Os planos, que o arcediago incubára no seu profundo saber do coração humano, abortaram. Sahia-lhe tudo ao envez das suas esperanças. Previra a humildade de Rosa, depois das mortificações da reclusão; e Rosa cada vez mais contente, agradecia ao pae, que a procurava todas as semanas, a lembrança de a castigar com o recolhimento.
No principio, a regente era instada para augmentar as privações da educanda; mas as privações não podiam ser dadas como supplicio a uma menina que vivia contente, e cumpria com regularidade e promptidão as poucas obrigações de pensionista.
O zêlo pharisaico do arcediago afrouxou, porém, com a frieza do senhor Antonio José da Silva. A catastrophe ridicula, de que fôra victima o esmurrado negociante em casa do João retrozeiro, modificou-lhe consideravelmente o coração, a respeito de Rosa Guilhermina, pomo de discordia, e causa desastrada de similhante conflicto.
O senhor Antonio soffreu, pela primeira vez, uma decepção nas suas crenças senis. O pugilato com a senhora Anna Canastreira chamou-o á razão, e, se não é profanar a ideia, diremos que a poesia matrimonial do senhor Antonio fôra dilacerada pelas unhas felinas da visinha.
O pobre homem tinha vergonha do successo. Na rua das Flores não se fallava em outra cousa. O seu visinho João Pereira, o do chinó, ria-se á sucapa com o visinho da loja immediata, emquanto sua mulher contava á visinha, com grande hilaridade, os famosos murros, que o ciumoso Antonio jogára com a mãe de José, por causa da Rosa. O que ella não dizia, por não escandalisar, e todos o sabiam, era que um seu amante fôra a forçada testemunha do apaixonado dialogo, que os leitores, sem serem os amantes da mulher do senhor João Pereira (se é que alguns o não foram), tambem ouviram.
O rico negociante tinha inimigos, émulos de negocio, os peiores de todos, que espreitavam o primeiro ensejo de o apoquentarem. Não podia ser melhor o motivo. Algum mais odiento levou a sua vingança ao extremo de fazer quadras ao desventurado negociante. Algumas d'essas quadras, em verdade chistosas, chegaram á minha mão. Se não fosse o medo de aggravar a indigestão de versos em que imagino encruado o estomago do publico, podéra dar-lhe quatrocentos e tantos versos consagrados ao senhor Antonio José da Silva, debaixo do titulo: CUPIDO DESDENTADO. Sem embargo, porém, da christã generosidade que tenho com o leitor, não o poupo ao flagello de lêr um fragmento d'esse poema, que devia ser a causa principal do abandono a que o infeliz heroe votou a filha do arcediago.
O dito poema é de author incognito, e o fragmento não vol-o dou como primor de arte; é crivel, porem, que o author tivesse filhos, e os filhos do author, apurados em raça, serão talvez os genios que hoje prendem a nossa admiração, e engrandecem as letras patrias.
Elle ahi vai:
Dom Cupido desdentado,
Despresado em seus desvelos,
Jurou, sobre os seus chinelos,
Guerra eterna ao seu rival!
Fumegando pelas ventas
As tormentas do ciume,
Todo elle é fogo, é lume,
No solar do Retrozeiro.
Dom Cupido desdentado,
Desarmado, vai sem frecha
Quer abrir, a murro, a brecha
Do rival no coração.
Torce os olhos, solta um urro,
Préga um murro na maçã
Da fanhosa castellã,
Que se atira a elle á unha.
Dom Cupido desdentado,
Não vingado, cahe de chofre,
E tal pêso a velha soffre,
Que estourou! ó vista horrivel!
Pobre Aonio, pobre Aonio,
Que demonio te tentou!?
Antes dentes ter, Antonio,
Que não ter, e ser Cupido!
Dom Cupido desdentado,
Quer o fado que eu te diga,
Que não pódes ter barriga
Mais mal feita para Rosa!
Come bem, morre a comer,
Que, a meu vêr, é grande asneira
Ter inveja do João Pereira,
Teu visinho, ao tal chinó!
..........................
Et cetera.
O chinó de João Pereira fôra sempre o pensamento negro da victima do poeta! Este sarcasmo ferira atrozmente o infeliz! A reacção devia ser dolorosa, mas, passada a crise, o senhor Antonio sentia-se bom, porque ao pino do meio-dia, horas de jantar, a sua paixão dominante era o melhor dos appetites. Não tinha havido poesia, que tão util fosse ao genero humano, até então, porque só depois vieram as poesias hygienicas, ás quaes a humanidade está muito agradecida, principalmente a humanidade atacada de vigilias. Afóra estas, foi aquella a poesia que melhor fructo colheu. O senhor Antonio, desde esse dia, comeu como sempre, e dormiu como nunca. Ao mesmo tempo que era açoutado em effigie no quarto de Maria Elisa, o razoavel negociante apertava os vinculos, meio lassos, que o prendiam á Thereza, com barraca de fructa na Ribeira, e entendia de si para si que a mulher que lhe convinha era aquella.
E, tão de maus humores o encontrava o arcediago, que nem ousava fallar-lhe em Rosa, nem, o que mais era, o convidou para o vinho verde de Campanhã nos domingos de tarde.
Data d'ahi, portanto, a tolerancia do padre com os divertimentos da filha. Visitava-a com melhores maneiras. Festejava Maria Elisa, que lhe chamava padrinho, presenteava-a com vestidos similhantes aos de sua filha, e redobrava de contentamento, sabendo que o filho do retrozeiro era uma cousa sem importancia no voluvel coração da pequena.
Tudo corria maravilhosamente para todos, quando Rosa Guilhermina, dia de entrudo, atirava cantaros de agua, e recebia-os agradavelmente pela cabeça. O resultado, porém, foi uma constipação despresada, uma tosse continuada, febre, e, na primavera seguinte, foi julgada no principio d'uma phtysica.
O arcediago resolveu levar sua filha a ares para uma sua quinta de Ramalde, e alcançou licença a Maria Elisa para acompanhar a sua amiga. Sahiram, e desde esse dia, a regente, a sacristã, e todas as velhas, especialmente as Limas, agradeciam, todas as manhãs, á Providencia o favor de lhes afastar de casa similhante flagello.
Rosa melhorou apenas se viu em boa harmonia com seu pae, livre do pavoroso negociante, senhora da sua vontade, rindo e brincando com a sua amiga, amimada pelas duas criadas que o arcediago lhe dera, e decorando cada vez melhor o romance predilecto de Maria Elisa.
No inverno proximo, as meninas vieram para a cidade, e encontraram uma casa bem mobilada, apetrechada de tudo que mais lisongeava duas amigas inseparaveis. Esta casa, situada á entrada da viella do Cirne, com frente para a rua do Laranjal, ainda hoje conserva um ar campestre, que, ha quarenta annos, era muito mais agradavel, porque a não assombravam então os edificios do largo da Trindade.
O quintal d'esta casa communicava com o do defunto Rodrigues Passos, professor de latim, e o leitor, se tem prestado alguma attenção ao que se lhe diz, deve lembrar-se que José Bento, no extremoso colloquio com a sua visinha, annunciou a sua ida para o collegio de Passos.
Rosa nem de tal se lembrava já, quando encontrou os olhos piscos do esquecido amante espetados nos seus. Elisa, que reparou na surpreza da sua amiga, perguntou:
—Aquelle mono conhece-te?
—Conhece... Aquelle é o filho do retrozeiro... Agora me lembro que elle disse que vinha para a Cancella-Velha!...
—Vamos nós namoral-o?
—Deus me livre!... Tomára eu que elle me não dissesse nada... Olha o tôlo!...
—O que nós queremos é rir-nos... Pergunta-lhe se está melhor das dôres de barriga.
—Eu não... Deixa o pobre rapaz... Vamos embora.
O estudante, cada vez mais pasmado do silencio de Rosa, é natural que meditasse na razão d'aquelle inesperado encontro, quando Maria Elisa, com a maior naturalidade, lhe perguntou:
—Como está da sua barriga, senhor José?
O rapaz fez-se muito vermelho, e não respondeu palavra.
—Cala-te, Maria!—murmurou Rosa, puxando-a pelo vestido.
—Não quero calar-me. Pois eu não hei de saber como está a barriga do teu namoro? Então vmc.e não me responde? Olhe que eu sou sua amiga, e faço esta pergunta, porque a Rosinha tem vergonha, e pediu-me que lhe perguntasse se está melhor.
—É mentira!—atalhou Rosa, córando—eu não disse tal... Não digas o que não é, Mariquinhas...
—Pois então, não dirias; mas eu quero que aquelle senhor me responda. Vmc.e é mudo?
—Não sou mudo—disse o estudante embezerrado.
—Então, falle á gente.
—E se eu não quizer?
—Se não quizer, não falle; mas é má creação tratar assim quem lhe pergunta se está melhor da sua barriga.
—A minha barriga, graças a Deus, está boa, e vmc.e que lhe quer?
—Não quero nada... eu já lh'a pedi?
—Pensei que lhe queria alguma cousa... Eu não sou boneco de palha para caçoadas.
—Vmc.e parece-me um mau rapaz! Quem é que o caçôa? Nem me parece um estudante! Valha-o Deus! eu, se fosse Rosinha, não lhe tinha amor...
—Cala-te, Maria!.., Tu pareces-me tôla! Deixa o rapaz!—disse baixinho a Elisa, forçando-a a retirar-se d'alli.
—Deixa-me caçoar com elle... Eu não te disse que lhe havia de pôr um rabo-leva de papel? Já que não posso, deixa-me rir com este gêbo, e tu ri-te tambem.
José Bento, favorecido pelo dialogo, ia-se escapando surrateiramente, quando Elisa o chamou:
—Psiu!... psiu!... Olhe cá!...
—Que me quer?
—Vmc.e estuda para frade?
—Que lhe importa se estudo para frade?
—É que se vmc.e fosse frade, eu queria ser frada, e haviamos de ter uma casinha ambos e um quintalinho, e as nossas gallinhinhas, que nos haviam de pôr os seus ovinhos, que nós haviamos de cosinhar ambinhos na nossa cosinhinha, e depois a gente dizia a sua missinha... e depois a gente vinha tomar o sol no seu quintalinho... e depois...
Rosa ria-se como uma perdida, quando o filho da senhora Anna Canastreira, alongando a tromba, e franzindo o nariz, resmungou:
—Sabem que mais? vão bugiar! O meu regalo era...
—Qual era o seu regalo, ó senhor José?
—Se não fosse estar em casa do mestre... eu lhe responderia...
—Ora diga lá baixinho a sua resposta, que eu não digo nada ao mestre.
—Vá...
—Que vá, aonde? Não seja tão mausinho, senhor Josésinho do meu coração. Vmc.e ha de ser um fradinho de pau de sabugo muito bonito... Já tem corôa?
—Tenho um dardo que a parta.
—Olha que mau!... Senhor José, não seja assim... Tome lá uma beijoca.
O corrido estudante tinha desapparecido, não só porque se via embaraçado em responder ás zombarias da importuna rapariga, mas porque o mestre, ouvindo-o fallar, vinha de manso espreitar com quem era. O zeloso professor appareceu no muro, e ainda viu as duas meninas, que se retiravam em grandes gargalhadas. Enfurecido com a audacia do lôrpa, como elle generosamente o intitulava, foi ter com elle explicações acerca de tal conversa.
—Que dizias tu áquellas meninas?
—Eu, nada... Eram ellas que...
—Que... o que? que te diziam ellas?
—Ellas diziam que...
—Acaba d'ahi selvagem!
—Eu estava alli a estudar a selecta primeira, e ellas disseram-me que...
—Estás zombando comigo?
—Perguntaram-me se eu era...
—Um burro? e tu disseste-lhe que sim.
—Não foi isso... perguntaram-me se...
—És um asno quadrado! Ouviste, lôrpa? Se te vir outra vez a fallar com as visinhas, escangalho-te as mãos! Não tens habilidade para traduzir mundus á domino constitutus est, e sabes dar tréla ás raparigas!? Ora deixa estar que te farei a cama!...
A crise passou, e José Bento n'esse dia apenas teve, como era de costume, um bofetão e um puxão de orelhas, por causa do imperativo laudandum.
No dia immediato, as meninas não o viram; mas, no outro, Rosinha viera adiante esperar a sua amiga para colherem rosas do Japão, quando ouviu o som roufenho da voz conhecida de José Bento:
—Senhora Rosinha, assim é que vmc.e se porta comigo?
—Ah!... estava ahi?!...
—Pois então! cuida que eu me esqueci de si? Ficou de me escrever, e foi como se nada!... Olhe lá como vmc.e é!
—Não pude, senhor José... e tenho a dizer-lhe que é melhor não me fallar, que meu pae ralha-me. Faça de conta que nunca nos vimos. Aquillo que nós dissemos foi uma brincadeira de creanças. Trate do seu estudo, e não se embarace comigo, porque eu tenho muito medo a meu pae...
—Sempre vmc.e é... d'aquella casta! E eu a pensar em si todos os dias, e sempre a esperar noticias suas, ha quasi um anno!... Então eu já não sou o mesmo?
José Bento proseguia n'uma tirada eloquente contra a perfidia de Rosa, quando o vulto austero do mestre de latim surgiu de improviso ao lado do pallido estudante. Ao mesmo tempo, chegava Elisa, rindo muito da surpreza, e Rosa punha os olhos no chão, e cortava machinalmente uma rosa menos purpurina que ella.
—Chegue-se aqui!—disse o mestre ao rapaz aproximando-o do muro, que dividia os dous quintaes—Ó meninas!
—Que quer?-perguntou Elisa.
—Os meus discipulos ensinam-se assim. Dê cá a mão, seu lôrpa!
José Bento, córado como um mólho de malaguetas, recuou diante da palmatoria, cuja cabeça o espreitava por debaixo do capote de saragoça.
—Dê cá a mão! Vossê não obedece? Olhe que o mando pendurar n'aquella figueira.
—Como Judas Iscariote—atalhou Elisa, fungando, e esfregando as mãos.
O infeliz déra a mão, e quatro sonoras palmatoadas lhe estouraram na epiderme. A dôr moral devia ser grande! Rosa estava pallida, e Elisa, de repente, séria, disse ao professor:
—Se eu fosse elle...
—Que diz lá a senhora?
—Digo que, se fosse elle...
—Que faria?
—Dava-lhe um murro no nariz.
—Em quem?
—Em vmc.e...
—Se é senhora, não o parece...—disse o professor, encarando-a com desprêso—Eu tratarei de saber quem é seu pae, e, se seu pae lhe não der com umas disciplinas...
—Que me ha de fazer? dá-me palmatoadas?
—Hei de lhe mandar dar com um chinelo...
—Fóra casmurro!... Venha para cá, que lhe hei de dar um docinho...
O infiado mestre foi cevar as iras impotentes no pobre moço, que levou a ponta-pés para o quarto.
José Bento recahiu n'uma profunda concentração. Durante o dia não comeu, nem bebeu, nem estudou. Á meia noite ergueu-se d'um impeto similhante a um ataque repentino de demencia. Abriu uma gaveta, e tirou um garfo. Ás apalpadellas atravessou um corredor, e, na extremidade, abriu de mansinho uma porta. Aproximou-se do leito onde resonava um homem, e cravou-lhe tres vezes o garfo no pescoço. O agonisante soltou um rugido, que só o assassino ouviu, e expirou.
Pela manhã encontraram morto o velho Manoel José d'Almeida, professor de latim, com um garfo tinto de sangue sobre a dobra do lençol.
—José Bento desapparecera. Foi procurado em casa do João Retrozeiro, e não o encontraram.
Horrivel acontecimento!
A lingua latina perdeu um dos seus melhores interpretes. O senhor Manoel José de Almeida poderia ser um temperamento colerico com os seus discipulos, mas a sciencia devia-lhe muito. Escreveu largamente sobre a genuina interpretação do tam libet hirsutam tibi fulci recidere barbam, de Ovidio. Deixou ineditos tres volumes sobre a conjuncção copulativa, e preciosos manuscriptos sobre o adverbio quotiesqumque. Era um bom catholico, e amigo dos pobres, que lhe chamavam pae. Era bom esposo, bom pae e bom irmão; e, se não era bom cidadão, é porque os cidadãos inventaram-se depois.
A terra lhe seja leve!