CAPITULO XII

—Ora venha cá, Rosinha...—disse a snr.ª Angelica, pendurando a mantilha na porta, e acocorando-se n'um tapete, que ella suppoz ser feito para isso—Sente-se ao pé de mim.

—Eu não gosto d'essa posição, que é incommodativa. Sento-me n'esta cadeirinha.

—Pois sim; mas chegue-se bem para mim, que não quero que nos ouça a sua amiga. Deus me perdôe, mas não engraço com os modos d'ella... Aquillo não ha de ter bom fim... Tem muito palavriado... Ora diga-me, de que presta aquella rapariga?

—De muito; é a minha amiga do coração; conheço-a ha dois annos; quero-lhe como a ninguem, e basta.

—Está dito... Pelo que vejo, aqui não ha rei nem roque, e quem governa é vmc.e, não é verdade?

—É, sim, senhora. Quem governa em minha casa sou eu.

—Pois, minha menina, precisa de quem a governe. Os tempos não vão bons para as donzellas. Deus me perdôe se pecco, mas o diabo anda ás soltas entre as raparigas desde que os francezes vieram lá do fim do mundo ao Porto. No meu tempo não se ouvia dizer que uma rapariga namorava este nem aquelle. Hoje, bem dito seja Deus, quem tiver raparigas em casa, traga-lhe o ôlho em cima, senão, quando mal se precata, os peralvilhos... nem pensal-o é bom!... E más linguas? isso então é um louvar a Deus! Pois aquella grande bebeda da mulher do retrozeiro, que mora defronte de mim, não foi dizer ao meu Antonio que eu, quando era moça... em nome do padre, e do filho, e do espirito sancto... Cal-te bôca... Olhe que sempre! Ninguem diga que está bem! Uma desavergonhada assim! Estar eu mansa e quêda em minha casa, amando e servindo a Deus como posso, e nem ja como devo, e vai senão quando aquella lingua damnada não teve o ousio de fallar da minha conducta, que não teve nunca tanto como isto que se lhe pozesse (mostrando-lhe a ponta do dedo)! Ahi está por que Deus não manda chuva, e mandou a praga dos francezes para nosso castigo... é por causa da Anna Canastreira, e outras que taes... Aquella grande regateira! Atrever-se a pôr a bôca na minha honra! E ella? A porca, que andou... Cal-te bôca... E tem aquella de fallar em mim, que fui sempre como as estrellas, e que nunca houve na rua quem dissesse, com verdade, que me viu piscar o ôlho ao congregado, nem ao conego Anselmo! Inda a lingua se lhe tolha, e descanso não tenha ella de dia nem de noite sem me pedir perdão...

—Então é isso o que precisa dizer-me, snr.ª Angelica?

—Inda não chegamos lá, Rosinha. Isto vinha a respeito de dizer que as donzellas não estão seguras com esses melcatrefes que por ahi andam d'oculos, e polainas, que me parecem mesmo o demonio tentador!...

—Elles tentam-na, snr.ª Angelica?

—A mim? para cá é que elles vem bem!.. Eu os arrenego! Assim que os vejo ao longe, rezo o credo em cruz...

—E perseguem-na os peralvilhos?

—Hão de ter bom olho...! Elles só perseguem as que lhe dão trela. A mim? isso sim... Inda não ha muito que um mariola me puxou pela mantilha, ao sahir da Capella das Almas, e eu voltei-me para elle... não lhe digo nada... apenas me viu, aquillo foi como se lhe désse com um sedeiro na cara, voltou logo o focinho. Está-se a rir, Rosinha? É como lhe digo. Os homens, em vendo má cara nas mulheres, não tenha medo que elles se atrevam... E mais eu agora já não sou o que era... estou muito acabada... estes malditos lobinhos, que me vem todos os annos ao costado, fazem-me de fel e vinagre. D'antes quando eu era a flor das donzellas, isso é que se podiam vêr os peraltas com o nariz no ar por minha causa... Pois, olhe, viam-me com os olhos e comiam-me com a testa... Uma rapariga quer-se honestinha; e quanto mais vamos inda peor é. Está dito... agora vamos começar o nosso arranjo.

—O nosso arranjo?! Que arranjo temos nós, snr.ª Angelica?

—Nada de pressa... ha muito tempo para morrer... Ora vamos, Rosinha... inda está dos mesmos humores de ha dois annos?

—Que humores? não me lembra quaes eram...

—A respeito do seu matrimonio com o meu Antonio.

—Ah! nem me lembrava essa brincadeira... Sim, minha boa senhora, ainda estou, e estarei, resolvida a não casar com o snr. Antonio.

Maria Elisa, pé ante pé, viera collocar-se atraz de Angelica fazendo-lhe carantonhas, que obrigaram Rosa a sentar-se de ilharga por não poder conter o riso.

—Com que então está na mesma!... Ora, se Deus quizer, a sua cabecinha ha de mudar. Pense bem no caso, Rosinha. Lembre-se que meu irmão não sabe o que tem de seu. Lá, se é velho, olhe que faz dar a agua pela barba aos novos. Não vê aquellas côres, que elle tem? Olhe que alli onde o vê, inda tem muita força. Come-lhe bem, e está gordo como um tanho...

—Bem sei que está gordo; mas que me importa a mim a gordura de seu irmão? Como não quero vendel-o a pêso...

—Isso não é resposta de menina honesta, Rosinha. Não se ponha a rir... Acho que já tem as manhas da sua amiga. Foi ella que lhe disse que não quizesse o meu Antonio? Tomára-o ella.

—Pois offereça-lh'o.

—Que se lave... Olha a labisgoia! Se meu irmão se via com aquella tartamuda, que ninguem a entende, entisicava, meu querido irmão do meu peito! E ella tem legitima?

—Quem, a minha amiga? é muito rica, por morte de duas tias, que são pouco mais ou menos da sua idade, snr.ª Angelica.

—Da minha idade? Então ainda podem viver muito, e tarde virá a legitima...

—Quantos annos tem, snr.ª Angelica?

—Quem, eu? eu lhe digo... Eu sou mais velha que o meu Antonio, que é da idade do Joaquim Antunes, casado com a Theresinha dos Loios, e que se lembra de ouvir dizer a sua mãe que o meu Antonio era da idade do snr. Joaquim, e eu sou da idade da snr.ª Brizida, que dizia minha tia Aniceta que nascera ao mesmo tempo, e se baptisára no mesmo dia com o Thimoteo, que ninguem ha de dizer a idade que tem.

—É o mesmo que acontece a seu respeito, depois da sua conta, snr.ª Angelica.

—Pois é verdade; eu o que tenho é estar acabada; mas meu irmão está gordo e fero como sempre o conheci. Quizesse elle casamentos que lhe não faltavam.

—Pois, snr.ª Angelica, sinto muito dizer-lhe que não me sinto deliberada a casar com seu irmão, e que provavelmente ficarei solteira, porque não tenho vocação para o casamento. Acho-me em extremo inclinada ao celibato.

—Quem é esse Celibato? Olhe lá que não vá ser algum pandilha que lhe quer pilhar a legitima!... Eu não conheço esse snr. Celibato... é negociante?

—Nada; é um cadete...—disse Rosa mordendo o riso nos beiços.

—Ah! um cadete, chamado Celibato... Conheço muito bem; ouvi fallar n'elle... é um grande tratante. Não queira esse bigorrilhas.

—Ah! que malvado! Eu não sabia que o snr. Celibato José...

—É verdade, Celibato José... já me esquecia...

—Da Cunha...

—Sim, sim... da Cunha; é o mesmo, tal e qual! Ora vê como eu lhe vali, Rosinha?

—Agradecida, minha amiga. Detesto esse tyranno! Guardarei meu coração para outro esponsalicio...

—Esponsalicio! parece-me que conheço esse snr. Esponsalicio...

—É um rico proprietario...

—Enganaram-na, Rosinha. Esse Esponsalicio...

—Da Costa...

—É o mesmo... louvado seja Deus, que me trouxe aqui!... Esse Esponsalicio da Costa é um traficante, que enganou a filha d'uma minha amiga, e que diz á bôca cheia que não quer casar com nenhuma. Não caia em lhe receber palavra de casamento, Rosa... Deus a guarde d'essa tentação!...

—Nenhum d'elles, pois, é digno do hymeneu?

—O Hymeneu! Apre! que são muitos. Eu tenho ouvido fallar n'essa pessoa... Inda outro dia a mulher do João Pereira, que tem chinó, estava a fallar mal d'elle. Não póde ser grande pessoa, porque anda mettido com tal mulher...

—Pois bem: farei um juramento. Não casarei com o snr. Celibato!

—Bonita...

—Nem com o snr. Esponsalicio!

—Ora, pois.

—Nem com o snr. Hymeneu!

—Isso é que se chama ter a cabeça no seu logar.

—Nem com o snr. Antonio!

—Valha-a Deus, menina, valha-a Deus, que tem o passaro na mão, e deixa-o fugir!... Case com o meu Antonio, e verá que pimpona elle a traz!

—Fiz voto de morrer solteira. Os meus votos são infalliveis. Serei como as Vestaes.

—As bestiaes! Deus a livre d'isso! A menina tem alma, e não póde ser bestial...

—O mais que posso é convidar a minha amiga a receber a terna dextra do ditoso Aonio.

—Que diz, Rosinha? Parecia-me agora a outra! Onde vos ensinaram esses aranzeis?

—Pódes entrar Maria Elisa—disse Rosa, que não podia supportar as caretas que a sua amiga fazia.

—Então ella ahi vem com os latinorios... Vou-me embora, com a graça de Deus.

—Espere, senhora D. Angelica—disse Maria Elisa com burlesca formalidade.—Muito ha, ditosa irmã do mais ditoso Adonis, que eu suspirava por apascentar meus famintos olhos no manjar succulento das rosadas faces do snr. Antonio José da Silva, vosso mano, e querido meu. Vi-o uma vez. Vêl-o e amal-o foi obra d'um momento. Nunca mais meus olhos tristes provaram os carinhosos afagos de Morpheu. De noite era elle o meu pensamento; de dia o meu pensamento era elle; elle era de dia e de noite o sangue das minhas veias, o fogo ardente do meu coração, o nome mais appetitoso da minha lingua, e a lingua mais eloquente da minha alma.

—Está douda!... Resmungou a velha, voltando-se para Rosa.

—Douda!—disse Elisa—douda d'amor! Cupido, que me varaste o coração de ervada setta, porque não feres o coração de Antonio José?

—Está apaixonada por elle...—murmurou Rosa ao ouvido de Angelica, que principiava a acreditar a naturalidade daquella dôr sublime.

—Será verdade, Rosinha?

—Não vê como ella soluça.

Maria Elisa retirava-se com o lenço nos olhos para esconder o riso, na janella.

—Ella viu meu irmão?

—Viu, no pateo do recolhimento; e desde esse instante falla constantemente no objecto dos seus votos, que é seu irmão.

—Coitadinha!... É preciso dizer-lh'o a elle, que não vá a rapariga dar volta ao miôlo.

—Diga-lhe algumas palavras animadoras, snr.ª Angelica.

—Venha cá, minha menina; a troco d'isso não se afflija, que tudo se ha de fazer pelo melhor, com o favor de Deus...

—Não me illuda, senhora! Não ponha mel nas bordas da taça, que tem ao fundo o amargo absyntho! A minha paixão é incuravel como a gôta!

—Coitadinha!... por causa da paixão tem gôta! que pena! tão novinha já com gôta.

—Com gôta, sim! eu com gôta na primavera dos meus dias!

—Pois ella costuma atacar mais no inverno...

—Com gôta na aurora da infancia, no crepusculo do amor... Com gôta eu!... por causa de um ingrato Narciso! Miseranda Ecco!

—Então o tal Narciso que lhe fez? O Narciso é algum cirurgião que a não soube tratar, pelos modos... Pois, minha filha, não chore. Eu vou já d'aqui fallar com meu irmão, e veremos como se arranja isto do melhor modo. Ponto é que não esteja cá arrumado para a Rosinha...

—Cruel rival!—disse (á parte) Elisa, com a melhor das caretas imaginaveis.

—Injusta! Eu cedi-t'o, e os deuses sabem que sacrificio fiz cedendo a mão do snr. Antonio!

—Bem me parecia a mim, que andava aqui alguma mastigada!... Agora vejo eu porque não queria casar com meu irmão, snr.ª Rosinha... É uma boa amiga da sua amiga. Deixe estar, menina, que talvez ainda sejamos cunhadas... E, com isto, vou-me embora que são horas... adeus...

—Vá, mensageira d'amor!—disse Elisa—Propicios céos meus votos abençoem, e os seus desvelos galardoem.

Ausente Angelica, seguiu-se uma tremenda gargalhada, em que estalaram os espartilhos ás duas azougadas moças.

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