RESPOSTA Á CARTA DO SENHOR ANTONIO JOSÉ DA SILVA
«Ill. mo snr.
«Hontem recebi a sua preciosa carta. O meu coração delirou de contentamento, e a minha penna não póde fielmente interpretar os jubilos do espirito.
«Não se resiste aos seus carinhos. É-se arrastada involuntariamente para a fascinação dos seus affectos. Deslumbra-se o entendimento, e humilda-se o amor proprio na presença de v. s.ª
«Sim. Eu serei sua esposa, e satisfarei assim a mais incendiaria ambição da minha alma. O matrimonio, porém, é de todos os passos o mais sério passo da vida. Se resvala o pé, o casamento é o desfiladeiro, que conduz ao tumulo. Eu mando calar a minha paixão. Faço que o cego amor emmudeça para que a razão falle. Raciocinemos, pois, que assim é preciso.
«V. s.ª já conhece bem o meu caracter? Creio que não. Eu não sou uma mulher trivial. Tenho um grande coração para amar; mas o amor não é suficiente alimento para elle. Sou ambiciosa de brilho, de ostentação, de gloria, e não poderia fazer feliz um homem pobre, porque preciso resplandecer aos olhos de meu marido e aos dos estranhos.
«Este brilho, que ambiciono, não é um instrumento com que eu queira ferir a minha honra, ou a honra de meu marido. Pelo contrario, humilde para elle a quem devo tudo serei soberba da minha grandeza para todos os outros.
«Se me quer para esposa, se me quer para dominar o seu coração, e ser dominada no meu, é preciso que v. s.ª se comprometta, por sua palavra de honra, a não embaraçar-me no livre gôso da riqueza que me transmitte, desde o instante em que um eterno vinculo nos prender.
«Eu sei que v. s.ª vive acostumado a uma mediania que não enquadra no meu grande espirito. Não vá esse fatal habito, no futuro, transtornar a nossa tranquillidade. Reflexione, senhor Silva, emquanto é tempo; e responda-me quando o coração concordar com as meditadas reflexões que tem a honra de fazer-lhe esta que é
«De v. s.ª
«Muito affectuosa amante, e attenta veneradora,
«Maria Elisa Sarmento de Athaide.»
O senhor Antonio leu tres vezes a carta e entendeu o essencial. Uma das maiores difficuldades que zombaram da sua intelligencia foi a mais simples das cousas: a assignatura.
—Como é (dizia elle) que ella se chama Sarmento de Athaide, se seu pae era Joaquim Nunes, e sua mãe Michaela Felisberta? Isto, pelos modos, cada qual assigna-se como quer! Pois eu hei de morrer, como nasci...
Estas sensatas reflexões foram interrompidas pela senhora Angelica.
—Já recebeste resposta, Antonio?
—Agora mesmo.
—Ora lê lá isso.
O noivo leu a carta, que sua irmã ouviu com a bôca aberta, franzindo a testa a cada palavrão, que seu mano não entendia melhor que ella.
—Está uma carta d'uma vez!—disse a senhora Angelica, abrindo os olhos para o lado da testa, e apanhando com os seus tres dentes, resto de maior quantia, o beiço inferior, em signal de admiração—Isso é que é fallar! O diacho da rapariga parece que tem cousa má! Aquillo é que é uma cabecinha! Diz que bota sonetos, e lê pelos livros grandes dos doutores! Ora vejam lá como a boa da pequena, sabe estas palavras, e diz tudo que faz mesmo pasmar!... É um regalo ouvir essa carta... Ora lê lá outra vez, meu querido Antoninho, que tens uma noiva de toda a sabedoria!
O senhor Antonio leu quinta vez a sublime carta.
—Com effeito!—tornou a senhora Angelica—eu aposto se um doutor a fazia melhor! A pequena parece que veio ensinada da barriga da mãe... Cousa assim não consta!... Nunca vi nada mais bonito! Então isso que quer dizer?
—Pois tu não entendeste?
—Assim me Deus salve que não.
—Isto quer dizer, sim... quer dizer que... é verdade, isto quer dizer, que me tem uma grande affeição da sua alma, e que está prompta a ser minha esposa...
—Coitadinha!... Isso já eu sabia... eu não t'o disse? Ora vê lá como as cartas fallam verdade! Bem dizia a Escolastica de Miragaya que a igreja te sahia brevemente... E não diz mais nada a minha cunhadinha?
—Diz que quer muito vestido, e muita... sim, diz que quer muita grandeza para metter figas nos olhos...
—Á Rosa? bem haja ella! Eu cá tambem fazia o mesmo!... Pois olha, Antonio, por ser cousa tua hei de dar-lhe o meu vestido de vareja branca com lentejoulas para o casamento, e as plumas que minha madrinha me deu, que lhe hão de ficar ás mil maravilhas. O vestido não tem mais que pôr-lhe meias mangas, e subir a cintura para cima, que no mais está na moda, custou-me a quatro mil reis a vara... daquella fazenda ha mais de trinta annos que cá não vem tão boa... E que mais diz a carta? não me manda visitas?
—Não... esqueceu-se...
—Pois, se lhe escreveres, diz-lhe da minha parte que muito estimo que seja minha cunhada, e que havemos de ir ambas visitar o Senhor, e resar a novena do menino Jesus dos attribulados, e muitas devoções. Diz-lhe mais que faça por ter saude, e que peça a nossa Senhora que lhe dê muita juizo e graça para servir a Deus... Ouviste?
—Ouvi, sim, vai pôr o jantar na mesa.
Entretanto, o senhor Antonio ficou sósinho passeando, e traduzindo para vulgar a carta de Maria Elisa. O seu espirito, posto que d'uma parcimonia admiravel no entendimento das cousas, custava-lhe a combinar a cega paixão de Elisa com as calculadas condições que lhe eram estipuladas em contracto de casamento. Todavia o negociante combinava a carta com o que ella pessoalmente lhe fizera sentir acerca de carruagens e assembleias, e deduzia de tudo que a rapariga queria figurar.
O senhor Antonio era rico, muito rico, mas avarento não. Nunca lhe occorrera a ideia de gastar dinheiro em competencia com alguns seus collegas que figuravam na roda dos fidalgos. Se desejasse deslumbral-os, não olharia a despezas. Mas o coração não lhe pedia essas cousas, e muito menos a carruagem, cujo balanço (dizia elle) não podia dar grande saude aos bofes d'um homem gordo. O orgão que o senhor Antonio respeitava mais na sua economia eram os bofes, de que se queixava pondo a mão no estomago. Naturalmente suppunha que tinha o figado no peito. Era um erro de anatomia desculpavel. Eu proprio, que já tive a honra de vos dizer que sei tudo e mais alguma cousa, não tenho absoluta certeza da collocação do figado, supposto que fui em anatomia estudante profundo, a ponto de querer provar que o duodeno (tripa de doze pollegadas) tinha, pelo menos, trinta e duas braças. E ainda hoje estou n'isto, diga lá o que disser Bichat, e Soares Franco. Em consequencia do que, tinha muita razão o senhor Antonio em recear que o balanço da carruagem lhe prejudicasse os bofes situados no estomago. Mas a senhora D. Maria Elisa de Sarmento Athaide lêra nos livros que a carruagem era hygienica, e o senhor Antonio renunciára, como vimos, o pensamento do carroção.
O jantar do senhor Antonio, n'este dia, foi rapido e pequeno, porque ao coração refluira-lhe quasi toda a sensibilidade do estomago. O senhor Antonio limitou-se a comer obra de arratel e meio de cozido da perna, uma travessa de arroz com rodellas de linguiça, uma concava pelangana de carneiro ensopado com batatas, uma tigela de chorudo caldo com sôpas que se levantavam entumecidas quatro pollegadas acima do nivel da tigela, um quarto de ceira de figos de comadre, alguns copos de vinho á proporção, e mais nada. A senhora Angelica, assustada do fastio de seu irmão, pouco mais comeu. O amor espiritualisára a organisação do nosso amigo o senhor Antonio José. Mais tres dias d'esta quasi abstinencia de anachoreta, e o sensivel negociante, um pouco pallido, e outro pouco meditabundo, poderia sem favor, ser tido e havido como a preexistencia d'estes rapazes, que nós conhecemos, e lamentamos na sua desesperação de amantes não comprehendidos na face da terra!
—Ai! quem me dera poder-vos dizer que o senhor Antonio, á hora melancólica do crepusculo, fixava o ôlho lagrimoso na amplidão dos céos, espreitando o fulgor da estrellinha que o enamorava de lá!
Eu daria de graça este meu romance, se podésse, em estylo scintillante umas vezes, e outras morbido, afiançar-vos que o senhor Antonio José da Silva fôra poisar a sua redonda pessoa na fraga de-á-beira-mar, e ahi com os olhos no horisonte, e os bofes arquejantes, perguntára á gaivota gemebunda o segredo dos seus gemidos!
Não é possivel, leitores. O senhor Antonio o mais que pôde fazer, no auge da paixão, foi comer assim. Não exijam mais d'aquelle homem, porque d'ahi ao suicidio vai só um passo.
Antonio José da Silva, meu sympathico heroe, tu passaste sobre a terra, e a tua geração não te comprehendeu!
Tu nasceste para estes nossos dias de angustiosa provação, de sentimento fino, de doloroso trespasse d'uma civilisação material para o reinado do espirito.
Se vivesses hoje, serias ordeiro, e visconde; terias ido ás camaras fallar na cultura da cebola-albarrã, e na estrada concelheira de Guinfões e Terras de Bouro; comerias biscoutos na assembleia portuense, e pedirias a palavra na associação commercial, para dizeres que eras um honrado negociante. E não ficaria aqui a tua missão grandiosa. Se morresse algum homem, rei do talento, e creador d'uma litteratura, serias tu o encarregado de dar a tua ideia para um monumento que perpetuasse a gloria d'essa illustração! 3
Antonio José, vieste cedo de mais! Eu lembro-me de ti com saudades (e mais não tive a honra de conhecer-te) todas as vezes que vejo a tua alma cavalgando o nariz dos meus contemporaneos!
Lembro-me de ti, especialmente, quando me vejo a braços com uma paixão séria, e não sinto cá dentro ferir-me o toque inspirador com que tu, depois de jantar, respondias assim á carta de Maria Elisa Sarmento de Athaide:
«Ill. ma snr.ª
«Porto, 27 de abril de 1818.
«Sem tempo para mais, recebi a sua estimada cartinha, que veio muito a proposito, porque eu já não estava bom. Vejo o que me diz, e a respeito de tudo não tenho nada a dizer contra. Eu não sou d'esses sovinas que são capazes de engulir, á hora da morte, o dinheiro, como certos avarentos que eu conheço. A menina não ha de ter falta de cousa nenhuma; ponto é que tenha juizo, e que saiba conduzir-se. O que eu tenho seu é, e de mais ninguem. Gostei muito de a ouvir discorrer na sua carta, e fallou bem a respeito do matrimonio. Eu gosto de quem me entenda, e, a respeito do mais, deixe o negocio por minha conta. Logo que esteja resolvida, botam-se os banhos, e faz-se isto depressa, que é o melhor. Sem mais, sou
«De v. s.ª
«Vosso amante do coração,
«Antonio José da Silva.»
Maria Elisa leu sósinha, com frouxos de riso, esta carta. O estimulo do riso cedeu ao da meditação. Momentaneamente, a melancolia ennuviou o semblante da pensativa menina. Parece que estava sentindo vergonha ou piedade de si. O pensamento de quebrar com uma gargalhada aquellas relações, assaltou-a duas vezes; mas o pensamento de ter carruagem e um bello futuro por detraz da campa de seu marido, assaltou-a tres vezes, e venceu por um assalto, posta a sua alma a votos.
Rosa Guilhermina, desde o dia anterior, não lhe fallava. Esta demazia de aspereza concorreu muito para a definitiva resolução do casamento, porque o seu orgulho dizia-lhe que os amuos de Rosa eram o effeito da dependencia. De mais a mais a colerica filha da Anna do Carmo tinha-lhe dito que tal casamento não seria feito em sua casa. Que sahisse ella para onde quizesse, porque, no momento em que annuisse a tal infamia, terminavam de todo em todo as suas antigas relações. Isto foi de mais: mas a filha da Anna do Carmo tinha uma costella de sua mãe, e essa costella vencera, na questão, as vinte e tres de seu pae.
O portador da carta esperava a resposta.
Maria Elisa, passada uma hora de lucta, dolorosa talvez, respondeu assim:
«Não tenho nada que esperar. Póde dar como resolvido o nosso casamento. Cumprirei a minha palavra, quando v. s.ª quizer. Eu recolho-me hoje mesmo ás orphãs.»
Depois, entrou no quarto de Elisa, com os olhos rasos de lagrimas, talvez as menos inteligiveis de todas as lagrimas de que tenho fallado:
—Rosa, acabo de decidir definitivamente o meu casamento. Cumprindo as tuas ordens, venho despedir-me de ti.
—Estimarei que sejas feliz.
—Devo considerar acabadas as nossas relações de amizade?
—Deves.
—Menos as da gratidão, porque te sou muito devedora.
—Dou-te paga e quitação d'essa divida. Não quero mesmo ser tua credora, porque me envergonho.
—E eu tambem... e cada vez mais. Hei de avaliar a dinheiro os teus favores, e darei á Sancta Casa da Misericordia esse dinheiro, por tua tenção.
—Basta! Eu não admitto escarneos! Basta de affrontas!
—Cada vez agradeço mais á Providencia a inspiração de me casar... adeus...
Rosa Guilhermina pensou alguns minutos, arrependeu-se, e correu a procurar a sua amiga para pedir-lhe perdão d'um accesso de cólera, filho do amor. Já a não viu. Tinha sahido com a sua criada, e deixára um bilhete com estas linhas:
«Não levo os vestidos de meu uso, porque não são meus. Comprou-os com o seu dinheiro a senhora D. Rosa Guilhermina. Deixo-os para serem avaliados, e descontados depois no saldo das nossas contas.»
A filha de Anna do Carmo, outra vez atacada de raiva, foi aos vestidos, e rasgou-os com mãos e dentes, praguejando.
Que taes eram as bichas!