O tragico successo inquietou um pouco o espirito de Rosa; mas a sua amiga convenceu-a de que não devia dar-se por achada em similhante cousa. O director do collegio ignorava a causa do inaudito crime, presenciara a sóva de pontapés com que José Bento se recolhera ao quarto; mas suppoz que a justificada razão d'aquelle castigo fôra qualquer asneira do rapaz na impossivel conjugação do verbo Laudo, especialmente no imperativo laudandum.
Por conseguinte, as pequenas não tiveram de responder como causas involuntarias daquelle sinistro, e continuaram no gôso da sua felicidade.
O arcediago, supposto não vivesse com ellas, almoçava, e jantava com sua filha, ceava com uma senhora viuva que lhe administrava a casa; e, depois de ceia...
Depois de ceia, ha muita cousa a dizer a este respeito.
É sabido que Rosa Guilhermina era filha de uma tal Anna do Carmo, velha predilecção do padre Leonardo, e por elle dotada para o honesto fim de casar-se com um tal francez, com loja de livros na rua das Flores.
O padre não andou com toda a generosidade n'este negocio. Dado o dinheiro, se quizesse ser honrado, devia renunciar inteiramente, a beneficio do livreiro, a mulher de que se descartára. Magôa-nos, porém, ter de annunciar que o arcediago era um agiota no seu genero, e pensamos que a senhora Anna do Carmo não era mau genero para agiotagem.
A verdade é que o pae de Rosa continuava a visitar de dia o estabelecimento do livreiro, comprava algum livro que ajuntava, na estante, aos seus virgens irmãos, e predispunha favoravelmente com as visitas diurnas a confiança do marido, que tinha lido Molière, e não queria incorrer no defeito do Cocu imaginaire, que o leitor póde lêr, se a consciencia o não incommóda.
A honesta esposa repellia as seducções do padre, esquivando-se a encontros em que o usurario amante parecia convidal-a a pagar-lhe um juro avaro do capital recebido. Dissertava-lhe amplamente sobre a verdadeira virtude, pintava-lhe a ingratidão o mais feio dos crimes, dissuadia-a de temores piegas que não tinham nada com a verdadeira religião, e queria convencel-a de peneira nos olhos a respeito do matrimonio e de muitas outras cousas.
O francez não sabia que fôra elle o amante de sua mulher.
Movido pelo interesse que as frequentes visitas do amador dos bons livros lhe dava,—e, de mais a mais, convencido da honestidade de sua mulher, se o padre, feio e velho, tentasse seduzil-a,—o senhor Hemerin Pierrote (Deus lhe falle n'alma) acolheu agradavelmente o seu bom amigo, e honrou-se muito, não só das suas visitas, mas do interesse que o generoso padre tomava em ser o padrinho do primeiro filho de tão feliz matrimonio.
Madama Anna Pierrote recebia com repugnancia as pontuaes visitas do arcediago, e esta repugnancia, que seu marido lhe censurava como inconveniente aos interesses de ambos, era uma nova razão para que o espirito do francez estivesse tranquillo, e as suas portas sempre francas para o generoso compadre.
Este parentesco fôra contrahido muito contra vontade da senhora Anna. Seu marido, porém que recebera de antemão o enxoval do recem-nascido, perguntou cheio de cólera a sua mulher, se queria algum garçon de bone mine (rapaz esbelto) para compadre. Accrescentou que, se ella fosse fina, devia ameigar constantemente o arcediago, que era rico, e poderia fazer o afilhado seu herdeiro. Resumiu, emfim, o seu discurso, declarando, pelo sacre nom de Dieu, que o arcediago de Barroso seria seu compadre, e mandaria n'aquella casa como na sua.
A senhora Anna, coma boa esposa, resignou-se; padre Leonardo, como bom compadre, vinha duas vezes ao dia fazer caretas e botar a lingua de fóra, com o pequeno nos braços; e o risonho marido, como habil e francezissimo logrador, deixava o padre em cima ensinando a creança a dizer papá, e vinha para a loja fazer negocio e trautear a Marseillese.
A creancinha, habituada com o arcediago, apenas o via, estrebuxava no collo da mãe, batendo as palmas, e articulando—papá, papá. O livreiro ria-se muito contente da esperteza do pequeno, e ensinava-o a dizer padrinho; e a creança, que não sabia ainda ajuntar tres syllabas, teimava em dizer papá.
Mr. Hemerin estava contentissimo do filho, e da mulher tambem, porque a repugnancia em receber o arcediago desapparecera desde certo tempo, e sua mulher, emfim, sabia viver perfeitamente com o compadre, e já se lhe não dava de jogar com elle a bisca de nove, e o trinta-e-um.
Correram dois annos n'esta perfeita harmonia. Os visinhos riam-se do francez, mas a razão do riso devia ser elle o ultimo que a soubesse.
Eram notorios, na rua das Flores, os precedentes de Anna do Carmo; os maledicentes sabiam que ella fôra amante do arcediago; o livreiro visinho contava aos seus freguezes a immoralidade do jacobino (que vendia melhores obras, e sortira a sua loja de tudo que se procurava) e lamentava a queda da religião, se o senhor bispo não pozesse côbro áquelle grande escandalo.
O demonio da intriga viera perturbar a felicidade domestica d'aquella familia.
O pequeno Leonardo, já de dous annos, continuava a chamar papá ao padre, com grande aprazimento do pae matrimonial. A senhora Anna mostrava a seu marido as prendas que o compadre lhe dava. O marido mostrava a sua mulher o córte de velludo vermelho que o compadre lhe déra. Tudo isto ia le mieux qui se peut, como dizia o jubiloso livreiro, quando, abrindo de manhã a porta, encontrou uma carta em que um seu amigo intimo, como todos os amigos das cartas anonymas, lhe dizia o que se passava em sua casa, as antigas relações de sua mulher com o padre, e o descredito geral em que a sua honra andava nas praças publicas. Como seu amigo intimo, e zeloso do seu bom nome, aconselhava o generoso espião que pozesse o padre fóra de casa, e que mettesse a mulher no Ferro, para assim dar uma plena satisfação ao publico escandalisado.
O discreto marido leu a carta, e vendeu com a maior presença de espirito um Flos-Sanctorum a um padre da aldeia, que se apeára d'uma égoa, no momento em que a porta se abrira.
—Estas obras de sanctidade—disse o padre—creio eu que se vendem pouco... A religião está por terra... Já lá vai o tempo em que os frades escreviam obras de substancia... Os de hoje criam muito cachaço, e os seculares são uns libertinos, que o mais que fazem é apanhar as prebendas, os canonicatos, e os beneficios para viverem á regalada. O exemplo devemol-o dar nós, como diz o apostolo: Ante eas vadit, et oves eum secuntur... Já lá vai esse tempo. Os bons padres, e que sabem do seu officio, vivem obscuros na aldeia, e ninguem os chama para as dignidades da igreja; os que arruinam com a sua má vida e mau exemplo o edificio da religião, a casa de Deus, ædes Domini, esses são chamados a lamber as chagas do corpo putrido da humanidade; canes veniebant, et lingebant ulcera, como diz S. Lucas no capitulo XVI.
—Então o senhor padre veio requerer algum beneficio, que lhe não deram?
—Vim, sim, senhor, vim pedir ao senhor bispo uma igreja apresentada pela Mitra, e estou aqui ha um mez a gastar n'uma estalagem, e vou-me embora sem ella. O bispo é... o que Deus sabe... Dizem que é um sancto, mas barata virtude é a sua... Quando o rebanho anda tresviado, o pastor não é lá grande cousa, como diz o livro sancto: Nam quod ab ovibus erratur, negligentie pastoris adscribitur.
—Quer o senhor padre uma cousa?
—Nada, não, senhor, não quero mais livro nenhum; precisava d'este para tirar uma duvida sobre se o apostolo Sant'Thiago veio ou não a Portugal, e se S. Martinho de Dume foi arcebispo primaz...
—Eu não lhe perguntei se queria mais livros; disse-lhe que me lembrava um meio de v. s.ª...
—Alto lá! Nada de vossa senhoria... Eu não sou d'esses modernos, que se esquecem da humildade do divino Mestre, e querem as honras que, ha trezentos annos, se davam ao rei... Trate-me por vmc.e
—Pois bem; se vmc.e quizesse, eu poderia arranjar-lhe um bom empenho para o bispo.
—Sim? então quem é elle?
—Isso agora é um segredo... Veja lá vmc.e quanto dá...
—Quanto dou? isso é symonia, reprovada e condemnada com graves penas pelo concilio tridentino. Se eu quizesse servir-me d'esse infernal recurso, bem sei a que porta devia bater. Conheço como as minhas mãos um vendilhão d'esses favores, que não tem vergonha nem temor de Deus, e ha muitos annos que trafica descaradamente com os objectos sagrados da sancta religião de Nosso Senhor Jesus Christo. É um symoniaco, um libertino, indigno de se sentar no cabido...
—Quem é elle?
—Quem ha de ser? é o arcediago de Barroso, um homem sem religião, de pessimos costumes, que tem vivido amancebado toda a sua vida, e que, de mais a mais, tem o desaforo de casar uma das suas concubinas ahi não sei com quem, e disseram-me que continua a viver adulterinamente com ella... Fóra o adultero! Não lhe faltava senão esta!...
—E vmc.e conhece-o?
—Conheço muito bem, oxalá que não. Fomos companheiros no seminario, e já lá prophetisei a rôlha, que viria a ser o senhor Leonardo Taveira... Depois, via-o pelo Porto, e fui jantar a casa d'elle, e sahi escandalisado porque teve o desavergonhamento de sentar comnosco á mesa uma rapariga que tinha em casa...
—Sabe como ella se chamava?
—Sei, sim, senhor. Chamava-se Anna do Carmo...
—Anna do Carmo!...
—Vmc.e espanta-se? É o que eu lhe digo...
—Que figura tinha ella?
—Era uma mocetona tirada das canellas, branca, cheia do peito, com os olhos mesmo concupiscentes como os do proprio demonio, e fallava sem vergonha diante de mim.
—E sabe se foi essa a que elle casou?
—Dizem-me que sim, até o homem é estrangeiro, por signal, e tem não sei que officio. Se vmc.e quizer, eu volto cá qualquer dia, e posso saber-lhe tudo isso a preceito.
—Muito obrigado... eu não tenho interesse n'isso...
—Pois é como é. A religião está entregue a estes ministros. O arcediago de Barroso tem muito dinheiro em casa d'um negociante da rua das Flores, mas esse dinheiro é o preço por que elle comprou o inferno... ganhou-o nas symonias... Lá está em cima quem o ha de julgar... E, com isto, adeusinho até outra vez. Fique na graça de Maria Sanctissima, e passe por cá muito bem até outra occasião, se Deus nos dér vida. Adeusinho, sem mais.
O padre abria o alforge para metter o Flos-Sanctorum, quando o arcediago lhe dava uma palmada no hombro.
—Tu por aqui, padre João Pires?
—É verdade... Então que é feito, Leonardo?
—Vamos vivendo... Já te não vejo ha muito!...
—Não ha dinheiro para vir á cidade... Os padres de requiem não comem do cabido... Lá nas aldeias o mais que se pilha é a missinha de tostão, que não dá para hostias. Isto cá é outra cousa. Os padres do Porto são cardeaes, menos na sabedoria, que no mais tem tudo...
—Não é tanto assim, padre João... Deus sabe como cada qual se arranja. Então vieste comprar o teu livrinho?
—É verdade; comprei o Flos-Sanctorum, e sabe Deus o que me tem custado a arranjar os tres mil e duzentos.
—Se queres mais algum, e não tens dinheiro, eu fico por ti, e tu pagarás depois ao senhor Hemerin, que me faz o favor de ser meu amigo.
O arcediago piscou o ôlho para o livreiro, que estava encostado ao mostrador, e o livreiro, sorriu-se d'um modo que era novo para o arcediago.
—Nada, muito obrigado—disse o padre João Pires—eu não gosto de fazer dividas, porque não tenho esperanças de ser conego para pagal-as depois... Com que sim, meu caro Leonardo... Os bons tempos que nós passamos no seminario... lembras-te?
—Se lembro!...
—Eras um bom tratante!... fugias de noite, e vinhas de madrugada pedir-me que te ensinasse o Larraga... Boas as fizeste!... Que é feito d'aquella rapariga do vendeiro de Campanhã que tu tiraste de casa?
—Não fallemos n'isso... Como tu te lembras d'essas rapaziadas... Esse tempo passou...
—Pois era uma rapariga perfeita!
—E aquell'outra das Fontainhas, que tinha um pae levadinho da breca, que te fez fugir em camisa para o seminario?
—Cala-te lá com essas cousas, João!... Isso foram bambochatas de estudante...
—Está feito, está feito... Tu tens pago um bom tributo á mocidade... Já tu eras padre ha muitos annos, e ainda fazias das tuas de estudante...
—Olha lá, meu caro João, se quizeres alguma cousa de mim...
—Obrigado... Eu gosto de fallar nos tempos da mocidade...
—Pois sim; mas eu tenho de estar nos Congregados ás oito horas... Estimarei que passes muito bem.
—Olha cá, padre Leonardo... ha ahi um sugeito que te quer fallar a respeito d'uma dispensa para casamento entre primos em segundo grau. O pretendente dá boas luvas a quem lh'a arranjar depressa...
—Sim!... pois eu conheço um banqueiro, que vence todas as difficuldades; mas... aqui entre nós... é preciso untar-lhe as unhas...
—Ah! maganão!... o banqueiro és tu em carne e osso!...
—Não sou, João. Acredita que não sou...
—In verbo sacerdotis!
—In verbo sacerdotis... N'essas materias melindrosas não escrupulisa a minha consciencia. Terei algumas fraquezas, de que me accuse, do tempo de rapaz, mas em cousas de religião o caso é muito sério.
—Com que tu tens muitos escrupulos das tuas rapaziadas, heim?
—Alguns; mas em certas idades tudo se desculpa, e Deus bem sabe que a razão não tem a força necessaria para conter os impetos d'aquelle novissimo do homem...
—Que não é do mundo, nem do diabo! Ora pois, Deus te conserve no sancto arrependimento...
—Então quem é o pretendente da dispensa?...
—Isso fallaremos outra vez... Ora olha, meu querido Leonardo, não sei se sabes que tenho cá na Sé requerimento para uma igreja.
—Nada, não sei.
—Poderás fazer com que o senhor bispo me despache?
—Homem, isso é um caso difficil... Se queres que te falle a verdade, no paço tudo se move por dinheiro...
—E tu dás á manivella nas rodas da machina, não é assim, meu Leonardo?
—Estás a rir, João...
—Pois eu podéra chorar!... Tudo isto leva-se a rir, senão endoudecia a gente... Ora anda lá que tu não deves só ter escrupulos das tuas rapaziadas... A proposito de rapaziadas, que é feito da Anna do Carmo?
—Da...?
—Sim... da Anna do Carmo... aquella mocetona que morava comtigo na rua Direita, aqui ha dez annos...
—Não sei... não me recordo... não sei de quem me fallas... adeus... até outro dia...
—Espera homem—disse o padre inexoravel ao confuso arcediago que suava em janeiro como o seu amigo Silva no mez de agosto, por vêr alli tão perto o francez, que não perdia uma palavra do dialogo.—Espera... não te confundas, que eu não quero confundir-te. Isto é conversar como amigos... Eu já sabia que foste honrado com a rapariga, e que a casaste com um bom dote... Uma fraqueza não desacredita ninguem... David tambem peccou, e S. Pedro negou o mestre.
—Dizes bem, João, adeus, até outra vez...
—Então... até outra vez.
Padre João não comprehendeu a afflicção do arcediago. A ultima despedida disse-lh'a, quando elle de repente lhe voltou as costas, por não poder conservar-se com a cara voltada para o francez que lhe não desviava os olhos d'ella.
Já escanchado commodamente sobre o albardão da égoa somnambula, o antigo conhecido de Anna do Carmo, voltando-se para o livreiro, disse, sorrindo:
—Vê que tal é o amigo? Olhe como elle se atrapalhou quando eu lhe fallei na moça...! reparou?
—Reparei... reparei...
—O que ella merecia é que o marido d'ella lhe quebrasse o espinhaço com uma tranca... Mas os maridos ás vezes, são tão bons como ellas... Adeusinho...
—Passe muito bem.
Mr. Hemerin leu, segunda vez, a carta anonyma, e sahiu.
Esperem asneira. Quando mal nos percatamos, temos pela prôa um marido brioso!
Safa!...
Rara avis in terris...