CAPITULO VI

Rosa Guilhermina foi recebida com carinho pela regente, senhora de boa educação, e incapaz de satisfazer as rigorosas recommendações do arcediago. A pensionista era tão meiga, tão sympathica, e tão linda, que prendeu o interesse das suas companheiras, e a amizade da regente.

Padre Leonardo recommendára que a deixassem sósinha, e a não recreassem de modo que ella saboreasse a vida nova, que lhe era dada como castigo. Ainda assim, as commodidades do quarto não lh'as negára elle. Rosa encontrou aceio, suppondo que acharia um escuro cubiculo, e uma enxerga por cama. Encontrou raparigas folgazãs, onde esperava achar velhas rabugentas. Achou comida bem feita e abundante, onde lhe tinha dito D. Eugenia que se jejuava todos os dias, e o melhor manjar eram papas de farinha milha. Se não via a rua, que tinha, n'esse tempo, pouco que vêr, a cêrca era espaçosa para brincar, e, a certas horas, as garrulas meninas saltavam como cabras, e rasgavam os sapatos e os vestidos á sua vontade.

Basta dizer-vos, leitoras compadecidas da namorada de José Bento, basta dizer-vos que a reclusa não tinha tempo para pensar sériamente no aprendiz de loio, nem, ainda no senhor Antonio José, nem na senhora Angelica. É verdade que uma saudade dolorosa lhe assomára aos olhos em lagrimas, que as pensionistas tractaram de enxugar-lhe com brinquedos. Era uma saudade, que lhe aguava os prazeres inesperados do recolhimento: era, em fim, a saudade pungentissima da sua gata malteza.

Entre todas as meninas, havia uma sua predilecta, inseparavel, visinha de quarto, e da sua idade. Esta não era pensionista. Orphã de pae e mãe, fôra adoptada pela Misericordia. Galhofeira por indole, tinha momentos de entristecer-se da sua condição parasita, e custava-lhe soffrer encargos que as pensionistas não tinham. Lembrava-se de ter sido, até aos oito annos, educada com mimo, revoltava-se contra a religião, que mandava resar de madrugada, e muitas vezes disse ás mestras que sua mãe sahiria da sepultura, se soubesse que creava uma filha para viver sujeita ás migalhas da Sancta Casa da Misericordia, que não tinha muita. Felizmente para o senhor Diogo Leite, provedor da Sancta Casa, a mãe de Maria Elisa, por ignorancia talvez do mau humor de sua filha, não consta que sahisse da sepultura. E a prova é que a orphã resignou-se á sua sorte, e parecia mais feliz desde que Rosa a preferiu como amiga ás ricas pensionistas, que desdenhavam da preferencia pouco nobre e desairosa para ellas.

Maria Elisa entrára para o recolhimento aos oito annos. Aos quatorze estava mulher, e não sei por que phenomeno do instincto sabia, pouco mais ou menos, qual era a vida cá de fóra! Se não é phenomeno, devemos acceitar a explicação natural do facto, como nol-a dão hoje as sinceras mães de familia, que alli foram educadas. D'antes (e agora é o mesmo) um pae que receiava os resultados da indiscreta inclinação de sua filha já adulta, e emancipada, pegava da filha desobediente, e fazia o que fez o arcediago á sua. Acontecia, porém, que nem todas eram innocentes como a filha do arcediago. As que entravam apaixonadas, o desafogo que tinham era fallar da sua paixão em geral, e das particularidades a alguma amiga intima, que se entretinha a scismar nos pesares da sua amiga, e achava que os homens, se fossem cousa má, não eram chorados pelas pobres meninas, victimas d'um deshumano pae, ou d'um barbaro tutor, como ellas diziam em estylo da tragedia velha. N'aquella casa correu occulto o desenvolvimento de dramas atrozes. Presenciaram-se alli despotismos, cuja historia espanta o coração. Os que hoje encaram aquellas paredes de branco, com persianas verdes, não imaginam que alli dentro, ha menos de trinta annos, se bebeu um calix de fel, cujo segredo uma sepultura lacrou. E quantos calices! quantos segredos! que revoltantes infamias á sombra da misericordia dos homens, que se diz a expressão da misericordia divina!...

E essas scenas presenciavam-nas meninas, que não recebiam o exemplo como admoestação, mas arrefeciam de terror quando ouviam os gritos inuteis, as supplicas escarnecidas, e os gemidos suffocados na garganta das que alli morreram abafadas.

Olhai, leitores: quando assim se falla, quando não ha receio de formular d'este modo as affirmativas, crêde que o escriptor tem as provas debaixo dos olhos. Hei de contar-vos um segredo, que vos ha de merecer lagrimas... Ha de ser um dia, quando um homem vivo acabar de cerrar os olhos, que já vêem pouco n'este mundo. Escuso dizer-vos que eu poderei cerrar primeiro os meus. N'esse caso, desde já me desobrigo da minha promessa.

Vinha eu fallando da innocencia das meninas, e especialmente de Maria Elisa, amiga intima de Rosa Guilhermina. Sinto dizer-vos que não era, espiritualmente fallando, mais innocente que eu e tu, leitor desempoado, que frequentas o theatro italiano, e bebes o teu punch, e fumas o teu charuto, e consomes a tua resma de papel, mensalmente, fallando da tua innocencia á visinha.

O que ella tinha mais que eu, e tu, leitor, era uma galante cara.

O cabello negro, em ondas, cerceado pelas pequeninas orelhas, era d'um effeito satanico. Olhos rasgados, e negros, como as espessas pestanas; trigueira; com todo aquelle fogo vertiginoso das mulheres trigueiras; labios sedentos de beijos, sorrindo para o amor e para a zombaria com o mesmo sorriso; e, mais que tudo isto, um buço, tão igual, tão caprichosamente graduado até aos cantos dos labios, em que o maldito seductor parecia colher um beijo para atormentar os Tantalos d'esta iguaria...

Creio que não fazem ideia nenhuma da pequena pelo retrato que lhes dei. Eu tambem não. Quando me pintaram a physionomia d'ella, não fiz ideia nenhuma, e prometti desde logo communical-a ao publico tão fielmente como eu a concebera.

Se tendes senso-commum, basta dizer-vos que Maria Elisa era trigueira para m'a receberdes como linda, porque as não ha lindas se não são amoldadas por aquella outra trigueirinha que o sancto rei de Jerusalem celebrisou nos seus cantares. Olhai lá se elle, entre mil queridas que lhe rodeavam a existencia de portas a dentro, cantou alguma outra! Pela trigueira, mas formosa, nigra sum sed formosa, o sabio elanguescia d'amor, amore langueo. Em nenhuma outra viu olhos de pomba, oculi tui columbarum; só a ella concedeu nos seios mais limpidez que no vinho, pulchriora sunt ubera tua vino, e o pat-chouli da trigueirinha era superior a todos os aromas, et odor unguentorum tuorum super omnia aromata.

E como creio que nenhum de nós tenha a ridicula vaidade de ser mais sabio que Salomão, concordemos em que o typo, que mereceu a especial sympathia do sabio por excellencia, deve ser o eterno typo do bello.

Toda esta erudição vem confirmar que Maria Elisa era bella, porque era trigueira. A julgal-as exteriormente, as duas meninas deviam ser dois temperamentos oppostos. Rosa denunciava uma d'estas mulheres eternamente cansadas, apparentemente somnambulas, arfando a cada palavra de tres syllabas que dizem, olhando para si com ar de piedade e para os outros com aborrecimento, rindo-se com a bôca toda, e mastigando pausadamente uma resposta dependente d'um sim ou não. Elisa colleava-se, requebrava-se, desconjunctava-se, trepava ás arvores, fazia discursos sobre a inconveniencia das mulheres velhas, sobre o despotismo da regente, tudo em linguagem muito caracteristica, e acabava por entristecer-se, dizendo que se sua mãe soubesse o que ella penava, partiria a pedra do tumulo para galardoar a regente e a sub-regente cada uma com dois sopapos.

Parece impossivel que estas duas organisações sympathisassem! Pois eram amicissimas, viviam juntas de dia, illudiam as vigilancias dos guardas para pernoitarem juntas, e chegaram, por estranho milagre de infusão, a neutralisarem os temperamentos de modo que se pareciam muito uma com a outra.

Elisa arrancára á sua amiga a revelação do motivo por que a encarceravam. Ouviu-lhe, com seriedade comica, a odienta impertinencia do senhor Antonio José da Silva, monstruoso amante, e n'essa noite improvisou, no seu quarto, com o travesseiro e chapéo e jaqueta do hortelão um Antonio José da Silva, e convidou Rosa para assistir a um castigo exemplar. O castigo era uma carga de vassoura no mono, até se despegar a aba esquerda do chapéo do hortelão: tudo isto com estridolas gargalhadas de ambas, que pozeram em alarma o dormitorio.

A respeito do senhor José Bento, cuja derradeira entrevista, Rosa fielmente contára, não nutria Elisa sentimentos mais sérios. Achava-o tôlo, estupido, achavascado, e promettia pôr-lhe um rabo de papel, se algum dia tivesse a fortuna de encontral-o.

E a filha do arcediago achava que a sua amiga tinha razão, porque as historias de amores, que ella lhe contava, eram cousa mais sublime, mais deslumbrantes, que os seus miseraveis dialogos com o filho do retrozeiro, a quem Elisa denominava patego, parrano, gebo, e outras amabilidades, como lapardão.

—Olha, Rosa, não contes a ninguem que foste namorada d'esse pazbobis—dizia Elisa, passeando na cêrca com o braço botado por sobre o hombro da sua amiga.—Eu tenho ouvido contar muita historia ás raparigas que vem obrigadas para aqui. Umas são fidalgas que quizeram casar com homens ordinarios, e outras são raparigas como eu com quem os fidalgos não querem casar. Todas ellas contam á gente as conversas que tinham com os namoros, e dizem cousas muito bonitas, que fazem chorar, como as novellas da Maria Peixoto, que eu li.

—Quem é a Maria Peixoto?

—Era uma rapariga que já sahiu. Queres saber o que ella fez? Eu te digo. Um tio metteu-a cá, porque ella queria casar-se com um plebeu, sendo fidalga dos quatro costados, como diz a regente, que tem mais dois costados que as outras. A Maria Peixoto quando entrou, faz agora um anno chorou muito, e esteve á morte. Quando se levantou da doença, estava alegre, e diziam as velhas que fôra milagre de Nossa Senhora do Rosario. Eu estava admirada de a vêr tão contente, quando me ella disse que queria fugir do recolhimento, e precisava fingir-se para a não vigiarem. Um dia entrou um carro de lenha por aquella porta, e ella andava por aqui disfarçada, e quando pilhou a porta aberta, ó pernas, p'ra que vos quero!... A tôla, se havia de procurar o namoro, foi metter-se em casa d'uma tia, que era tão boa como o tio, e n'esse mesmo dia trouxeram-na cá outra vez.

—Coitadinha!... e depois? trataram-na muito mal?

—Isso sim!... Se a visses, fugias-lhe! Parecia o demonio! Com a faca da cosinha na mão, correu atraz da regente, que se alapou no quarto, e gritou por soccorro. Procurou todas as velhas, deu um pontapé na sacristã, atirou de cangalhas a Lima velha, foi á porteira, e disse que lhe cravava a faca no peito se ella lhe não abrisse a porta. A porteira gritava como uma perúa, emquanto a Maria Peixoto lhe tirava a chave, e abria a porta. Não te digo nada, Rosinha! Nunca mais lhe pozeram ôlho... Da segunda vez foi mais fina. Casou-se com o tal rapaz, e mandou cá buscar os bahus, e muitas recommendações á regente, que ainda se benze quando se falla em Maria Peixoto... Aquillo era levadinha! E esperta? Traduzia novellas francezas ás raparigas, e leu-me uma que fazia doer a barriga com riso... era o Cavalheiro de Faublás, já lêste?

—Eu não tenho lido nada... Em casa do tal amigo de meu pae não havia livro nenhum. O que me lá deram foram as Horas Mariannas e a Alma Convertida.

—Olha que brutos!... Deixa estar que te hei de contar a historia do Cavalheiro Faublás, que é de morrer a gente com riso. A senhora regente pôz-se um dia á escuta, quando a Maria Peixoto lia uma passagem, e disse uma rapariga que ella estava a rir-se; mas, depois, entrou com as cangalhas espetadas no grande nariz, perguntando que livro era aquelle. A Peixoto disse-lhe que era a vida da Gloriosa Sancta Maria Magdalena Virgem, e a regente disse que Sancta Maria Magdalena não era virgem. «Então é martyr»—teimou a Peixoto—«nem martyr, nem confessora» replicou a regente, e levou-nos o livro, que, pelos modos, lhe traduz hoje o padre capellão, valha a verdade.

—Recolham-se, meninas, que é noite—resmungou fanhosa a regente de uma janella.

As meninas subiram, praguejando a superiora, especialmente Maria Elisa que recitou uma ladainha de titulos em que os menos insolentes eram camafeu, trôxa de ovos e santopêa.

Quando passavam no dormitorio, espreitaram pela fechadura de uma porta, e fungaram com riso.

—Deixa-me vêr a mim—disse Elisa.

—Agora eu.

—Um bocadinho a mim.

—Que vês?

—É a Clemencia Lima que salta por cima d'uma fogueira de alecrim.

—E que diz ella?

—Não ouço: vê tu se ouves... Que diz ella?

—Dá um saltinho, e diz: em louvor de Sancto Antoninho. Agora é a outra que salta, e diz: em louvor de Sancto Athanazio, e da senhora regente.

—Diacho das velhas estão doudas!—segredou Maria Elisa—Vamos nós assustal-as?

—Como?

—Assim...

O assim era um empurrão na sua companheira. A porta, mal fechada, não susteve o impeto, e Rosa foi de encontro á velha Clemencia, que dava um terceiro pulinho em louvor de Sancta Quiteria, e do provedor da Sancta Casa. O choque foi desastrado! Aterradas as duas irmãs, que não podiam sustentar-se sobre a esboroada peanha de oitenta annos cada uma, cambalearam e cahiram, guinchando de modo que a turba das raparigas alvoroçadas veio, por assim dizer, peorar a sua situação.

Entre as que vieram estava Maria Elisa, perguntando ás pobres velhas quem as atormentava.

—Era o demonio!—disse Clemencia.

—Em corpo e alma!—accrescentou Rita.

—Tragam agua benta, e a regra do patriarcha S. Bento—disse a regente.

—Emquanto as abluções demonifigas se faziam na cella endemoninhada, Maria Elisa contava a Rosa o primeiro capitulo do Cavalheiro de Faublás.

Share on Twitter Share on Facebook