CAPITULO XI

Anna do Carmo, quando pensava em escrever a sua filha, dizia-lhe o coração que a não procurasse, porque seria recebida com má vontade. Fallava-lhe assim o coração, porque n'aquelle peito não batia o coração de mãe.

E não.

A amante do arcediago vira, sem lagrimas, levar aquella menina do seu ventre para os braços mercenarios de uma ama de expostos. Não estendeu os seus, supplicando que lhe não roubassem a filha da sua alma, e da sua deshonra. Não pediu ao pae desnaturado que lh'a désse em compensação da renuncia, que ella fizera da sua dignidade. Não saltou, esvaída de sangue, fóra do leito, procurando resgatar a creancinha que deveria dar-lhe em amor de filha o premio da sua ignominia de amante.

Viu-a ir impassivel! Nunca lhe deu que pensar o destino da creança. Nunca sentiu o remorso do infanticidio. Nunca se lembrou que a desgraçada menina, que viu a chorar com frio e fome nas lages da rua, poderia ser a sua filha.

Os annos correram. O arcediago lançou um olhar melancólico ao futuro. Ambicionou uma herdeira, que fruisse o grosso cabedal que amontoava. E lembrou-se de ter assignalado, cinco annos antes, aquella engeitada.

Procurou-a com zêlo de pae; encontrou-a entre as meninas desamparadas, pallida de fome, e vestida de farrapos, apresentou-a a sua mãe, e sua mãe encarou-a serenamente, deu-lhe um beijo frio, e aconselhou o pae que a mandasse para um collegio.

Quando o pae extremoso, cheio de saudades, mandava buscar sua filha de seis annos, com os seus lindos cabellos louros, e os seus labios radiosos de innocentes sorrisos de gratidão, Anna do Carmo achava enfadonhas as repetidas visitas, e zangava-se asperamente se a menina batia com a faca no prato, ou pedia doces para dar ás suas companheiras.

Espanta-vos esta dureza d'alma? Entrai na enfermaria das que vão ser mães, debaixo das telhas da Misericordia. Reparai n'esta, que prepara risonhamente o cueiro e a faxa que ha de levar seu filho ao monturo dos filhos sem mãe. Olhai aquella que jura que o seu seio não tem nutrição para que a não obriguem a crear o seu filho. Vêde além outra, que crava as unhas no menino, que tem ao peito, para que os dolorosos vagidos da creança accusem a fome, e a seccura d'aquelle seio, que tem dentro morto o coração.

«Diante d'este quadro hediondo, tenho duvidado do amor materno! Compungido por esta verdade atroz, tenho collocado a hyena n'um grau de sensibilidade superior á mulher!» dizia-me um illustrado professor de medicina 2 , que me expunha estes lances com as lagrimas nos olhos.

Não duvideis, pois, mães! Anna do Carmo chegaria sua filha ao seio; mas aquelle sangue não se alvoroçava nas arterias. Tocar-lhe-ia os labios com os seus, mas aquelle beijo fôra sempre a banal formalidade, que se barateia por ahi em cada cara que vos saúda.

Sobejavam-lhe razões para recear o desprêso da filha. A dura experiencia dissera-lhe que o castigo sobre a terra era infallivel.

Se aquella mulher tivesse sido a mãe d'aquella menina, sentiria um estimulo superior impellindo-a para ella. Iria, coberta de farrapos, lançar-se nos braços de sua filha, radiante de velludos e brilhantes. Iria, sem pejo, na presença de todo o mundo abraçar essa filha, com a certeza de que Rosa exclamaria na presença de todo o mundo: «Esta desgraçada mulher é minha mãe!» Pediu que lhe escrevessem uma carta; mas essas poucas palavras, que parecem o enigma d'uma grande dôr, nem suas eram. Foi uma cabeça fria, e um coração estranho, que as dictou; porque, na alma d'ella, estava a irresolução gelada, o presagio do desprêso, o espinho da consciencia, precursor d'um grande castigo.

Quando recebeu, como resposta á sua carta, o silencio, e quatro cruzados novos, Anna do Carmo sentiu-se assaltada pelo orgulho que não era orgulho de mãe. Era um rancor, que reagia ao desprêso, uma altivez que caracterisa as almas pequenas, e não essa nobre independencia, que nos manda atirar á cara do falso bemfeitor uma esmola, quando nos não é delicadamente dada como quitação d'uma divida.

Foi ella quem repelliu a esmola; mas não foi ella quem redigiu o bilhete que acompanhava a remessa. Por sua vontade, aquelle bilhete devia ser um insulto e uma ameaça; mas a pessoa que o escrevera previu que a mãe de Rosa seria brevemente uma mendiga, e precisaria de humilhar-se a estranhos, por ter sido soberba com sua filha.

Rosa Guilhermina meditou aquelle bilhete, e sentiu em si uma transformação repentina.

Ha pouco ainda, teve vergonha de declarar á sua amiga que sua mãe existia, e vinha pedir-lhe uma esmola; e agora é ella que sente a dura precisão de revelar a Elisa todo o seu segredo.

Elisa ouviu-a, e reprehendeu-a da inconfidencia, que a não lisongeava nada. Depois, aconselhou-a que desse uma mesada a essa pobre mulher, se a não queria receber em casa na qualidade de mãe.

Rosa optou pela mesada, e escreveu immediatamente uma carta a sua mãe com a direcção que lhe fôra indicada. Esta carta chegou nos assomos freneticos de Anna do Carmo. Sahiu com a carta para que lh'a lêssem: ouviu-a cada vez mais colerica, supposto que as phrases fossem brandas, e carinhosas. A offerta da filha era mais uma boa mesada, que permittisse a decencia de sua mãe. Anna tomou a carta com arremêsso, rasgou-a, e disse á portadora:

«Diga a essa desavergonhada que não preciso de suas mesadas; e que, se torna a mandar aqui alguem, que atiro pelas escadas abaixo quem cá vier... Pegue lá... dê-lhe a carta rasgada.»

D. Rosa, quando ouviu similhante resposta, voltou-se para a sua amiga, como quem pede um conselho:

—Não tens mais passo algum a dar—disse Elisa.—Mulher que assim responde não é tua mãe: isso é uma impostora! Faz de conta que este incidente não veio perturbar a nossa felicidade... Será tua mãe: mas só te conhece agora, que és rica, e ella pobre. Tal mulher não é digna de chamar-te filha!... Que lhe deves tu? O nascimento? Grande favor!... Se teu pae não tivesse esta riqueza, que te deixou, o que serias tu? Uma filha sem mãe, abandonada de todos, e despresivel aos olhos da propria que te atirou ao mundo como quem atira ao chão as rosas murchas, que lhe serviram de prazer e ornato!...

Quer fosse o estylo assoprado de Maria Elisa, quer fosse a negação completa do coração de Rosa a essa estranha mulher, que lhe chamava filha, o certo é que os escrupulos e temores desappareceram, e o importuno successo não impressionou muitos dias o espirito da leviana moça, que se demorava pouco nas mesquinharias d'este globo.

O rapido desvanecimento das ideias funebres do caso, deve-se á visita da senhora Angelica que não veio mais cedo por ter estado ás portas da morte com um catarrho, que lhe cahira nos bofes, como ella se explicava subindo as escadas.

—A snr.ª D. Angelica por aqui!—disse Rosa descendo a recebel-a.

—Deixemo-nos de dom. Cada qual é como cada um. Eu cá sou filha de negociante, e não quero essas trapalhadas da fidalguia. Então, como passa a minha menina?

—Muito boa, e a snr.ª Angelica doentinha, não é assim?

—Deus louvado, vou melhor dos bofes, mas, acho que tenho aqui no costado, salvo tal logar, um lobinho, que hei de queimar com a massa.

Elisa tinha o lenço na bôca, para suffocar o riso.

—Então, esta menina é que é a sua amiga?

—Tenho a gloria de merecer tal nome—respondeu Elisa.

—Por muitos annos e bons... Então vmc.e de quem é filha, ainda que eu seja confiada?

—Meus paes ceifou-os a dura fouce da parca.

—A Parca? não conheço essa senhora. Sua mãe chama-se a snr.ª Parca?

—Não, senhora—atalhou Rosa, porque a sua amiga não podia responder, suffocando com uma gargalhada.—A mãe d'esta menina, e tambem o pae, morreram já.

—Ah! sim? pois Deus lhes falle n'alma, e elles a abençoem no céo, que é bem galantinha... Porque não vai ser freira, minha menina?

—As almas livres não querem ferros. Umas nascem para o culto dos templos, outras vêem o altar de Deus na natureza.

—Ella que diz?—perguntou a velha a Rosa.

—Diz que não nasceu para freira.

—Não diga isso, menina, que é peccado. Todos nascemos para o serviço de Deus, e deve ir para carmelita, que é uma ordem muito apertada, e ganha-se o céo, com a pobreza, e a paciencia.

—O céo ganha-se com os vôos do espirito.

—Que é? os avôs do esprito? Não creia n'isso; nas carmelitas não ha espritos ruins... Ri-se? ora queira Deus que não chore ainda... Quem lhe disse que andavam espritos nas carmelitas? Olha as sanctinhas! coitadas!... É cousa que não consta é esprito nas carmelitas...

—Isso creio eu; mas por isso mesmo é que a materia me não convida. O grande espirito é Deus.

—Jesus! que heresia! A menina parece-me douda!...

—Não é, não, snr.ª Angelica... É porque ella falla sempre em alto estylo...

Estylo!... que é isso de estylo!...

—A sua linguagem é mais sublime que a costumada entre pessoas sem luzes.

—Sem luzes!... Eu não vos entendo, raparigas! Vmc.es aprenderam o latim?

—Não, minha senhora—disse Elisa—a nossa lingua é portugueza, e as nossas phrases tem o toque da superioridade, que nem todos os espiritos alcançam!...

—E ella a dar-lhe com os espritos!... Parecem-me doudas! Quem vos ensinou esse palavriado de latinorios e berliques-berloques que ninguem entende? É isso o que vós aprendeis no recolhimento? Deixai-vos d'essas tolices, e fallai como a outra gente da nossa laia.

—Da nossa?—disse Elisa—Não lisongeia a miscellanea.

—Miscellanea!... quem é a miscellanea? Eu não a entendo!... Ella que diz, Rosa?

—Diz que as pessoas instruidas...

—Pessoas estruidas, Deus nos livre d'ellas... Olha como ella se ri!... Esta rapariga tem aduella de menos, não tem, Rosinha?

—Tem aduella de mais... É uma senhora muito esperta, sabe francez, e faz poesias.

—Eu a arrenego! pois ella é como os homens, que vão alli berrar debaixo das janellas das freiras, a botar versos para cima?

—É verdade... Eu faço versos; a musa favorece-me: o Pégaso vôa comigo á apolinea fonte, e converso com os deuses na Castallia.

—Ella parece lá d'esses reinos estrangeiros!—disse, torcendo o nariz, a snr.ª Angelica.

—Sou lusitana, não nego a patria. Nasci nas margens do patrio Douro.

—Nasceu no Douro? Então isso como foi? Sua mãe teve-a no rio? Vinha, talvez no barco... pobre mulhersinha!... E ella a rir-se!... Ella não está boa!...

—Desaperta-me, Rosa, que eu arrebento—exclamou, suffocada de riso, Elisa.

—Eu não n'o disse? Eu logo vi que ella não estava boa!... Isto é cousa má que se lhe metteu no corpo... Dizem que o demonio ás vezes falla de modo que só o entendem os padres. Quer a menina que eu vá chamar-lhe um fradinho de muita virtude, para lhe lêr os inzorcismos?

—Minha alma detesta o frade.

—É frade de testa... e de cabeça... é muito sabio... Eu vou buscal-o...

A snr.ª Angelica atirava com a côca da mantilha para a cabeça, e preparava-se para sahir em cata do frade, quando Rosa, perdida tambem com riso, lhe acenou que não fosse.

A parvoice sinceramente estupenda estava pintada na indescriptivel physionomia da velha.

—Sabeis que mais? não me entendo comvosco! Não sei o que pareceis! Ou vós estaes doudas, ou a graça de Deus vos desamparou!

—Venha cá, snr.ª Angelica, fallemos sérias... Eu sou sua amiga, e Maria Elisa tambem o é. Nenhuma de nós está vexada do espirito mau... é porque vmc.e não nos entende, e pensa que a nossa linguagem não é do mundo dos mortaes. Eu sou a mesma Rosa, muito sua amiga, e sinto immenso prazer em vêl-a n'esta sua casa, e quero que venha cá muitas vezes.

—Agora já entendo o que me diz... A gente deve fallar como falla todo o mundo. O latim é lá cousa dos prégadores, e dos doutores. Uma mulher em sabendo a ladainha e a Magnifica, sabe o latim preciso para a salvação... Com que assim, minha Rosinha... Como se dá por aqui?

—Muito bem.

—E a outra menina?

—Plenamente jubilosa.

—Ella lá torna com o berzabum dos latinorios!... Valha-a Nossa Senhora!

—Ó Maria Elisa, falla em baixo estylo... humanisa-te.

—Repugna-me. Não sei manchar a lingua de iguaria indigna.

—Que diz ella? que eu sou indigna?

—Não, senhora; diz que não póde fallar como nós.

—Pois então que esteja calada... Ó Rosinha, eu queria-lhe uma palavra em particular.

—Pois sim; iremos para o meu quarto... eu venho já, Elisa.

—Vai... mas guarda-te do filtro da Gorgona fatal.

—Ella lá fica com os gorgues, gorgues!... má mez para ella!—murmurou a snr.ª Angelica.

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