A pobre orphã do Recolhimento, antes de conhecer Rosa Guilhermina, enraivecia-se de não ser pensionista para compartir das regalias das ricas, que tinham o direito de responder com altivez ás reflexões das mestras, e ás rabugices da velha regente.
Reprimida pela necessidade de obedecer, phantasiava extravagantes futuros d'onde a felicidade poderia vir resgatal-a á humilhante condição de orphã, dependente da caridade publica. Moça ainda de treze annos, lembrava-se de muitos casamentos ricos com meninas pobres d'aquella casa, e botava sortes e adivinhas, que todas lhe annunciavam o suspirado casamento. Uma velha, que sabia lançar as cartas, e com a qual havia muita fé ao recolhimento, tres vezes lhe vaticinou um vantajoso casamento.
Relacionada com Rosa Guilhermina, a ambiciosa orphã esqueceu-se um pouco das suas queridas esperanças, porque, desde o momento em que ganhou a intimidade da sua amiga, dispensou a ração da casa, e viveu, independente da misericordia, como irmã com a pensionista.
Se algumas vezes contou á companheira os seus passados sonhos de casamento, Rosa ouviu-lh'os rindo, e pediu-lhe que nunca se lembrasse de tal emquanto ella fosse viva, e tivesse um bocado de pão que repartir com ella.
Ainda assim, Maria Elisa tinha assaltos de vaidade, e soffria, lembrando-se que não podia indemnisar alguma vez as liberalidades que recebia de Rosa.
Quando se installaram, senhoras suas, na casa do Laranjal, Elisa pensou no seu futuro, e lembrou-se que viria tempo em que Rosa trocaria por outros affectos os carinhos d'ella, e acharia pesado o encargo de sustentar com tantas regalias uma estranha.
Este reservado pensamento, que ella, eminentemente philosopha, sabia calar, dominou-a muito tempo, com bem pouco elogio para a sua idade e para o seu caracter.
Quando veio á sala zombar de Angelica não havia n'essa caricatura de rapariga apaixonada intenção séria, nem podia havel-a.
Quando o senhor Antonio principiou a franca exposição dos seus sentimentos, que elle significava na melodiosa palavra «sympathia», Maria Elisa zombava ainda, e respondia com caretas ás caretas de Rosa.
Quando, porém, o capitalista fallou em luxo, em carruagens, em fidalgas, e, sobre tudo, na necessidade de deixar uma herança, que não queria deixar aos sobrinhos, a moça pobre lembrou-se das suas esperanças desvanecidas, e dos prognosticos da velha do recolhimento, que lançava as cartas.
E, portanto, Maria Elisa, a seu pesar, recahiu de repente na gravidade do assumpto, e ouviu as ultimas palavras do ingenuo negociante, com a discrição, que o caso pedia.
Aqui o que temos a admirar, se alguma cousa vale a pena da admiração, é a philosophia tão saturada aos dezeseis annos!
A ideia philosophica, em uma mulher, começa aos vinte e cinco annos, e acaba aos quarenta e cinco. Até aos vinte e cinco, domina a poesia, dos quarenta e cinco para diante, se não domina a theologia, ha de forçosamente dominar a toleima, que os vocabularios definem «tolice grande». Isto não é maxima, que valha as de Larochefoucauld; mas é, no seu tanto ou quanto, uma maxima que deve aproveitar a muita gente.
Maria Elisa, porém, fôra demasiado temporã na razão da philosophia. Anticipou-se, é verdade; mas veremos que não abortou por vir cedo de mais. Os grandes pensamentos tem cincoenta annos de incubação nas entranhas da sociedade. Terão: não duvido nada; mas o maior pensamento, que se conhece, é o de Elisa em casar com o senhor Antonio, e vingou em cincoenta minutos.
As perguntas de Rosa mortificavam-na.
A ciumosa amiga custava-lhe a crêr similhante extravagancia; mas a importancia grave que Maria Elisa estava dando ás perguntas zombeteiras, que lhe eram feitas, aggravou a desconfiança de sua amiga.
Por esquivar-se ás impertinentes instancias da arrufada Rosa, a noiva, em perspectiva, refugiou-se nas chufas ao promettido esposo, e conseguiu dissuadir a amiga, que foi tão facil em descrêr como tinha sido em irritar-se por um ciume extravagante.
Quando emprégo a palavra «ciume» não se persuadam que a filha do defuncto arcediago era rival d'Elisa. Justiça lhe seja feita: D. Rosa era rival do senhor Antonio. Como estas cousas são, não me importa a mim sabel-o. Ha no coração de duas mulheres muito amigas puerilidades assim, segundo me consta.
Maria Elisa pensou na aventura toda a noite.
Para neutralisar a cubiça do luxo, e da independencia, a ambiciosa pequena afigurava-se ligada ao senhor Antonio, carnal e positivamente como Deus o atirára a este mundo. Punha de parte o dinheiro, afastava o crepe dourado, para vêr o cadaver em todo o horror das ulceras; mas o demonio tentador não lhe pintava uma cousa sem lhe pintar a outra. Pelo habito de imaginal-o familiarisou-se com elle, e já lhe não parecia tão repulsivo. E, se declinava os lindos olhos do homem para a opulencia embrionaria no ouro d'elle, a philosophica menina via cousas lindissimas, e deslumbrava o coração esquivo com as liberalidades que a cabeça lhe promettia.
E, no mais caloroso do seu delirio, via um marido velho, e uma riqueza pósthuma a gosar, e um coração, cheio de vida, a offerecer.
Foi esta a final conclusão dos seus raciocinios, que ella não deixou escriptos em compendio para uso dos collegios de meninas; mas que, depois d'ella, temos visto que foram adoptados, e que fazem hoje as delicias das educandas. Os bons príncipios teem isso comsigo.
O dia seguinte correu sem novidade.
O outro foi um dia triste para ambas as meninas.
Elisa parece que se esquivava á sua amiga. Rosa ensaiou uma pergunta definitiva; mas não ousou proferil-a.
Ao terceiro dia, uma carta do senhor Antonio José da Silva foi causa de grandes dissabores. O conteúdo era assim:
«Senhora D. Maria Elisa.
Porto, 24 de abril de 1818.
«Minha senhora do meu coração e da minha particular estima. Faz hoje tres dias que fallamos em certo negocio a respeito da nossa união. Muito desejava eu saber, para meu governo, se v. s.ª está resolvida a dar-me a sua mão de esposa. Estes negocios não devem demorar-se. Eu já lhe disse o que lhe tinha a dizer. Por motivos, que á vista lhe direi, estou deliberado a casar-me o mais breve. Soube que v. s.ª sympathisava comigo, e eu da minha parte não desgosto da sua pessoa. Por isso, se houver de se fazer este casamento, ha de ser já, quando não com bem desgosto do meu coração procurarei outra que tenha as boas qualidades da menina. Peço-lhe que responda com brevidade. Mande no seu serviço este que é e será até á morte
De v. s.ª
Attento venerador e criado obrigado,
Antonio José da Silva.»
Está conforme o original, excepto a grammatica, a pontuação, e a orthographia.
Maria Elisa, não podendo illudir as instancias de Rosa, sem lêr a carta, ralatou a seu modo o conteúdo. Vejam que a vaidade não a deixava já expor ao escarneo da sua amiga a redacção do capitalista! Por mais que a curiosa teimasse, não conseguiu julgar do coração do seu antigo amante pela eloquencia da carta!
Perseguida, cansada de fingir, exhausta de pretextos, Elisa disse á sua companheira de dous annos:
—Eu amo-te muito, minha querida amiga. És a primeira e a unica pessoa a quem consagrei a minha alma, e todos os instantes da minha existencia, que não será longa, longe de ti; mas não posso contar com o teu apoio toda a vida. Preciso de ser independente, como tu és, para bem avaliar as tuas generosidades. A verdadeira e duradoira amizade firma-se na independencia...
—Olha que me ultrajas, Elisa! Eu fiz-te nunca sentir a tua dependencia?
—Fizeste.
—Fiz! isso é uma mentira, que me escandalisa!
—Fizeste com os teus carinhos. Quanto mais procuravas esconder aos meus proprios olhos os beneficios, que me fazias, mais os olhos do meu coração se abriam, para vêl-os, e mais devedora me considerava aos teus extremos. Quer Deus que eu seja o que não poderei ser de outra maneira. Serei rica. Não digo que seja feliz; porque a ventura não a dá o ouro, nem as lagrimas da saudade se enxugam com o dinheiro. Mas eu sou sempre a tua amiga. Serás sempre a minha confidente. Serão reciprocas as nossas casas, e as nossas riquezas. Viveremos tão juntas como até aqui. Terás, mais ditosa que eu, um marido da eleição da alma. Serás venturosa, com elle, e eu um dia... talvez... bem cedo... viuva, e rica... serei outra vez a tua irmã, debaixo das mesmas telhas...
—Isso nunca!
—Nunca!... porquê?...
—Nunca!... Quem me não amou até hoje, virá depois offerecer-me riquezas que despréso, e não preciso.
—Eu não virei offerecer-te riquezas, porque rica és tu. Virei outra vez atar o fio que se vai quebrar entre os nossos corações, se é que a separação de instantes é um laço de dous corações que se desata! Rosa, não chores, que me comprimes o seio... Dá-me a tua mão... não sentes que estas palpitações só tuas podem ser? Apraz-te martyrisar a tua amiga?
—Impostora!
—Impostora, eu, Rosa, e tens alma de me dizer tal? Não sentes o remorso de tamanha offensa?
—Não! És uma ingrata, que me trocas pelo dinheiro d'um homem que eu despréso.
—Porque és rica.
—D'um homem a quem chamavas os mais despresiveis nomes.
—Que hoje outra vez lhe dou.
—Então como podes tu sacrificar a tua vida a um ente abominavel?
—Porque não tenciono sacrificar-me... O escravo ha de ser elle.
—Não te entendo! O escravo ha de ser elle!... de que modo?
—Obrigal-o-hei a servir os meus caprichos.
—Quaes caprichos?
—Todos.
—Vaes ser uma esposa infiel?
—Não.
—Vaes ter carruagem, e vestidos ricos?
—Vou.
—E se te não dér carruagem, nem vestidos?
—Ha de dal-os.
—E se não dér?
—Divorcio-me... metade da sua riqueza é minha.
—E queres dar escandalo?
—Escandalo é ser pobre. Vejo-te hoje muito moralista.
—E tu pareces-me philosopha de mais.
—Antes isso.
—Que maneira de responder!
—É como a tua de perguntar... Não nos zanguemos, Rosinha. Sejamos boas amigas. Aconselha-me que me case, que é a maior prova que pódes dar-me da tua estima.
—Faz o que quizeres... és livre... Enganei-me comtigo... creei uma vibora no meu seio.
—Isso é d'uma novella que nós lêmos ha dias. Nada de arrufos... Vamos cear?