é preciso berrar tanto, senhor Antonio!... A minha casa não é pateo de convento. Se quer que fallemos, vamos lá para dentro.

—Faz favor de entrar.

Antonio José acceitou o convite, e proseguiu na apostrophe:

—Eu que lh'o digo, é porque o sei. Vossê esteve esta noite fallando com Rosa! Esteve ou não esteve?

—Estiveste, rapaz?

—Eu, não, senhor.

—Como é isso?—continuou o pae—se o meu filho esteve toda a noite a gritar com dôres de barriga, e por signal que a minha Anna andou toda a noite na cosinha a aquecer agua para banhos? Quer que eu chame a minha Anna, senhor Antonio?

—Não me importa o que diz a sua Anna.

—Isso... mais devagar! A minha Anna é tão honrada e verdadeira como a senhora Angelica, e póde pedir messas ás mais honradas.

—Que tens tu, Joãosinho?—grasniu de cima a senhora Anna, mettendo a cabeça pelo alçapão.

—Olha lá, mulher... O nosso rapaz que teve a noite passada?

—Dôres de barriga.

—Vê, senhor Antonio!... Tudo que me veio dizer é mentira...

—Não se diz isso a um homem honrado, como eu!... O seu filho esteve ás dez horas a conversar com Rosa; eu que lh'o digo, é porque o sei de bom canal...

—Quem lh'o disse? onde está esse canal?

—Quer sabel-o? Foi certa pessoa que á mesma hora estava para conversar com essa indigna mulher do João Pereira.

—De qual João Pereira? Aqui ha dous na visinhança.

—Do João Pereira, calvo, que traz chinó.

—Que dizes tu a isto, José?

—Digo que estive com dôres de barriga, e por signal que tomei chá d'herva cidreira.

—Vê, senhor Antonio? Vmc.e é um homem honrado, mas enganaram-n'o.

—Não me enganaram. Eu de portas a dentro não quero poucas vergonhas: é o meu systema.

—Enganaram, sim, senhor—chiou de cima a senhora Anna.

—Quer apostar uma moeda contra dez?

—Aposto o que vmc.e quizer! O meu filho é um exemplo dos bons rapazes. É filho d'um bom pae.

—E d'uma boa mãe—accrescêntou a senhora Anna.

—Não tem a quem sahir mau—confirmou o retrozeiro.

—Pois eu digo-lhe—exclamou o mercador de pannos com grande chuveiro de perdigotos—digo-lhe eu que seu filho é um tratante, e que vmc.e é outro, se o não castigar.

—Olhe lá como falla, ouviu?—disse a mãe do futuro loio, já perfilada, em baixo, ao lado de seu marido, que era a carne da sua carne, e o osso do seu osso.

—É isto que lhe digo. Pela arvore se conhece o fructo. Se vmc.e fosse um homem de conhecimentos, e não viesse aqui para esta rua de tamancos e barrete vermelho daria outra educação aos seus filhos.

—E vmc.e d'onde veio?—interpellou a senhora Anna, fechando os punhos na cintura, e dando-se, pelo vermelhão da cólera, a figura d'uma bilha de barro—Não me dirá a sua linhagem, senhor Antonio da tia Catharina, que eu conheci na Ponte-Nova fazendo camizas de estôpa para os embarcadiços! Olhe o fidalgo, que nos vem fallar em tamancos! Que me dizem a isto? Lembre-se que sua avó vendeu tripas na viella da Madeira...

—Cale-se ahi que vossê é uma regateira; eu não fallo comsigo.

—A minha mulher, regateira?

—Eu, regateira?

—Ponha côbro na lingua.

—Se não, topa com a fôrma do seu pé...

—Sahe a racha ao pau—interrompeu o rival de José Bento, que não dizia palavra—vmc.e ha de sempre mostrar que vendeu hortaliça no largo das Freiras. É a filha da Canastreira, e basta.

—E sua irmã, a beata que traz cilicios depois de velha, quem é, não me dirá?

—Não falle em minha irmã, ouviu?

—E vmc.e para que falla em minha mãe?

—Porque, se vossê tivesse vergonha não estava aqui a crear este mandrião...

—Faço eu muito bem, que é meu filho, e filho do meu marido, com quem sou casada á face de Deus e do altar, na igreja da Victoria... E sua irmã porque não cria os d'ella?

—Qual minha irmã?

—Sua irmã Angelica.

—Vossê está bebeda logo de manhã?

—Bebedo será elle, e mais quem o veste. Pois que cuida? Acha que a gente se calava por não ter tanto? Se tem muito, coma duas vezes, nós comeremos uma, porque não desfructamos os rendimentos da legitima das filhas dos padres.

—Cale-se ahi, sua desbocada! Vossê tem alguma cousa a dizer a minha irmã? Encontrou-a lá por casa dos Amorins da Praça-Nova, onde vossê arranjou com boas bullas o dote do seu casamento?

—Vmc.e é um patife—atalhou o retrozeiro, sériamente envinagrado—e se não sahe de minha casa...

—Deixa-me responder-lhe, João... com que então eu ganhei o meu dote em casa dos Amorins, heim! E sua irmã? e a sua irmã que reza a via-sacra, e anda por casa das benzedeiras? Que fez ella tres mezes mettida na cella do congregado?

—Que congregado diz vossê, sua regateirona?

—E aquelle filho do conego Silvestre, que caminho levou?

—Desavergonhada que vossê é!...

—Sou? e a sua irmã que é? uma hypolita... uma benzedeira, que dá pelo amor de Deus o que não póde dar ao diabo! É uma bebeda que nunca ha de chegar aos meus calcanhares.

Palavras não eram ditas, a senhora Anna Canastreira levava um grande murro no alto da cabeça; murro não era dado, e o senhor Antonio sentia, nas almofadas carnosas do cachaço, o pezo d'uma tranqueta, que o fez ir de chofre sobre a mulher do retrozeiro, que, atordoada do murro, resvalou por debaixo do globoso negociante, que soltou um bramido de rhinoceronte na queda desamparada.

A detractora da senhora Angelica sentiu-se escorchar debaixo do monstro, e cravou-lhe as unhas nas forçuras tremulas do pescoço. O retrozeiro, para salvar a mulher asphixiada, puxava a perna homerica do negociante; o negociante distribuia couces tão a proposito que uma canella do senhor João recuou mal ferida da empreza arriscada. Indignado pela dôr fina do canellão, o marido da pobre mulher atufada, com a perna disponivel, imprimiu tres valentes ponta-pés na orbita mais a geito e provocante do senhor Antonio, que esperneava, grunhindo como um cevado. José Bento, como bom filho, tentava alliviar o fardo, que ameaçava o arcaboiço descarnado de sua mãe, puxando, em vão, o despresado amante de Rosa pelas portinholas da jaqueta de linho crú.

A salvação, porém, da senhora Anna Canastreira deve-se ás suas unhas. O papo balôfo do senhor Antonio soffrera graves arranhaduras. Em compensação, o ôlho direito da infamadora de sua irmã inutilisara-lh'o elle com o cotovello perfurante.

Este conflicto durou quatro minutos, e ao quinto a senhora Anna não tinha fôlego. A pressão que soffrera na cavidade intestinal, e na thoracica tambem, podia ter mui funestas consequencias, se o nosso presado amigo, o senhor Antonio José da Silva se não levantasse, lazarado do pescoço para cima, supposto que, no vermelhão natural da sua cara veneranda, o sangue das arranhaduras não se destacava.

A senhora Anna, continuando a infiada de epithetos, consagrados á senhora Angelica, estava ainda sentada compondo as rêpas da desalinhada cabeça, quando o offegante mercador de pannos, impellido pelo derradeiro empurrão do retrozeiro, se achou na rua, onde o povo principiava a juntar-se, chamado pelos gritos confusos dos gladiadores.

O senhor Antonio entrou no seu quarto a lavar a cara com agua e vinagre. Perguntou por sua irmã, e o caixeiro respondeu-lhe que fôra acompanhar Rosinha. Pensados os ferimentos, o infeliz rival de José Bento mediu em toda a profundidade a extensão da sua dôr, e comeu dous pasteis de Sancta Clara, que eram a vanguarda d'um copo de vinho.

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