O senhor Antonio estava sériamente amuado. Atormentava-o a dúvida, e as suspeitas terriveis principiavam a obra maldita do arrependimento. Comparando a sua pacifica vida de solteiro com as consequencias da vida matrimonial, arrependia-se o brioso mercador de pannos, e considerava-se o bode expiatorio do seu orgulho insultante com o proximo do chinó, em circumstancias analogas.
Era isto que affligia o coração do marido de Maria Elisa, emquanto ella, amuada tambem, se fechára no seu quarto, imaginando a comica solução que o senhor Fernandes daria ao problematico parentesco da Ponte-da-Pedra. Assim se entretinham aquellas duas creaturas, quando foi dito ao senhor Antonio que estava alli um sugeito, que queria fallar-lhe, sendo possivel.
—Que diga quem é.
O criado voltou, dizendo que era um primo da senhora D. Maria Elisa.
—Devéras?!—disse o senhor Antonio, com sobresalto, expandindo as bochechas em ar de contentamento.
—Sim, senhor, diz que é primo da senhora.
—E quer fallar comigo?
—É o que elle disse.
—E não fallou ainda com a senhora?
—Nada; nem por ella perguntou.
—Pois que suba para a sala.
Em seguida, foi introduzido na presença do senhor Antonio um sugeito de trinta annos, pouco mais ou menos, com uma cara trivial, um trajo usado, e maneiras delicadas.
—Tenho a honra de cumprimental-o, senhor Silva.
—E eu a mesma. Com que então o senhor é primo de minha mulher?
—Sim, senhor: filho d'uma irmã de sua mãe.
—Estimo muito conhecel-o.
—Eu devo, sem mais delongas, dizer a v. s.ª o fim que me traz a sua casa.
—Ora diga lá sem ceremonia, os homens são uns para os outros, e eu estou prompto a mostrar-lhe que não sou daquelles que... emfim... diga lá o que quer...
—Quero ser eu o proprio accusador da mão bemfeitora, que tem derramado sobre mim alguns beneficios. É preciso que v. s.ª saiba que eu sou pobre, e não tenho podido até hoje agenciar pelo trabalho a minha independencia. No commercio não me acceitam, porque me acham adiantado em idade. Emprego não me dão nenhum, porque não tenho protecções. Para militar não sirvo, porque sou muito doente do peito, e além d'isso muito curto de vista. Para frade tambem não sirvo, porque não tenho patrimonio, e de mais a mais não sei latim para poder entrar nas ordens mendicantes. Sou, pois, vadio por necessidade; não tenho de quem me valha, a não ser d'esta minha prima, que, pelo facto de casar-se com v. s.ª, é a unica pessoa do meu parentesco, a quem se póde pedir uma esmola! Nas minhas tristissimas circumstancias, dirigi-me a ella, e achei-a fria, dura de coração, e insensivel ás minhas súpplicas. Instei, segunda e terceira vez, obrigado pela indigencia, e consegui que ella me mandasse esperal-a, algumas vezes, na Ponte-da-Pedra, onde me daria o pouco que podésse economisar do que seu marido lhe dava para alfinetes. Disse-lhe eu que não duvidava fallar pessoalmente a v. s.ª, e ella tirou-me d'isso, dizendo que não queria ser pesada a seu marido com os seus parentes pobres. Hontem foi um dos dias em que ella me deu uma pequena esmola, e me prometteu algum dia empenhar-se com v. s.ª para que se me désse um logar na alfandega, ou em qualquer repartição da justiça, em que eu podésse ganhar com honra um bocado de pão. Quando fallavamos n'isto, ouvimos uma voz, minha prima empallideceu, dizendo-me que fugisse, porque ouvira fallar seu marido. Eu atrapalhei-me com os sustos de minha prima, e nem tempo tive de reflectir nas consequencias da minha fuga. Fugi pelo quintal, e vim de volta para a estrebaria escutar o que se passava. Quando v. s.ª sahiu com ella, reparei que vinham amuados, e entendi que eu fôra a causa d'essa desgraçada desintelligencia entre dous esposos que tanto se amam, segundo ella me tem dito...
—Ella disse-lhe isso?
—Sim, senhor. Quando os vi enfronhados estive por um triz a sahir da estrebaria, e dizer quem era, porque v. s.ª não seria tão barbaro, que maltractasse sua mulher, porque tem um primo que necessita das suas migalhas. O receio fez-me recuar no meu plano, e vim para casa meditar na minha triste sorte. Resolvi ter animo, e venho eu proprio accusar-me de ter sido o perseguidor de minha prima. O que ella me tem dado é tão pouco, senhor Silva, que eu talvez, vendendo este velho casaco e estas calças, possa embolsal-o. Quero ficar em mangas de camisa, mas não quero que minha prima soffra por minha causa.
—Com que então o senhor metteu-se-lhe lá na cabeça que eu cá sou homem capaz de tractar mal minha mulher, porque lhe deu alguma cousa? Ora adeus!... mudemos de conversa! O senhor como se chama?
—Pedro José Sarmento de Athaide.
—Já que fallou em Sarmento d'Athaide, faz favor de me dizer d'onde é que herdaram esses appellidos?
—Eu lhe digo... Meu quarto visavô João de Lencastre e Sarmento casou com minha quarta visavó D. Urraca de Athaide, da casa de Valladares no Alto-Minho. Tiveram quatro filhos. O morgado casou em Pena-Ventosa com a herdeira da muito antiga familia dos Pesicatos...
—Dos...?
—Pesicatos e Bemóes.
—Nunca ouvi fallar d'essa linhagem.
—Não admira, porque ficou toda essa familia sepultada em Lisboa, nas ruinas do terremoto de 1755. Foi uma grande desgraça para a posteridade do outro ramo d'este tronco illustre. O filho segundo de meu quarto visavô fez um mau casamento com uma mulher da plebe, e os dous seus irmãos foram frades; um morreu dom abbade em Tibães, e outro foi bispo de Constantinopla, e chamava-se fr. Zagallo Sarmento e Athaide.
—Nunca ouvi fallar d'esse senhor bispo de... Castanhóplas!...
—Pois, senhor, eu posso mostrar-lhe que elle era irmão legitimo do meu terceiro visavô, com documentos que param na Torre do Tombo.
—Não é preciso; eu vejo que v. s.ª falla verdade... Mas como é que o pae de minha mulher era negociante, e não era dos de primeira ordem?
—Isso explica-se pelos casamentos desiguaes. O vinculo passou para os parentes que temos em Macau, e já meu avô foi negociante, e teve de riscar de seu nome os appellidos de nossos avós, porque não podia sustental-os. Ora aqui está a triste historia dos meus ascendentes, que mal diriam elles que seu neto Pedro José de Sarmento e Athaide precisaria de estender a mão á caridade de estranhos!...
—Pois, senhor Pedro, não ha mal que sempre dure. O senhor fez muito mal em não vir ter comigo logo que soube que era seu parente por infinidade. Havia de topar um homem como se quer para o seu amigo. Não fez bem... mas emfim tudo se remedeia... eu vou chamar sua prima, e ella dirá o que se ha de fazer...
—Perdão... eu acho que não será bom que ella saiba que eu vim aqui, porque me não levará a bem a liberdade que eu tomei de me dirigir a v. s.ª, abrindo-lhe francamente o meu coração...
—Qual?... Ora o senhor então não sabe como ella é!... Verá que ha de estimar que se declarassem d'este modo cá certas suspeitas...
—Suspeitas!... quaes?...
—Eu cá me entendo...
—Mas eu é que não entendo... A minha honra está compromettida n'essas suspeitas... Sou pobre, mas tenho pundonor; exijo que v. s.ª, em nome da honra, me declare quaes foram as suspeitas...
—Eu lhe digo, senhor Pedro... Eu não sabia que minha mulher tinha primos, e, quando me disseram na estalagem que ella estava com um primo, metteu-se-me cá uma asneira na cabeça...
—Qual asneira?
—Pensei que o tal primo era algum rufião...
—Rufião!... Eu não entendo essa linguagem!
—Quero dizer que pensei que andava por ahi algum farropilhas a arrastar-lhe a aza!
—Então o senhor não sabe que minha prima pertence á veneranda linhagem dos Sarmentos e Athaides, e não consta que, na genealogia dos Pesicatos e Bemóes, se désse uma infidelidade porca e villã!... V. s.ª offendeu as cinzas de meus avós! Em nome de meu quarto visavô, João de Lencastre e Sarmento, e de fr. Zagallo, bispo de Constantinopla, exijo que me dê uma satisfação!...
—Não se arrenegue assim, senhor Pedro... Um marido póde enganar-se muitas vezes com sua mulher!
—Mas eu, neto de heroes, é que não admitto enganos taes! As suspeitas são affrontas! V. s.ª affrontou-me na pessoa de minha prima! Insto pela satisfação! Na França entre cavalheiros é costume disputar-se a honra á ponta de espada. V. s.ª ha de bater-se comigo!
—Eu!... essa é que é daquella casta!... Pois eu, sem mais nem menos, hei de agora jogar a tapona com o senhor, porque se me afigurou que minha mulher não era tão boa como se dizia! Ora, senhor primo, deixe-se d'isso... Eu não sei cá d'esses costumes dos francezes... Que os leve o diabo e mais quando elles cá vieram...
—Não me importam os francezes! Importa-me a honra de meus avós, insultada em minha prima D. Maria Elisa de Sarmento e Athaide. Senhor Antonio! Dentro em vinte e quatro horas um de nós estará na eternidade!
—O senhor, por mais que me digam, está a mangar comigo, ou não regula bem da cabeça!
—Com a honra não se manga, senhor negociante de pannos! Se a sua arma é o covado, a minha é a espada, que herdei de meu vigesimo-quarto avó D. Alarico Themudo Pesicato! É forçoso que se bata, ou então que declare á face do céo e da terra que é um covarde. Dentro de vinte e quatro horas virei procurar a resposta. Se não quizer bater-se, hei de sacrifical-o aos manes de meus illustres avoengos, que do Olympo excitam a minha coragem! Não tenho mais a dizer-lhe, senhor!
—Venha cá... isto não é modo de tractar o homem de sua prima!... Se quer dinheiro, diga-o, e não esteja ahi a arrotar postas de pescada.
—Com que então chama o senhor a isto arrotar postas de pescada!... Muito bem! Hei de provar-lhe que as postas do seu corpo tambem se arrotam!... Passadas vinte e quatro horas, repito, um de nós será cadaver!
O neto dos Pesicatos sahiu. O senhor Antonio, atordoado com a seriedade do negocio, entrou no quarto de sua mulher.
—Que diabo de homem é este teu primo, ó Mariquinhas?
—Meu primo!... pois elle esteve cá?!
—Sahiu agora mesmo... O homem parece-me doudo!...
—Pois que fez elle?
—O que fez?... Quer que eu jogue a bordoada com elle!
—Porquê?
—Isso agora é que eu não sei!... Levou-se dos diabos por eu lhe dizer que tive cá minhas desconfianças a teu respeito... e, ás duas por tres, põe-se a berregar como um barqueiro, e a dizer que antes de vinte e quatro horas um de nós havia de morrer!... Que te parece isto?
—Parece-me um sonho!... Porque me não chamou?
—Porque elle não me deu tempo... Começou a desembuchar umas trapalhadas d'avós, e do bispo, e dos Pesi... Pesi... como se chamavam esses homens da tua linhagem?
—Quaes homens?
—Uns fidalgos que morreram no terremoto de Lisboa?
—Eu sei cá que homens eram esses!...
—Eram os... os... Pesigatos... De que te ris? O caso não é para isso... O tal teu primo, se é doudo, o melhor é amarrarem-n'o, e mandem-n'o para o hospital de S. José...
—Que figura tinha elle?
—Pois tu não sabes que figura tem teu primo?
—Sei... mas... lembro-me se não seria elle...
—Elle não se chama Pedro?
—Sim... elle... chama-se... Pedro.
—Pois então ahi está... É elle mesmo... deu-me todos os signaes certos da Ponte-da-Pedra.
—E que lhe disse?
—O homem fallou bem, a respeito de não ter meios, e fez-me cá no coração uma certa aquella; mas, depois, parecia-me um maluco chapado, lá com as suas valentias. É preciso saber como isto ha de ser; eu não quero historias com elle. Manda-lhe dizer que se deixe de asneiras, se quer ter que comer e vestir em minha casa, ouviste, Maricas?
—Pois sim; mas eu ignoro a sua residencia. Quando elle cá tornar, chame-me, e eu verei como se remedeiam as loucuras do meu primo.
O senhor Antonio, um pouco mais socegado, relatou, pouco mais ou menos, a sua mulher o dialogo que tivera com o descendente do bispo de Constantinopla. Maria Elisa ouvira-o, afflicta com vontade de rir-se, e, ao mesmo tempo, vexada de ter um marido, que se prestava assim ao ridiculo. Era bem natural esta mortificação do amor proprio.
A conversação foi interrompida pela chegada de dous senhores, que precisavam immediatamente fallar com o senhor Silva.
—Temos alguma!...—murmurou o negociante, e entrou na sala onde o esperavam dous officiaes de cavallaria, de grandes bigodes, e caras de arremetter.
—Quem são v. s.as?—perguntou o assustado dono da casa, apenas os encarou.
—Somos embaixadores de Pedro José de Sarmento e Athaide!—respondeu um d'elles, arqueando os braços, e levantando a caneca com orgulhoso entono.
—Embaixadores!... e que me querem os senhores embaixadores?
—Advertil-o de que é desafiado pelo nosso amigo...
—Ora, deixem-se d'isso!...—interrompeu o senhor Antonio, fingindo que recebia a intimação com gracejo—V. s.as estão a brincar... Queiram mandar-se sentar.
—A nossa missão cumpre-se de pé... e v. s.ª ha de responder-nos tambem de pé! Queira tirar o seu barrete, por que nós tambem estamos descobertos. As formaes solemnidades d'este acto não permittem distincções de cavalheiro para cavalheiro. Repito, senhor! Queira descobrir-se!
—Eu estou em minha casa, posso estar como quizer.
—N'este momento a sua posição é outra. O homem desafiado não se considera em sua casa, emquanto a sua honra não está illibada, porque o homem deshonrado não tem casa, nem propriedade, nem direito! Descubra-se!
O senhor Antonio tirou o barrete, e emmudeceu na presença de similhante insolencia.
—Muito bem... Responda agora: quer bater-se em leal duello com o senhor Pedro José de Sarmento e Athaide Pesicato?
—Não quero lá saber d'essas cousas, já lh'o disse a elle, e não me façam azedar o estomago, senão eu mando chamar o meirinho geral, e os senhores são catrafiados e mais elle na Relação.
—O senhor insulta-nos! Se não tivessemos piedade da sua barriga... essa lingua seria cortada pelo gume d'esta espada!...
—Os senhores vem insultar-me a minha casa! Já no meio da rua, quando não chamo os visinhos.
—Cale-se, monstro! quando não...
Os esturdios desembainhavam as espadas quando Maria Elisa entrou na sala, e parou diante de seu marido, que recuava espavorido.
—Isto que quer dizer?—perguntou ella—Não respondem?... Que infamia é esta de entrarem n'uma casa estranha insultando o dono d'ella?
Os embaixadores do imaginario primo arrefeceram nas suas comicas furias, e não ousaram responder.
—Retirem-se d'esta casa!—disse Maria Elisa apontando-lhes a porta da sahida.
—Minha senhora...—balbuciou um d'elles—nós somos enviados por...
—Seja por quem fôr. Vão dizer a quem os enviou, que Maria Elisa lhe manda dizer que o seu procedimento é muito infame, e que eu muito sinto não ser homem para poder dar a v. s.as uma resposta cabal! Retirem-se!...
Os officiaes sahiram vexados, e o senhor Antonio estava espantado da coragem de sua mulher.