O arcediago, quando fugiu bruscamente ás impertinencias vingativas do padre João Pires, ia perdido, e não atinava com o refugio mais azado no embaraço em que se via.
Na rua das Hortas, quando voltava do campo de Sancto Ovidio, até onde fôra machinalmente, encontrou o marido de Anna do Carmo, que o comprimentou com a graça costumada, e nem de leve lhe tocou nas escandalosas revelações do profundo investigador de Sant'Thiago, e S. Martinho de Dume.
Padre Leonardo, admirado da singeleza do francez, entendeu que as cousas estavam no pé em que as deixára na vespera, e tranquillisou o tumulto de vergonhas e receios que lhe traziam o coração em dolorosas piruetas.
Convencido do inesperado quão feliz resultado da extravagante scena, veio á rua das Flores, e encontrou Anna do Carmo, ao mostrador, espantada de que seu marido sahisse sem dar parte, nem chamal-a a ella para a loja.
Isto fez impressão no arcediago, que teve a prudencia de calar á mãe dos seus filhos o desgraçado encontro com o amaldiçoado padre de Ponte-Ferreira.
Todavia, a sahida rapida do francez alguma cousa queria dizer. O atilado arcediago reflectiu no que poderia resultar d'alli; lembrou-se, um momento, que a sua organisação physica poderia soffrer algum abalo menos agradavel, e, finalmente, appellando para o futuro com a intrepidez de philosopho, esperou as consequencias.
Acabava o velho amigo de padre João Pires de fazer os seus juizos, quando o livreiro entrou com a mesma affabilidade, com o inalteravel sorriso d'um esposo feliz.
—Sahiste sem dizer nada?!—disse a senhora Anna.
—Foi-me necessario sahir com tal precipitação, que nem me lembrou chamar-te.
—Pois que foi, Hemerin?
—Que havia de ser? Um engano... Vieram-me aqui dizer que o regedor das justiças me queria mandar prender, porque eu vendia clandestinamente na minha loja livros protestantes, e folhetos escriptos contra a religião. Corri immediatamente a casa do regedor, e tive a fortuna de encontrar, quando lá cheguei, o desmentido da calumnia que forjaram contra mim os meus inimigos.
—Inda bem!...—disse a mulher.
—E se não acontecesse assim—accrescentou o arcediago com o contentamento da boa fé—eu ainda tenho amigos para desmanchar as traições dos seus inimigos.
—Muito obrigado, senhor compadre. Tudo está arranjado, d'esta vez. Se elles continuarem, v. s.ª será o nosso protector, como tem sido sempre.
O arcediago almoçou com elles, e não podia deixar de felicitar-se por ter casado a mãe de Rosa com tão boa pessoa, alma tão singela, e genio tão estimavel a todos os respeitos. Fez muitas festas á creancinha, que dava biscoutos ao livreiro para que os désse ao papá, o que o livreiro, com paternal meiguice, cumpria, rindo-se muito da galanteria do pequeno.
Correu o dia regularmente. O arcediago despediu-se á meia noite, promettendo na noite seguinte pagar quatro partidas de bisca, que perdera jogando com a senhora Anna, emquanto seu marido sahira a encommendar de Paris a nova edição de Bossuet e Bourdaloue.
Na madrugada do seguinte dia, Hemerin levantou-se mais cedo que o costume, e disse a sua mulher que lhe désse a chave da commoda em que estava a sua roupa branca.
Anna quiz erguer-se para dar uma camisa a seu marido, e elle mandou-a ficar. A mulher instou, e o francez intimou-a imperiosamente que não sahisse.
Momentos depois, a mãe de Rosa sentiu fechar-se por fóra a porta da rua! Ergueu-se, foi á commoda, e achou-a vasia da roupa de seu marido. Desceu á loja, tudo estava fechado. Tornou ao seu quarto e viu um bilhete sobre o lavatorio, com estas poucas palavras: «És uma boa mulher, mas não me serves. Eu não sou mau homem, mas não te sirvo. Sejamos francos, e bons amigos. Tu ficas, e eu vou. Regala-te com o padre, e faz-lhe visitas minhas. Se me quizeres alguma cousa e elle tambem, escrevam-me para Paris. Adeus.»
A senhora Anna do Carmo ficou aturdida. Queria fazer alguma cousa n'aquelle conflicto; mas que poderia ella fazer? A porta da rua, de mais a mais, estava fechada! Se o arcediago viesse... mas o arcediago não vinha antes das oito horas! Se arrombava as portas, o barulho dava que fallar aos visinhos, e o escandalo era certo! Mas, se o escandalo era certo, inevitavel, a pobre mulher lembrou-se de arrombar a porta, e procurar seu marido; mas aonde?
N'esta irresolução, a senhora Anna ouviu as oito horas. Correu á janella, e viu á sua porta alguns homens, um dos quaes abria a porta. Desceu abaixo, e perguntou quem eram:
—Sou um escrivão, com os meus meirinhos.
—Que querem?
—Fazer penhora nos objectos conteúdos n'esta casa.
—Devo alguma cousa a alguem?
—Deve.
—O quê?
—O conteúdo n'esta petição, a que está junto um titulo de divida authentico, assignado por seu marido o senhor Hemerin Pierrote.
—Mas eu não assignei.
—Vmc.e sabe escrever?
—Não, senhor.
—Por isso mesmo é que não assignou. Seu marido assignou por ambos.
—Isso é uma ladroeira! Eu grito aqui d'elrei, se me levam alguma cousa de minha casa.
—Pois grite, que arranja com isso a ser levada tambem.
—Para onde?
—Para a cadeia, ou para o hospital de S. José.
—Que é dos louvados, senhor meirinho geral?
—Estão aqui os ensambladores.
—Pois que subam a avaliar os moveis, e chame ahi dois livreiros para louvarem os livros.
—É um roubo que me fazem!—exclamou Anna, collocando-se adiante dos livreiros, que vieram d'um pulo.
—Retire-se, mulher, se não mando autual-a!
—Mas quero saber a quem é que devo...
—Ao vice-consul da França.
—Eu não conheço esse homem.
—Tambem não é preciso, nem deve ter muita pena d'isso. É um homem como os outros, pouco mais ou menos.
Entrava o arcediago com os olhos espantados, e o queixo pávidamente descahido.
—Senhor compadre!—exclamou Anna—querem-me roubar!...
—Roubar!... Como se entende isto?!
—Deixe-a fallar—disse o escrivão.—É um mandado de penhora.
—Á ordem de quem?
—Do juiz de fóra.
—Mas quem é o credor?
—Senhor arcediago, não nos importune com as suas perguntas. Vá lá sabel-o, se quizer. Nós cumprimos a lei, e não temos obrigação de dar explicações a quantos passarem na rua.
—Onde está seu marido?—perguntou o padre.
—Não sei... Olhe aqui.
A senhora Anna chamou-o de parte, e contou-lhe o succedido. O arcediago ficou tranzido.
—Que hei de eu fazer, Leonardo? Não me dirás?
—Põe a tua mantilha, pega no pequeno, e vai com a criada para minha casa.
—E os meus arranjos?...
—Que arranjos?
—Os meus vestidos?
—Deixa os vestidos... Faz o que te digo. Não te afflijas... Has de ter sempre que comer. Nem mais uma palavra, que não quero escandalos.
Anna do Carmo sahiu com a criada e o pequeno, que grunhia por ter sido tirado a dormir do berço. O escrivão achou-se sósinho com os aguazis e louvados. A livraria foi logo comprada pelo livreiro da loja visinha. Os moveis arrematados, e ficou o escrivão com elles. As roupas comprou-as uma adeleira. E a chave da casa foi entregue ao senhorio. Foi um dia cheio para os visinhos!
A vingança do francez fôra uma vingança franceza; mas, de parte a parte, concordemos em que a honra orçava os mesmos quilates. Parece que eram dignos um do outro, e o arcediago digno de ambos, como vai vêr-se.
A mãe de Rosa vivia com o arcediago; mas tão cauta e escondida que se não deixava vêr. Era um cuidado inutil; porque ninguem duvidava que os braços do padre eram o refugio nato da esposa abandonada.
A immoralidade chegára aos ouvidos do bispo, que empregou os meios brandos para chamar ao caminho da bem-aventurança aquelle Lovelace de murça e meias vermelhas. O arcediago defendia-se como podia, e citava os seus traiçoeiros denunciantes para que lhe provassem a calumnia infame. Se fosse hoje, o senhor padre Leonardo Taveira teria escripto quatro correspondencias para os periodicos, em que provocaria os maledicentes a tirarem a mascara, ou serem convencidos de infamadores da honra alheia, e vis calumniadores, como é do estylo.
N'aquelle tempo, porém, o infamado não tinha o respiradouro da gazeta, e não podia andar de casa em casa apregoando a sua innocencia. Razão porque a detracção se incorporava pouco e pouco, até ser recebida como facto consummado.
Os conegos, que não eram mais virtuosos que elle, mostravam-se escandalisados das torpezas do seu collega, e queriam que o prelado os desultrajasse do odioso que reflectia na corporação. O bispo via-se entalado entre certos compromissos que o prendiam ao arcediago, e as instancias reiteradas do chantre, e do deão, que eram mais discretos nas suas torpezas, porque nunca tinham cahido na immoralidade de dotar as mães dos seus filhos para casarem.
A indignação pública urrou no paço episcopal; e o principe da igreja receou que a mitra lhe cahisse com deshonra da cabeça, e metteu o arcediago em processo.
Estas deploraveis scenas passavam-se, mezes depois que Rosa Guilhermina e a sua amiga vieram de Ramalde para o Porto. Rosa observava a inquietação de seu pae nas poucas horas que se demorava em casa. Interrogaram-no ambas muitas vezes, e não poderam saber nunca a afflicção que o atormentava.
O processo corria, quando o bispo deu uma audiencia secreta ao arcediago. O fim d'essa prática d'amigo, e não de juiz, era aconselhal-o, que fugisse immediatamente de Portugal, e que esperasse lá fóra que a borrasca serenasse, e depois viria.
O arcediago annuiu.
Com as lagrimas nos olhos, e sua filha nos braços, revelou-lhe que uma grande desgraça o obrigava a sahir da patria. Mandou-a entrar outra vez no recolhimento. Estabeleceu uma pensão a Maria Elisa. Deixou outra a Anna do Carmo, e partiu para Hespanha com todos os seus cabedaes, excepto as quantias que o honrado negociante Antonio José da Silva mensalmente devia repartir pelas tres, se eram só tres as pensionadas da illustre victima de padre João Pires.
Anna do Carmo sabia que sua filha existia no convento; mas, por ordem expressa do pae, não a procurava. Vivia com honra, e recebia pontualmente a sua mesada.
Rosa ignorava a existencia de sua mãe, tinha de longe a longe saudades do pae; mas isso não era forte razão para que deixasse de comprar a melhor edição do Cavalheiro de Faublás, que traduzia perfeitamente com a sua amiga, graças aos cuidados do pae em mandal-a aprender o francez durante um anno que esteve na casa do Laranjal.
Mr. Hemerin vivia em Paris, e vivia perfeitamente da quantia que lhe fora dada com a condição de cohonestar as relações da mulher com o padre: missão aliás christã que o maldito não quiz desempenhar christãmente, e encarou com a melhor philosophia do mundo.
O arcediago vivia em Madrid, e gastava o seu tempo n'um convento de Therezinhas, onde lhe não faltavam delicias para o espirito, e parece que as melhores esperanças para tudo que os philosophos teimam em dizer que não é espirito.
Padre João Pires, esse, contentissimo de ter resolvido o problema de Sant'Thiago, veio um dia procurar o livreiro para comprar-lhe—El sabio instruido de la naturaleza,—e soube, no livreiro visinho, a catastrophe do arcediago.
Citou quatro textos em latim ácerca da obscenidade, disse tudo o que sabia a tal respeito, confirmou minuciosamente todos os escandalos da vida de padre Leonardo, e foi dizer missa á Misericordia, e ouvir de confissão a senhora Angelica, que, por um triz, ia ficando sem absolvição, por ter murmurado da senhora Anna Canastreira, e da mulher do João Pereira, do chinó.
O senhor Antonio José da Silva, recobrado dos dissabores por que passára, restaurava as banhas perdidas do seu lustroso cachaço, e continuava a suar copiosamente.
E o senhor João Retrozeiro, finalmente, lia com o maior prazer a sua mulher as cartas de seu filho José Bento, que estava no Rio de Janeiro ganhando duzentos mil reis como segundo caixeiro de um armazem de molhados, onde o não forçavam a conjugar o atrocissimo verbo laudo.