Não conheço palavra que vos dê uma cabal ideia da sensação suavissima que atravessou até ao coração os tecidos adiposos do senhor Antonio, quando os seus olhos peccadores leram o bilhete de Maria Elisa. A ultima linha, porém, essa que declara a entrada da noiva no recolhimento, fendeu no peito do alvoroçado negociante um vesuvio d'amor, misturado de orgulho, por se vêr amado d'uma donzella, que tão nobre amostra dava da sua virtude.
Cinco minutos depois que Elisa entrára, com grande pasmo e má vontade da regente, era procurada na portaria pelo rico negociante, muito conhecido n'aquella casa, em virtude dos cargos importantes que tivera na Sancta Casa da Misericordia. A pedido do senhor Antonio, a regente acompanhou a menina á grade em que era esperada pelo mais ditoso dos mortaes.
Trocados de parte a parte os cumprimentos, o festival Antonio José da Silva abriu assim a questão do momento:
—Senhora regente, não sei se essa menina já lhe disse que será brevemente minha esposa.
—Nada, ainda não... E estava calada com isso? Receba os meus parabens, minha ruimzinha, que me fez cabellos brancos com as suas travessuras...
Elisa sorriu-se, e o noivo atalhou:
—Creancices... tudo tem o seu logar. Agora ahi onde a vê é uma mulher de tino, que sabe o que lhe convém, e não dá ouvidos a tôlas... Eu cá me entendo... Pois, senhora, como lhe vinha dizendo, trata-se o nosso casamento, que ha de fazer-se, querendo Deus, o mais tardar quinze dias... Esta menina veio outra vez para aqui lá por cousas que ella sabe, e fez ella muito bem... Com doudos nem para o céo... Eu cá me entendo... Acho que por poucos dias não será necessario arranjar casa cá dentro, e eu venho pedir á senhora regente o favor e obsequio de m'a ter na sua companhia, que eu hei de saber-lhe agradecer de modo que...
—Pois não, senhor Silva!? Não só isso, mas tudo o mais que estiver ao meu alcance... O que eu sinto é não ter um palacio para lhe offerecer; mas a boa vontade supprirá as faltas.
—Muito agradecida, senhora regente—disse Elisa, entristecendo-se a ponto de lhe tremerem as lagrimas nos olhos.
—Que tem, minha menina, chora, quando vai ser tão feliz?
—Nada... eu não choro...
—São saudades da sua amiga Rosa?
—Não, minha senhora... eu não tenho saudades de amiga nenhuma.
—Diz muito bem...—acudiu o jucundo negociante—Saudades são seccuras... ora adeus! Saudades de quê? A menina, não precisa de ninguem... Eu vou ser seu marido, e seu pae, e seu amigo. Não lhe ha de faltar nada, e não ha de faltar quem se morda de inveja... eu cá me entendo... Então fiquemos certos no pedido que lhe fiz?
—Já disse, e repito, senhor Silva; na minha companhia só não prometto a esta menina o impossivel de fazer-se n'estas casas para estar bem... Ella já sabe como é o recolhimento, e não estranhará as faltas...
—De certo não estranho, minha senhora; isto hoje parece-me mais bello que nunca. Hei de gosar, na sua preciosa companhia, deliciosos momentos...
—Mais deliciosos ha de ir gosal-os depois na companhia do senhor Silva, que é um homem honrado, e que sabe dar valor ao merecimento da menina.
—Isso póde ella estar certa, que se a não tratar melhor é porque não sei... Ora pois, senhora regente, eu queria fallar em particular com a minha futura esposa.
—Eu retiro-me, senhor Silva. Fique na certeza de que serei como tia d'esta menina.
—Ora, minha cara menina—disse o negociante logo que a regente sahiu—é necessario preparar os seus arranjos para o casamento. Eu não sei lá d'esses enfeites de noiva, senão eu seria o proprio comprador. A menina mande chamar costureiras, e ourives, e lá essa gente que vende as trapalhadas. Aqui deixo cem peças; sendo necessario mais, não tem senão escrever-me um bilhete... Tambem lhe quero offerecer uma prenda, que me não pareceu fóra de proposito: é um pente de diamantes, que lhe ha de dizer bem com o cabello, acho eu.
—Agradecida.
—Aqui não ha que agradecer. Eu bem sei que a menina lá lhe parece que eu sou algum unhas... Está enganada de meio a meio. Eu sou sovina com quem me parece; mas com a que ha de ser minha mulher dou muitas graças a Deus por ter muito que gastar com ella, assim Deus nos dê saude para o gosar. Então que me diz?
—Digo que o pente é riquissimo, e que estou muito penhorada dos seus generosos sentimentos para comigo.
—Não ha de quê. O que eu quero é que a menina se porte bem, e não dê que murmurar ás linguas damnadas... Eu cá me entendo...
—Farei tudo que em mim caiba por merecer um bom conceito de toda a gente.
—É o que se quer. Ora diga-me, qual gosta mais, de viver na aldeia ou na cidade?
—Na cidade. Eu não gosto da aldeia; e v. s.ª gosta?
—Deixemo-nos de senhorias; o melhor é tu cá, tu lá, não lhe parece, menina?
—Eu pedia-lhe licença para por emquanto não tomar a liberdade de lhe dar tal tratamento. V. s.ª póde tratar-me como lhe aprouver.
—Pois então lá como quizer. Eu cá acho mais não sei que no coração se lhe dér um tu.
—Pois satisfaça o seu coração, que eu tenho muita gloria em merecer-lhe esse novo signal de estima.
—Pois então ahi vai... Com que então tu não gostas da aldeia? Estás-te a rir? Pois olha que eu gostava da aldeia, e, desde que me disseste que não gostavas, a fallar-te a verdadinha pura, tanto se me dá, como se me deu. Como te vi assim a modo de poeta, pensei que gostavas de ouvir cantar os passaros, que é a mania dos poetas, que todos fallam em rouxinoes, e não sei em que outros passarôlos que se chamam graças, ou garças, e zephyros, e não sei que mais ninhadas e aves, que ninguem conhece, penso eu. Vós lá sabeis essas cousas... Olha como ella se ri!... Eu bem sei porque tu te ris, minha cachorrinha!... Eu já sei que tu botas sonetos...
—Eu?... que graça!... eu não sou poeta.
—Não? antes assim. Isto de ser poeta não é lá grande cousa. Pelos modos, o miôlo dos taes patavinas não regula bem... Eu sempre tive cá minha birra com homens que fazem d'isso. Ha de haver nove annos que fui a Lisboa, e vi lá um poeta, chamado... assim a modo de... era um nome estrangeirado...
—Bocage?
—Tal e qual; era o tal Bocage; estava no Rocio, á porta d'um botequineiro, e eu passava, e disse-me um meu amigo: queres vêr o... o... como era?
—Bocage.
—O Bocage... agora não me ha de esquecer... e vai elle olha para mim, muito sério, e bota-me um soneto que não sei que diabo dizia, que toda a gente se riu... Acho que o tal Borrage...
—Bocage.
—Valha a breca o tal nome, que tem que se lhe diga! Acho que elle era tôlo, e os outros não tem mais juizo que elle... Pois muito folgo saber que a minha esposa não é poeta... Ora diz-me: tu sabes alguma cousa cá d'estas cousas do ar?
O senhor Antonio fez, sobre a cabeça, um gesto com as mãos, que poderia significar uma pergunta de honestidade equivoca.
—Que são cousas do ar?
—Sim... perguntava eu se sabias alguma cousa dos planetas...
—Astronomia? Tenho lido alguma cousa.
—Então has de saber quando está para vir chuva?
—Ainda não estudei essa parte. Eu penso que a chuva vem quando os vapores condensados na atmosphera...
—É isso mesmo... Ora diz-me uma cousa que me tem dado que pensar. Lá em cima na lua diz que anda gente como por cá?
—Penso que não ha certeza d'esse phenomeno.
—D'esse?...
—Phenomeno...
—Se te não custa diz-me o que é isso? é algum planeta?
—Nada, não é... Phenomeno é uma maneira de existir na ordem natural das cousas, manifestada de modo que as leis dos systemas conhecidos não attingem a lei que rege esses actos...
—Ah! agora entendi... Olha que tu sabes mais do que um frade loio que ahi ha muito sabio, e que teve o descôco de dizer que a terra anda á roda!... Que te parece a cavalgadura?
—Eu acho que elle disse scientificamcnte a verdade.
—Essa é boa! Pois se a terra andasse á roda, tambem nós andavamos sempre com os focinhos pelo chão... Deixa-te d'isso...
—É illusão sua. Ha uma razão que nos sustenta na posição direita em que estamos.
—Bem sei que são as costas das nossas cadeiras; mas, se a terra andasse ao redor, cahiam as cadeiras comnosco.
—Não é essa a razão... É que todos os corpos pendem para o centro da terra... é o que se chama lei da attracção.
—Ah! agora entendi... todos os corpos sahem do centro da terra...
—Sahem, não: pendem.
—Sim, pendem para a lei da attricção... Não te rias, que toda a gente aprende quando não teve lá esses principios o latim, e da grammatica... Cada qual tem o seu tráfego. Eu cá na minha officina do commercio sei como os que sabem. Lá de rhetoricas não sei nada, a verdade deve dizer-se; mas, se Deus quizer, tu has de dizer-me como é isto cá de cima. Eu ás vezes ponho-me a olhar para esta machina, e fico estarrecido horas e horas a vêr o que nós somos, e como o Creador fez tudo isto para nós.
—Para nós? Eu não sei de que nos servem as estrellas...
—Não sabes? A fallar a verdade, eu tambem não; mas ouvi dizer que as estrellas de alguma cousa servem.
—Tambem creio que sirvam; mas para nós não lhe vejo a utilidade.
—Então os livros não resam d'isso?
—Não achei ainda uma explicação precisa.
—Pois, minha Mariquitas, estão-se fazendo horas de ir ao jantar. Deixamos isto para outro dia, que não ha de faltar occasião de fallarmos a respeito da sabedoria. Vê lá se queres alguma cousa...
—Não preciso de nada.
—Ámanhã é a primeira corrida de banhos... De ámanhã a quinze dias effectua-se o negocio; e ficámos arrumados d'aqui. Adeus, menina, até ámanhã.
O senhor Antonio sahiu, com o espirito remoçado, e a cabeça aturdida de ideias novas sobre astronomia. Contente, como nunca, o milagre de vinte annos de menos não daria ás suas pernas trôpegas a agilidade com que o viram passar nas Fontainhas.
Mal elle tinha sahido, quando Rosa Guilhermina entrou no pateo, e pediu á porteira que lhe chamasse Maria Elisa.
A resposta foi que a senhora D. Maria Elisa não recebia a visita da senhora D. Rosa, porque não queria envergonhal-a com as suas relações.
A filha do arcediago instou, supplicou, fez empenhar a regente para que a orphã lhe fallasse. A regente, porém, que não queria importunar a noiva de Antonio José da Silva, antigo mesario da casa, negou-se ás instancias da lagrimosa menina.
Dera-se um forte motivo para a recusa teimosa de Elisa. Quando ao despedir-se do negociante, subia para a casa da regente, entregaram-lhe no caminho um bahú e uma chave. Elisa entendeu que eram os seus vestidos, que a attribulada amiga lhe mandava. Abriu o bahú para tirar um chaile, e viu tudo espedaçado. A indignação coincidiu com a vinda de Rosa, e Rosa, arrependida, correra ao Recolhimento para estorvar a entrega do bahú.
Era impossivel a reconciliação. Á ultima impertinencia de Rosa Guilhermina, a orgulhosa respondeu que podia já dar-lhe algum dinheiro por conta do que lhe devia, e remetteu-lhe a sacca com as cem peças que lhe deixára o negociante.
A filha de Anna arrojou-as ao chão, e sahiu furiosa, promettendo vingar-se da nova villania.
Maria Elisa ficou satisfeitissima d'aquelle rasgo, e sentiu, pela primeira vez na sua vida, que, sem dinheiro, ninguem póde ter rasgos, nem mesmo póde contar com que romancistas futuros se entretenham da sua pessoa.
Oh meu caro Antonio José! tu de astronomia não sabias muito; mas tinhas d'aquella cousa que faz descer os astronomos cá para baixo!