Corria tudo fastidiosamente regular e monótono, menos para o espirito das duas amigas, que progrediam d'um modo admiravel na sciencia das cousas, e na theoria do mundo estudada nos livros. Todas as suas economias de tempo e dinheiro, que lhe sobejavam á farta, empregavam-nas em novellas francezas, que uma criada, das que serviam cá fóra, lhes introduzia no recolhimento, com pequena commissão.
Maria Elisa se dissermos que era uma litterata, não nos fica o remorso de ter mentido. A prova de que o era dá-se com bem pouco: basta dizer que duvidava da efficacia da reza, e dos preceitos mais fundamentaes da sua religião da infancia. Fallava na religião natural, e sabia de cór a Voz da Razão, e a Pavorosa illusão da Eternidade.
Rosa Guilhermina era litterata metade e mais um terço. Não acreditava na reza, nem nos sanctos da regente: mas tinha fé na existencia de Deus! Não era consummada como a sua amiga, que punha todo o desvelo em instruil-a e aperfeiçoal-a.
Era corrido um anno. As meninas entravam nos dezesete, e já não eram as creanças zombeteiras que traquinavam na cêrca, e irritavam as velhas da casa com travessuras.
Convencidas de que eram senhoras, revestiram-se da dignidade propria, deram-se um ar de pensadoras, mediam as suas palavras sentenciosas, olhavam com desdenhosa insolencia a ignorancia das companheiras, desdenhavam o beaterio de muitas que lhes não mereciam o favor das suas reflexões, e, com algumas, dignaram-se descer até lhes confiarem o segredo da philosophia, o dogma sublime da razão. Se quereis em duas palavras comprehender a illustrada extravagancia das duas meninas, sabei que o seu quarto era intitulado por ellas: hotel de Rembouillet. 1
D. Rosa recebia regularmente extremosas cartas de seu pae, que não tinha expressões com que podésse encarecer o talento de sua filha, manifestado nas apparatosas cartas, que lhe enviava.
A ultima, que elle lhe escrevera de Madrid, annunciava a sua proxima vinda para Portugal. Bem informado, o arcediago sabia que as linguas mordentes dos seus inimigos estavam cansadas, e que o processo, ao cabo d'um anno, estava esquecido.
Depois da carta, que promettia a sua vinda, que devia abrir outra vez as portas da clausura ás litteratas, as anciosas meninas receberam outra em que o padre lhes dizia que, em determinado dia, viria abraçal-as, e que fossem dispondo a sua immediata sahida para Lisboa, onde elle tencionava estabelecer casa.
De igual theor recebeu a mãe de Rosa a fausta noticia, e cada qual não tinha socego em preparar as suas cousas de modo que se não fizessem esperar.
Era chegado o festivo dia. D. Rosa com a sua amiga, para não perderem tempo, já tinham feito as suas despedidas; Anna do Carmo tinha fóra dos bahús o indispensavel para as poucas horas de existencia no Porto; umas e outras não sahiam da portaria ou da janella para felicitarem o amante e o pae e o carinhoso protector, quando o senhor Antonio José da Silva rolou a sua rotunda personagem no pateo do recolhimento.
Rosa, ao vêl-o pelo raro, recuou assustada da inesperada visita. O negociante perguntou pela filha do arcediago de Barroso, e a porteira, industriada pela menina, perguntou-lhe se o senhor arcediago tinha vindo.
—O senhor arcediago—respondeu o negociante com a commoção de que era susceptivel—o senhor arcediago... está na presença de Deus...
—Morreu?!—exclamaram as meninas.
—É verdade... Faz favor de me chamar a menina.
—Estou aqui, senhor Silva... Pois é verdade que morreu meu pae?
—Desgraçadamente... Acabo de receber um portador de Madrid... As suas ultimas palavras, foram estas: «Eu morro... vão dizel-o á rua das Flores, no Porto, a um negociante chamado Antonio José da Silva. Morreu de uma apoplexia... Deus tenha a sua alma na bemaventurança...
—Isso é impossivel!...—atalhou Rosa, soluçando e chorando.
—Pois é tão certo como estarmos aqui, senhora D. Rosa... O peor é que o grosso dinheiro que seu pae levou, sabe Deus porque mãos andará a estas horas!...
—E eu fiquei pobre, não é assim?—atalhou a litterata, que considerava a riqueza como o primeiro dogma dos sublimes dogmas da razão.
—Pobre... não, senhora—respondeu o negociante, enxugando uma lagrima importuna.—A menina está perfilhada. Eu tenho a perfilhação em meu poder. Ainda mesmo que não appareça o dinheiro, que elle levou, o seu patrimonio vale bem quarenta a cincoenta mil cruzados. É a quinta de Ramalde, são dous predios na cidade, e as pratas de seu pae, que estão em minha casa, só essas valem bem seis mil cruzados, a olhos fechados. O que é necessario é fazer-se um conselho de familia, e bom será que a menina sáia do recolhimento para tomar conta da casa de seu pae.
Pergunta d'aqui, resposta d'acolá, convieram em que a menina sahisse, passados tres dias, durante os quaes recebeu visitas no seu quarto, e chorou alguns instantes sinceramente.
Maria Elisa, como philosopha e boa amiga, animou-a a resignar-se, convencendo-a de que a morte era a condição da vida, e que as lagrimas não resuscitavam ninguem. Rosa conveio n'isso em nome da illustração do seu elevado espirito, e assentou em mostrar-se intrepida na dôr.
Portador da infausta nova, o negociante foi dar o tremendo golpe na pobre esposa sem marido, e na amante sem amparo, que devia sentil-o mais profundo. Ahi, sim: havia uma verdadeira dôr, a consciencia de desamparo, a invalidez na quasi velhice sem refugio. Restava-lhe uma esperança: era sua filha; mas essa filha não lhe bebera o leite, não lhe sentira os beijos, não lhe vira as lagrimas, nunca lhe chamára mãe.
Por encurtar razões, o franco negociante foi-lhe dizendo que em seu poder não estava dinheiro algum, e que tractasse ella de procurar o amparo de sua filha que era a herdeira do arcediago.
Ao quarto dia, D. Rosa Guilhermina com a sua amiga occupavam a casa do Laranjal, tomavam as antigas criadas, e consultavam-se no que deviam fazer, ou se acceitariam as condições que algum impertinente tutor lhes impozesse.
—Eu não posso dizer nada em tal assumpto—respondeu Elisa.—Sou absolutamente estranha n'este objecto; não obstante, como tua amiga intima, entendo que não deves sujeitar o teu coração ás barbaras leis d'algum barbaro tutor.
Já vêem como era o estylo de Elisa; agora admirem o de Rosa:
—Dizes bem, minha terna amiga. Se a parca me roubou o pae, não serei ludibrio da morte, porque vivo ainda. Não quero mais reclusão, nem o convento para mim foi feito. Quero a liberdade, porque o meu coração é livre. Eu e tu temos bastante philosophia para nos sabermos guiar na estrada tortuosa do mundo. Conhecemos a sociedade pela leitura; saberemos evitar os abysmos, renderemos os nossos corações aos ardentes votos d'algum amor digno de nós, e viveremos juntas pelo espirito, assim como temos vivido pela intelligencia.
Fallou bem. Tudo, que dissesse depois disto, seria uma redundancia. Não ha nada a desejar aqui. Optima resolução, exemplar programma, e invejavel talento!
Nomeado conselho de familia, a orphã foi consultada pelo tutor, homem probo, escolhido pelo senhor Silva. A menina espivitada respondeu em alto estylo, e o tutor retirou-se maravilhado da pupilla, e disse em plena reunião dos membros do conselho de familia que ella era muito pronostica, e que fallava com cabeça. Os outros membros não duvidaram acredital-o, e consentiram em que a menina fosse entregue dos seus rendimentos, e vivesse fóra do recolhimento.
Contentes da sua sorte, as duas litteratas, cada vez mais ricas de sciencia, achavam já que o seu espirito não saboreava a simples nutrição dos romances, e queriam mergulhar no oceano da sabedoria. Talhavam o seu plano de instrucção; lastimavam a soledade em que viviam duas almas devorando-se no proprio fogo, e sentiam a falta de uma sociedade mais ampla que as admirasse, ou de espiritos illustrados que as conduzissem á luminosa região das sciencias ignoradas ao seu desherdado sexo.
Tudo isto era muito bonito; a tal respeito diziam-se cousas admiraveis, quando, no mais acalorado do projecto, D. Rosa Guilhermina Taveira recebeu a seguinte carta:
«Minha filha. Ignoras talvez que a morte de teu pae deixou n'este mundo uma mulher desvalida. Esta mulher é tua mãe, e terá brevemente necessidade d'um bocado de pão. Quando esse momento vier, não o negues á infeliz Anna do Carmo, que irá mendigal-o á tua porta. Vivo na rua Direita n.º 25.»
Esta carta, lida em sobresalto, produziu em Rosa uma sensação inqualificavel. Elisa, queria vêr esta carta, e a sua amiga não lh'a mostrava.
—Será namoro?!—perguntou Elisa com azedume e admiração—Diz, Rosa! tu não me respondes? Deixa-me vêr essa mysteriosa carta! É epistola amorosa?
—Não, minha amiga... É uma carta, que não te mostro!... Não devo mostrar-t'a...
—Oh céos! que estranha carta é esta! Não sou eu, por ventura, a tua amiga, a confidente dos teus segredos?
—És... mas ha segredos que se não dizem...
—Pois bem: eu calarei a minha ancia, e não farei jámais de amiga para todos os teus cuidados, Rosa.
O portador esperava a resposta.
A filha de Anna do Carmo sahiu de ao pé da importuna confidente, tirou da gaveta do seu tocador quatro cruzados novos, embrulhou-os em um retalho de sêda preta, entregou-os ao portador, sem lhe dizer palavra, e rasgou a carta.
Quando voltou, chorava Elisa, em ar de arrufada amante. Rosa, mais tranquilla, se era possivel uma consciencia boa, depois de tão generosa acção, serenou a susceptibilidade da sua melindrosa amiga com esta revelação:
—Olha, querida amiga, faz comigo as pazes. Eu te digo o que se passa. A carta, que recebi e devolvi pelo portador, era uma súpplica de uma pobre amante de meu pae, que me pedia uma esmola. Fez-me tanta pena, que me vestiu de luto o coração! Como pensei que era aquelle um deshonroso segredo para meu pae, nem dizer-t'o a ti, cara amiga, eu julguei que me era nobre. Ora aqui tens...
—E mandaste-lhe o beneficio supplicado?
—Mandei...
—Fizeste bem... Pobre mulher, abandonada, não devia achar fechadas as portas da alma que sahiu do peito amante. Perdôa a meu resentimento, querida Rosinha...
E com estas e outras finezas passaram uma hora, ao fim da qual voltava o portador, que levára o dinheiro, e entregava á senhora D. Rosa Guilhermina outra carta, acompanhando os quatro cruzados novos. A carta dizia assim:
«Minha filha. A esmola é muito avultada para uma mãe. Quando eu tiver fome, irei pedir-te um bocadinho de pão.»
Rosa fez-se da côr do lacre, e fugiu de ao pé da sua amiga.